Quando o marido apresentou os primeiros sintomas de covid-19, a veterin�ria Thais Oliveira de Andrade, de 44 anos, tinha certeza de que pegaria a doen�a tamb�m. Os dois haviam sido expostos no mesmo momento a uma pessoa contaminada. Por isso, ela n�o s� cuidou do parceiro, como continuou dormindo na mesma cama com ele. O estado de Erik Soares de Ara�jo, de 44 anos, se agravou e ele acabou internado em uma UTI, onde ficou por quatro dias. Mesmo assim, os exames de Thais continuavam dando negativo.
"Durante o per�odo em que ele ficou no hospital, testei mais duas vezes e deu n�o reagente. Achei que era erro e continuei esperando pelos sintomas", contou a veterin�ria. "Quando ele teve alta, testei novamente e nada. Ficou claro que nunca fui infectada."
O caso n�o � t�o raro quanto pode parecer. Cientistas j� tinham percebido que algumas pessoas s�o imunes � pandemia que continua se alastrando pelo mundo. S�o naturalmente protegidas contra a covid. Por que algumas pessoas s�o infectadas e outras n�o, apesar de terem sido igualmente expostas ao v�rus? Por que algumas fam�lias foram devastadas pela covid enquanto outras passaram inc�lumes pela pandemia?
Por que alguns indiv�duos centen�rios tiveram formas brandas da doen�a enquanto jovens sem comorbidades - caso do ator Paulo Gustavo, entre outros - morreram? Haveria um componente gen�tico na vulnerabilidade ou na resist�ncia ao Sars-CoV-2? Essas s�o algumas das perguntas que os especialistas come�aram a se fazer.
Em busca de respostas
Um estudo do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e C�lulas-Tronco da Universidade de S�o Paulo (USP) feito com pares de g�meos univitelinos e bivitelinos revelou que irm�os geneticamente id�nticos expostos � covid tendem a ter sintomas e desfechos parecidos. J� entre os que apresentam genomas diferentes, a tend�ncia mais forte foi de casos distintos. O resultado j� indicava um componente gen�tico forte na infec��o e na manifesta��o da doen�a.
Outra pesquisa do mesmo grupo analisou dados de 86 casais, entre eles Thais e Erik, em que um dos c�njuges foi infectado pelo Sars-CoV2 e o outro n�o. O objetivo era justamente tentar encontrar perfis gen�ticos capazes de explicar a discrep�ncia. Os dois trabalhos foram publicados na plataforma cient�fica MedRxiv e ainda n�o foram revisados por pares.
"A gente tem certeza de que a gen�tica est� envolvida em v�rios aspectos da doen�a", afirmou o bi�logo Mateus Vidigal, principal autor do estudo. "Quer�amos investigar a influ�ncia da gen�tica na infec��o, na variabilidade de sintomas e no desfecho; al�m dos mecanismos de resist�ncia e suscetibilidade � doen�a."
A partir do sequenciamento gen�tico dos 172 volunt�rios, os cientistas conseguiram detectar duas sequ�ncias espec�ficas de variantes ligadas ao sistema imunol�gico que chamaram de MICA e MICB. Nos indiv�duos infectados, as MICA estavam aumentadas, e as MICB, reduzidas. Nos resistentes, as MICB apareciam mais. A descoberta pode ajudar n�o apenas a entender o desenvolvimento da doen�a como tamb�m servir de base para futuros medicamentos.
"Uma vez que se conhece o componente gen�tico por tr�s da covid, isso abre uma nova perspectiva de tratamento", disse Vidigal. "Os tratamentos hoje n�o s�o coletivos, n�o temos nada muito espec�fico. � importante ter tratamentos mais individualizados para melhorar o progn�stico."
Os cientistas j� sabem, no entanto, que v�rios genes est�o envolvidos e n�o apenas um, como no caso do HIV. Embora muito rara, a resist�ncia � infec��o pelo v�rus da aids est� presente em 1% da popula��o. Os indiv�duos resistentes t�m uma muta��o em um �nico gene espec�fico, chamado CCR5.
"Se conseguirmos mapear esses genes, poderemos saber de antem�o quem s�o os indiv�duos resistentes e os mais vulner�veis", afirmou a geneticista Mayana Zatz, que tamb�m participa do estudo.
"Com um teste gen�tico simples, por exemplo, poder�amos liberar as pessoas resistentes, que n�o se infectam nem infectam outras pessoas para circularem
livremente. Essas pessoas poderiam tamb�m ir para o fim da fila da vacina��o", acrescenta a cientista.
