
Nabila Khazizadah passou os tr�s primeiros meses no Brasil, em 2002, chorando de saudade da fam�lia. Ela desembarcou em Porto Alegre aos 25 anos, com o marido e os dois filhos, alguns meses depois do in�cio da Guerra do Afeganist�o.
O pai, a m�e e os irm�os ficaram na �ndia, pa�s para onde a fam�lia buscou ref�gio primeiro, fugindo dos taleb�s.
"Fiquei tr�s meses fechada dentro de casa chorando, pensando no que eu faria longe da minha fam�lia. Depois eu pensei, isso n�o adianta, chorando dentro de casa eu n�o vou conseguir fazer nada. Eu tenho que colocar a cara � tapa e aprender portugu�s", contou � BBC News Brasil.
"Sa� pelo bairro falando com as vizinhas, tentando fazer amizades."
Nas ruas de Porto Alegre, as pessoas estranhavam o v�u cobrindo inteiramente o cabelo. �s vezes, reagiam com hostilidade. "N�o tinha afeg�os l� naquela �poca, n�o tinha mu�ulmanos.
As pessoas me viam com o hijab e sa�am de perto, n�o queriam sentar ao meu lado no �nibus. Alguns falavam: sai de perto, � mulher-bomba."
Mas a afeg�, hoje com 43 anos, conta que tamb�m encontrou acolhida, principalmente entre as vizinhas, que hoje s�o como irm�s para ela. "A gente pode construir fam�lia de afeto. Tenho pessoas maravilhosas ao meu redor, que me amam como irm�. S�o minha fam�lia".
Nabila faz parte do primeiro grupo de refugiados afeg�os que o Brasil recebeu, h� cerca de 20 anos, no in�cio da Guerra do Afeganist�o.
Na ocasi�o, o presidente Fernando Henrique Cardoso se comprometeu a incluir o Brasil no esfor�o internacional de acolhimento das pessoas que fugiam do Taleb� e do conflito armado no pa�s.
Numa medida in�dita para o Brasil, o Minist�rio da Justi�a firmou acordo com a Ag�ncia das Na��es Unidas para Refugiados (Acnur), para reassentar cerca de 100 afeg�os que estavam em campos de refugiados na �ndia e no Paquist�o.
Essas pessoas, que n�o falavam portugu�s e que tinham uma ideia muito remota do que era o Brasil, cruzariam o oceano em busca de uma vida nova.
Nabila conta que o marido fez um pedido ao governo indiano para ser reassentado em outro pa�s, onde recebesse aux�lio e tivesse mais oportunidades de trabalho. Meses depois, chegou a not�cia de que o Brasil os receberia.
"A gente n�o sabia como era o Brasil, como � a l�ngua e a cultura. Sa�mos com olhos fechados, no escuro, jogando na sorte. Tudo o que a gente queria era um futuro para nosso filho, mais calmo, mais saud�vel."
Ajuda inicial para depois 'andar com os pr�prios p�s'

Apesar de o Brasil ser um mist�rio para grande parte dos refugiados que seriam reassentados, a expectativa era grande: as crian�as poderiam ir � a escola e os adultos teriam ajuda financeira da Acnur por pelo menos um ano.
Cada adulto receberia R$ 260, mais R$ 13 por crian�a, al�m de aluguel, energia, cesta b�sica, rem�dios e transporte escolar.
Grande parte dos reassentados foi encaminhada para Porto Alegre. "Essa assist�ncia � tempor�ria, enquanto est� ocorrendo a inser��o. No m�dio prazo, o desafio � a inser��o econ�mica, a autonomia financeira", explica o porta-voz da Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho.
Uma ONG chamada Centro de Orienta��o e Encaminhamento (Cenoe) ficou respons�vel por coordenar o esfor�o de integra��o dos afeg�os, providenciando as resid�ncias, angariando ofertas de trabalho e aulas de portugu�s.
"As fam�lias estavam muito esperan�osas. Elas vinham de situa��o dif�cil, sem direitos, vivendo em campos de refugiados. O pa�s deles estava em guerra e eles tinham a oportunidade de recome�ar no Brasil", disse � BBC News Brasil o advogado Gerson Heeman, que coordenou, como integrante da Cenoe, a recep��o aos afeg�os.
"Eles tinham muitas expectativas e vontade de recome�ar, mas a minha impress�o � a de que pouco sabiam sobre o Brasil."
Choque de cultural

