
Um evento marcado para ocorrer nesta sexta (27/8) deve reacender a pol�mica sobre a privatiza��o de im�veis hist�ricos do Rio.
A assessoria do Minist�rio da Economia confirmou � BBC News Brasil, que est� mantido o encontro de representantes do minist�rio, dentro do escopo da pasta de Desestatiza��o, com potenciais compradores — investidores em geral, sobretudo de empresas de constru��o e incorpora��o.
Quando a not�cia foi antecipada, no in�cio do m�s, a inclus�o de diversos edif�cios de import�ncia hist�rica no rol dos mais de 2 mil im�veis que pertencem ao governo federal no Rio repercutiu negativamente.
Ic�nicos, o Pal�cio Gustavo Capanema, o Edif�cio Joseph Gire ("A Noite"), o Edif�cio Engenheiro Renato Feio e o Edif�cio Antiga Igase estavam na lista.
Dada a repercuss�o negativa, o Minist�rio da Economia, ao qual a pasta de Desestatiza��o � subordinada, informou � imprensa que n�o h� nenhum edital aberto para aliena��o do Pal�cio Capanema e nem de nenhum outro edif�cio tombado.
Contudo, o �rg�o lembrou que desde que vigora a Lei Federal 14.011, de junho do ano passado, qualquer im�vel p�blico federal pode receber proposta de compra de qualquer cidad�o.
Nesta semana, a reportagem da BBC News Brasil procurou o Minist�rio da Economia e obteve a confirma��o que n�o s� o evento com os investidores est� mantido como que nenhum pr�dio foi retirado da listagem.
"Existe o mecanismo da Proposta de Aquisi��o de Im�veis (PAI), em que qualquer pessoa, f�sica ou jur�dica, pode apresentar uma proposta para qualquer im�vel do governo, que decide, em seguida, se vai ou n�o vender o im�vel", esclareceu, em nota, a assessoria de imprensa, referindo-se � lei 14.011.

"Todos os im�veis do Rio de Janeiro [que pertencem � Uni�o] podem ser objetivo de uma PAI", completou.
A reportagem solicitou mais informa��es sobre como ser� o evento com os potenciais investidores, mas obteve a resposta de que os detalhes ainda est�o sendo definidos antes de serem divulgados para a imprensa — o que n�o ocorreu at� esta quarta-feira (25).
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil veem com preocupa��o o fato de que exemplares �nicos do patrim�nio arquitet�nico brasileiro podem deixar de ser p�blicos.
"Neste momento, comentar sobre qualquer lista � algo absolutamente temer�rio, porque n�o existe informa��o organizada. Mas � preocupante para o Brasil [esse movimento], porque s�o edif�cios que est�o no cerne da forma��o da identidade do pa�s", avalia a arquiteta e urbanista Lia Motta, docente do Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan), onde atuou como coordenadora de pesquisa e documenta��o entre 2004 e 2016.
Para ela, antes de cogitar qualquer venda nesse sentido, a Uni�o deveria realizar "um trabalho muito s�rio" sobre esses pr�dios — avaliando n�o s� sua precifica��o monet�ria, mas tamb�m os valores culturais e hist�ricos. "E ent�o decidir quem merece esses edif�cios. Porque eles s�o nossos, quem est� vendendo � o povo brasileiro. O governo n�o tem o direito de fazer isso a�odadamente, para fazer caixa. � preciso definir em quais usos eles podem ser �teis para a sociedade", enfatiza ela.
"Avalio que est� havendo uma total falta de responsabilidade, oferecendo esses pr�dios para leil�o a toque de caixa", acrescenta Motta.
Ela se preocupa, por exemplo, com um conjunto de edif�cios que foram tombados pelo Instituto Estadual do Patrim�nio Cultural (Inepac) em 1998, quando a antiga sede da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na Pra�a 15 de Novembro, corria risco de ser demolida.
Diante de press�o da sociedade, acabaram protegidos diversos exemplares de edifica��es governamentais do per�odo do Estado Novo: Alf�ndega, Superintend�ncia Regional da Pol�cia Federal (antiga Imprensa Nacional), Tribunal Regional do Trabalho, Pal�cio Duque de Caxias (ex-Minist�rio da Guerra), Edif�cio Almirante Tamandar� (antes, Minist�rio da Marinha), al�m do pr�dio da Conab, originalmente erguido para abrigar o Conselho Nacional de Pesca.