Idosos
Um terceiro estudo da mesma equipe ainda em andamento analisa diferentes respostas � doen�a em cem indiv�duos nonagen�rios e at� centen�rios que sobreviveram � covid. Enquanto muitos jovens sem comorbidades tiveram formas graves da doen�a, alguns desses chamados superidosos (que teoricamente deveriam ser mais suscet�veis) tiveram casos muito brandos.
"A gente espera que esses superidosos que se recuperaram da covid tenham perfil semelhante ao dos indiv�duos mais resistentes do estudo dos casais", contou Vidigal. "Mas n�o sabemos ainda se ser�o os mesmos genes, as mesmas variantes, ou se s�o outros contribuindo para a recupera��o. Tivemos o caso de uma mulher de 114 anos que se recuperou, e de um homem de 110 anos que j� enfrentou diversas epidemias e tamb�m superou a doen�a."
Cientistas alertam para o fato de que todos os cuidados de preven��o devem ser mantidos, como uso de m�scara, distanciamento social e higiene pessoal. Segundo eles, o fato de algumas pessoas terem se mostrado imunes a uma determinada variante do v�rus n�o significa que elas ser�o imunes a todas. "Eu tenho medo, continuo seguindo todas as medidas", diz Thais.
Intelig�ncia artificial pode detectar variantes
Cinco institui��es do Pa�s criaram em parceria um projeto para combater a covid-19 usando intelig�ncia artificial. O objetivo � empregar essa tecnologia para detectar mais rapidamente variantes do coronav�rus, prever poss�veis novos focos da doen�a e identificar comorbidades ainda n�o associadas a seus casos graves. Dessa forma, ajudaria m�dicos e gestores na busca por tratamentos e pol�ticas p�blicas mais eficazes.
A iniciativa � uma das doze selecionadas pela Chamada P�blica Brics Covid-19. Essa a��o apoia pesquisas de enfrentamento � crise sanit�ria nos pa�ses do bloco. A China n�o participa. O projeto brasileiro � coordenado pela professora de Rob�tica e Intelig�ncia Artificial Esther Colombini. Ela integra o Instituto dos Engenheiros El�tricos e Eletr�nicos (Ieee). Tamb�m atua em colabora��o com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Atuam no projeto ainda pesquisadores da pr�pria Unicamp, da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Insper. "M�dicos e especialistas s� conseguem identificar novas cepas quando eles v�o percebendo novos padr�es da covid", lembrou Esther. Com o uso de intelig�ncia artificial, ser� poss�vel analisar milh�es de prontu�rios e exames cl�nicos e de imagem para identificar mais rapidamente esses padr�es. Al�m de acelerar a descoberta de novas cepas, o projeto tem potencial para ajudar tamb�m em outras frentes.
"Poderemos, por exemplo, identificar se com determinados padr�es a pessoa pode ter uma evolu��o melhor ou pior da doen�a. Hoje uma comorbidade pr�via pode ser agravante, mas talvez no futuro n�o seja. A idade ainda � importante, mas n�o � um fator predominante como era nas primeiras cepas. A ideia de usar sistemas inteligentes � justamente aliment�-los o tempo inteiro com novos dados para que possam identificar novos padr�es", explicou.
O projeto foi iniciado recentemente. A expectativa � de que os primeiros resultados possam ser vistos em seis meses. At� l�, um dos desafios ser� conseguir uma base de dados robusta para mapear padr�es. Por ora, os pesquisadores usam bancos de dados p�blicos e de alguns hospitais privados de S�o Paulo. "A ideia � expandir, fazer parcerias com outros Estados e outros hospitais."
Esther afirmou que algumas dificuldades precisar�o ser superadas. "�s vezes temos uma base com 4 milh�es de registros, dos quais conseguimos usar efetivamente 500 mil. Os prontu�rios eletr�nicos s�o importantes, s�o a base para n�s, mas o pr�prio preenchimento, ou mesmo a forma como os sistemas s�o constru�dos, dificulta, porque s�o diferentes. � um desafio n�o s� nosso, mas que � visto no mundo todo."
Segundo ela, o objetivo da pesquisa � aprimorar condi��es de enfrentamento da pandemia nas mais diversas frentes. "A ideia � oferecer apoio para tomada de decis�o em meio � pandemia, n�o apenas no tratamento, mas tamb�m sobre regi�es com maior risco de infec��o e at� mesmo auxiliar para se fazer uma melhor distribui��o de insumos pelo Pa�s."
As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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