Pouco tempo depois de desembarcar no pa�s, os refugiados se depararam com um choque de realidade. Para Heeman, no imagin�rio deles, o Brasil era um pa�s rico, cheio de oportunidades. Mas grande parte das ofertas de emprego dispon�veis n�o oferecia remunera��o alta.
Alguns dos refugiados tinham completado cursos de gradua��o. Um deles era professor universit�rio, um outro era engenheiro el�trico. Mas sem possibilidade imediata de revalidar seus diplomas no Brasil e sem dominar o portugu�s, n�o conseguiriam trabalhar com a especializa��o de origem.
Foram oferecidas 277 vagas de emprego aos refugiados, ap�s campanha junto a empresas da cidade, diz Heeman. A maioria, no entanto, pagava o sal�rio m�nimo vigente na �poca.
"Houve uma decep��o deles com a realidade do Brasil, al�m da adapta��o cultural. Eles tinham uma expectativa maior de remunera��o, j� que comparavam com a vida de parentes que haviam sido reassentados no Canad�", diz Heeman.
Os afeg�os tamb�m se depararam com uma cultura muito diferente e com a aus�ncia de uma comunidade mu�ulmana, para se sentirem mais acolhidos.
"Eles eram os primeiros afeg�os em Porto Alegre. Pa�ses europeus, Canad� e Estados Unidos j� estavam mais acostumados a receber imigrantes e refugiados de pa�ses da �sia e do Oriente M�dio", destaca Heeman.
O porta-voz da Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho, tamb�m ressalta que o processo de integra��o n�o foi simples.
"Para pessoas vindas de muito longe, de �reas do Oriente M�dio e da �frica, a cultura brasileira � muito diferente. H� um choque cultural. Depois, tem a barreira do idioma, que � preciso transpor para alcan�ar o mercado de trabalho", disse � BBC News Brasil.
Uns ficaram, outros foram embora
Alguns anos depois de se mudar para o Brasil, integrantes de tr�s fam�lias decidiram voltar ao Afeganist�o.
O motivo n�o foi somente a dificuldade de adapta��o, mas tamb�m a esperan�a de participar da reconstru��o de um Afeganist�o sem os taleb�s no poder.
"Em 2003, quando a situa��o estava mais estabilizada, eles decidiram voltar, comentaram que poderiam retomar a vida l� e estavam animados para ajudar na reconstru��o do pa�s p�s-taleb�", conta Heeman.

Mas outros afeg�os do grupo decidiram ficaram no Brasil. Foi o caso de Omar Atbai, de 30 anos, que hoje trabalha na �rea de inform�tica. A m�e dele, Roqia, e as duas irm�s continuaram no Brasil. Mas o pai decidiu voltar ao Afeganist�o em 2005.
"Meu pai viveu aqui por dois anos, mas n�o se adaptou e resolveu voltar", diz Omar, que nunca mais retornou ao pa�s natal.
O marido de Nabila tamb�m n�o se adaptou e quis retornar ao Afeganist�o em 2007. Ela se recusou a sair do Brasil e n�o deixou que ele levasse os filhos.
"Ele come�ou a ficar com ci�mes de mim, n�o queria me deixar trabalhar e a gente precisava do dinheiro. O Brasil era muito liberado para ele. Eu disse que ia ficar, n�o ia deixar meus filhos vivendo na guerra. Ele foi e eu fiquei", conta.
Atualmente, s� os filhos mant�m contato com o pai, mas faz tr�s meses que n�o conseguem not�cia.
Heeman, da ONG Cenoe, conta que al�m das mulheres que decidiram se separar dos maridos e ficar no Brasil, v�rios jovens se adaptaram rapidamente e n�o quiseram voltar ao Afeganist�o com os pais.
O filho de um casal que voltou ao pa�s em 2003, por exemplo, resolveu ficar no Brasil, onde estava bem posicionado no ramo de venda de tape�arias persas. Uma outra fam�lia assentada em Porto Alegre conseguiu empregos na �rea de corte de carnes halal que segue os preceitos do isl�.
'Saldo positivo'
Apesar de ter havido repatria��o de parcela dos primeiros afeg�os que chegaram ao Brasil, Heeman diz considerar que o saldo do programa de reassentamento foi positivo.
O esquema s� existiu por um ano. Desde ent�o, a entrada de afeg�os passou a se dar por pedido de ref�gio - a pessoa entra no Brasil pelos pr�prios meios e pede para permanecer. De 2016 a 2020, o pa�s concedeu ref�gio a 88 afeg�os, segundo dados do Minist�rio da Justi�a.
"Eu acho que foi positivo o programa de reassentamento, porque as fam�lias que voltaram fizeram isso num momento diferente, avaliando que a situa��o havia melhorado com a queda do Taleb�. E as fam�lias que ficaram conseguiram uma inser��o na sociedade."
Godinho tamb�m destaca que � natural que alguns refugiados acabem sendo repatriados ou busquem acolhida num terceiro pa�s com o qual se identifiquem mais.
"N�o existe uma cartilha. N�o � s� seguir um manual que vai funcionar igual para todos. As pessoas t�m seus traumas, suas maneiras de lidar com as situa��es. Algumas resistem � nova realidade. Algumas se adaptam, outras n�o", diz o representante da Acnur.
Nabila, hoje com 43 anos, fala portugu�s fluentemente e trabalha na casa de uma fam�lia, fazendo faxina e cozinhando, al�m de cuidar de uma idosa �s tardes. Os dois filhos, de 27 e 28 anos, est�o trabalhando, s�o independentes financeiramente e, segundo ela, n�o pensam em deixar o pa�s. Ela n�o abre m�o do hijab, frequenta a mesquita da cidade, e diz que considera o Brasil sua casa.
"O Brasil � um pa�s bom. Se n�o fossem os roubos, seria o melhor pa�s do mundo. Eu, mesmo se tivesse oportunidade de morar no Canad� ou nos Estados Unidos, ia querer continuar a morar no Brasil. As pessoas aqui s�o maravilhosas, s�o acolhedoras, sabem olhar para a dor do outro."
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