Devorador de livros, o infectologista Carlos Magno Fortaleza tem 49 anos, � professor de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu e integra o Centro de Conting�ncia do Coronav�rus do Estado de S�o Paulo desde a sua primeira reuni�o, em fevereiro do ano passado. Se tivesse de escolher uma de suas obras liter�rias preferidas para fazer um paralelo com o que testemunha nesse grupo de m�dicos que assessora o governo nas medidas de combate � covid-19, diria: "A Il�ada, com certeza! Porque � a hist�ria de uma guerra imensa, demorada, cansativa, com perdas incalcul�veis - exatamente como essa pandemia. E, apesar do cen�rio sangrento, estamos ali acompanhados de alguns Aquiles e Ulisses da sa�de p�blica".
Toda ter�a, �s 10 da manh�, Fortaleza junta-se, em encontro virtual, a outros 20 consultores que integram o Centro de Conting�ncia. O grupo � basicamente um comit� formado por luminares da Sa�de P�blica recrutados para sugerir maneiras de segurar, em todo o Estado, os efeitos da maior pandemia dos �ltimos 100 anos. Todos trabalham - e muito - como consultores sem remunera��o, com exce��o do m�dico Jo�o Gabbardo, contratado pelo governador para o cargo de coordenador executivo do grupo.
N�o se pode dizer que S�o Paulo, com mais de 130 mil mortes, tenha se destacado no controle da covid-19 em meio � p�ssima m�dia nacional. Mas pode-se afirmar que, sem a atua��o - e muitas vezes press�o - desses cientistas, o Estado teria uma cat�strofe ainda maior. C�lculos do infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e integrante do Centro, mostram que, sem a quarentena que recomendaram no in�cio de 2020, o n�mero de mortes e de ocupa��o de UTIs poderia ser dez a cem vezes maior s� na Grande S�o Paulo.
Nesses meses de trabalho, os membros do Centro de Conting�ncia precisaram encarar duas frentes no combate � pandemia, ambas dur�ssimas. Uma delas foi a agonia de tentar conhecer uma doen�a nova, em uma taxa de aprendizado que avan�ava muito mais lentamente do que o n�mero de cont�gios e mortes. A outra foi lidar com um governo premido pelas necessidades dos setores produtivos, que pediam a flexibiliza��o das regras e a reabertura dos servi�os - o que algumas vezes resultou em clima tenso com o governador e em desaven�as internas. "Agora estamos de bem, pacificados. Mas tivemos momentos dif�ceis", lembra o infectologista Marcos Boulos, de 75 anos, professor da Faculdade de Medicina da USP (e o s�nior do grupo)".
Hoje, cada reuni�o do centro come�a com uma proje��o que d� um panorama da doen�a no Estado, com as varia��es da �ltima semana, m�s e ano e com comparativos entre os surtos de julho de 2020 e mar�o de 2021. Com base nessa numeralha, os m�dicos calculam o quanto o cont�gio est� subindo ou descendo nos �ltimos dias e horas e deliberam, �s vezes em debates acalorados, sobre medidas que pretendem recomendar. Em alguns casos, discutem demandas feitas por �reas do governo. Semana retrasada, por exemplo, o tema era o futebol, que queria voltar a receber p�blico.
Essa m�quina � alimentada por grupos de apoio que produzem dados de ocupa��o de UTIs, novas interna��es por dia, �bitos por semana, novos casos por cem mil habitantes a cada 14 dias divididos por regi�o e isolamento social, medido a partir de informa��es de deslocamentos dos celulares. "� um trabalho que envolve milhares de pessoas, dos funcion�rios dos munic�pios que atualizam dados �s empresas de Big Data que prestaram consultoria volunt�ria para dar agilidade ao sistema de dados", diz o epidemiologista e psiquiatra Paulo Menezes, professor da USP e h� seis meses coordenador do Centro de Conting�ncia.
Na paralela dessa usina de dados, os m�dicos do grupo fu�am pesquisas e artigos internacionais e trocam experi�ncias com m�dicos de outros pa�ses. Algumas vezes, formam subgrupos de estudo sobre temas espec�ficos - j� houve alguns para decidir sobre escolas, bares, visitas a pres�dios, eventos esportivos, cultos.
Outras vezes, a contribui��o vem do que eles veem na linha de frente. Em janeiro, o infectologista Benedito Fonseca, da FMUSP e coordenador do laborat�rio da covid do Hospital das Cl�nicas de Ribeir�o Preto, sequenciou a primeira amostra positiva da variante P.1 (identificada originalmente em Manaus) em paciente e avisou rapidamente os colegas do Centro. "Em pouco tempo percebemos que a nova variante estava aumentando paulatinamente, tanto que hoje � predominante em todas as regi�es do Estado." Tamb�m foi dos primeiros a notar o aumento da presen�a dos mais jovens nas UTIs. H� duas semanas, mais uma percep��o: o aumento da incid�ncia grave da doen�a em gestantes e pu�rperas.
Vespeiro
De modo geral, os integrantes do Centro descrevem as reuni�es como um ambiente de colabora��o e troca de aprendizado entre colegas renomados. O que tensiona a conviv�ncia � que, no fim das contas, as principais sugest�es para conter a pandemia invariavelmente mexem num vespeiro. "E por que � um trabalho t�o dif�cil - e j� foi at� pior? Porque as recomenda��es nunca s�o boas, sempre s�o de medidas que t�m um impacto social e econ�mico gigantesco", resume Menezes.
Os m�dicos do Centro de Conting�ncia, claro, s�o afetados pela pandemia. Menezes ficou meses longe da mulher e do filho de 4 anos, para evitar risco de cont�gio. Croda perdeu parentes e cuidou de um tio que permaneceu internado por tr�s semanas na UTI. Rodrigo Angerami, professor de Epidemiologia e Doen�as Infecciosas da Unicamp, n�o encontra os pais h� quase dois anos e v� os dois filhos trancados em casa - al�m, claro, de lidar com o drama de seus pacientes. E assim por diante.
Apesar da alta carga de trabalho, os integrantes do Centro nunca perdem do horizonte o fato de que s�o apenas consultores - e cabe ao governador ouvir outras �reas e decidir o que fazer. No come�o da pandemia, os m�dicos chegaram a trabalhar em modelos de lockdown. Mas foram avisados pelo governo de que, sem apoio do governo federal e do Ex�rcito, seria imposs�vel bancar algo assim. Nos momentos mais cr�ticos, fizeram v�rias reuni�es por semana, quatro delas com o pr�prio governador, � noite. Vez por outra, os encontros come�am com integrantes do governo reportando o desespero de algum setor para abrir ou avisando que Doria decidiu acatar um pedido.
Ao longo dos meses, apareceram discord�ncias entre os pr�prios m�dicos, sempre em torno de um tema nevr�lgico - as medidas de isolamento social. As recomenda��es de Centro saem sempre das reuni�es �s ter�as e s�o levadas ao Comit� pelos dois coordenadores, Paulo Menezes e Jo�o Gabbardo. Depois, em entrevista coletiva, o governador anuncia as novas medidas.
A certa altura, os m�dicos entraram em modo revolta porque Doria comunicava flexibiliza��es contr�rias �s suas diretrizes e usava a frase "seguindo recomenda��es do Centro de Conting�ncia". Teve in�cio um ruidoso mal-estar, os grupos de WhatsApp pegaram fogo.
Alguns dos m�dicos suspeitaram de que os coordenadores n�o estavam levando adequadamente suas recomenda��es e pediram reuni�o presencial com o governo. O vice-governador, Rodrigo Garcia (PSDB), esclareceu que n�o era isso - Doria tomava decis�es mesmo sabendo que os m�dicos eram contr�rios. O mal-entendido foi desfeito e o clim�o acabou quando Doria come�ou a usar frases como: "a despeito de o Centro de Conting�ncia ser contr�rio, vamos fazer". Entre as medidas que aterrorizam infectologistas estava, por exemplo, a abertura de templos religiosos.
No come�o do ano, dois epis�dios embolaram de novo o meio de campo. Um deles gerou o maior desgaste com o governo desde o in�cio do Centro de Conting�ncia. Em dezembro, curvas j� apontavam para um aumento dos estragos feitos pelo v�rus. Os m�dicos defenderam que era hora de restringir tudo de maneira r�gida, incluindo festas de fim de ano e viagens de f�rias. Em janeiro, entraram em conversas fren�ticas com o governo, avisando: "fecha, o sistema de sa�de n�o vai aguentar" - e a� foram ouvidos. Nos meses seguintes, de fato, as UTIs chegaram ao m�ximo de ocupa��o.
O outro imbr�glio se deu no m�s passado, quando os m�dicos souberam pela imprensa que o governador havia autorizado a Copa Am�rica no Estado. Desesperados, bombardearam o governo com dados que esmiu�aram os perigos da competi��o. Doria, ent�o, decidiu voltar atr�s e vet�-la. Como o Estado sempre se manteve em plat� elevado - as taxas de cont�gio e de mortes nunca desabaram -, os cientistas ainda correm incansavelmente nessa partida cheia de prorroga��es. E h� a conclus�o generalizada de que, sem um plano nacional, como ocorre em todos os pa�ses que conseguiram controlar a pandemia, S�o Paulo n�o teria feito muito mais. "O Pa�s foi uma l�stima porque nosso l�der maior joga contra. A� n�o tem jeito. � como entrar numa guerra com o marechal abrindo fronteiras para os inimigos", diz Marcos Boulos.
Tamb�m leitor voraz, o infectologista Rodrigo Angerami aponta semelhan�as entre essa rotina fren�tica no Centro de Conting�ncia e outro livro: Um Di�rio do Ano da Peste, de Daniel Defoe. "Porque � um relato duro e detalhado de uma rotina em meio a m�tricas e caracteriza��es de �bitos, � explos�o de casos e de como as pessoas lidam de maneiras diferentes com os n�meros."
As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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