"S�o refer�ncias da identidade da antiga capital federal. Patrim�nio � refer�ncia de mem�ria, identidade e a��o", explica Motta. "Como estamos falando do Rio de Janeiro, as refer�ncias identit�rias s�o tamb�m as bases do Brasil moderno."
"O antigo pr�dio da Conab, alguns consideram feio. N�o importa. O que importa � que foi um pr�dio que marcou a hist�ria brasileira, dentro do contexto do Estado Novo. Concorde-se ou n�o [com aquele governo], foi um pr�dio que marcou a pol�tica de Get�lio Vargas, que tinha como bases cultura, educa��o, sa�de, lazer e alimenta��o. Ent�o, ali h� a hist�ria da cria��o das condi��es de alimenta��o Brasil afora."
"O que � ic�nico n�o � o que � belo ou que tem determinado estilo. Mas sim a refer�ncia cultural", ressalta ela.
O edif�cio da Conab foi inaugurado em 1941, a partir de projeto do engenheiro e arquiteto Humberto Nabuco dos Santos.
Os relevos, em estilo art deco, s�o obra do escultor Armando Schnoor — mostram pescadores de diferentes etnias, simbolizando a forma��o nacional brasileira.
Capanema
Mas o pr�dio que mais despertou pol�mica foi o famoso Pal�cio Gustavo Capanema, considerado uma joia da arquitetura mundial. O edif�cio foi constru�do durante o segundo mandato do presidente Get�lio Vargas para ser a sede do Minist�rio da Educa��o e Sa�de, numa �poca em que o Rio de Janeiro era a capital federal.
"� um edif�cio ic�nico n�o s� para a arquitetura brasileira, mas para o conhecimento humano mundial. Este � o n�vel da hist�ria", comenta o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
"Ele � mais do que apenas um projeto brasileiro importante, ele � o mais importante, e tem uma import�ncia internacional fant�stica", acrescentou.
"Est� no bojo de ser s�mbolo de Estado, de pol�ticas p�blicas de afirma��o de um Brasil urbano. � fundamental entender isso. O fato de o Estado brasileiro, naquele momento de constru��o de pol�ticas p�blicas na �rea de educa��o e sa�de, encomendar um edif�cio modernista can�nico para a ser a sede desses minist�rios se reveste de um simbolismo incalcul�vel", disse Caldana.
"Ele simboliza a assun��o pelo Estado da modernidade, nas suas pol�ticas p�blicas. E a� ele gera influ�ncia sobre outros edif�cios no Rio de Janeiro, indiscutivelmente", afirma o arquiteto Valter Caldana.
Erguido entre 1936 e 1945, o edif�cio teve em sua equipe de projetistas Lucio Costa, Carlos Le�o, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira. Houve consultoria do renomado franco-su��o Le Corbusier. Outra preciosidade do edif�cio s�o os pain�is de C�ndido Portinari.

Logo na parte externa do t�rreo pode ser visto um grande painel de azulejos do artista com motivos marinhos em tons de azul e branco. O interior do pr�dio tamb�m abriga diversos outros pain�is de Portinari.
"O pr�dio traz essa contribui��o, o primeiro com pilotis, andar corrido, design integrado com a cidade, essa vis�o do Le Corbusier para todo o movimento modernista da d�cada de 1940", comenta Motta.
"Ele � um s�mbolo de como se pretendia fazer uma arquitetura moderna brasileira. Inspira-se na azulejaria barroca das igrejas, esse padr�o azul e branco, mas na reinterpreta��o moderna do C�ndido Portinari. Com todo o sentido em rela��o ao patrim�nio, identidade nacional."
Quando foi inaugurado, abrigou inicialmente o Minist�rio da Educa��o e Sa�de, com a pasta de Cultura tamb�m ali integrada.
"At� 2017 [quando acabou fechado para o andamento de obras de restauro], as fun��es culturais continuaram se desenvolvendo no pr�dio, e isso � muito importante, porque os pr�dios t�m sentido a partir de seus usos", pontua Motta.
"Trabalhei l� por 40 anos [no Iphan] e sei que as institui��es pretendem voltar para l� para cumprir suas miss�es culturais [ap�s o fim das obras de restauro]."
Caldana divulgou uma mobiliza��o via redes sociais, que repercutiu junto aos arquitetos: se a Uni�o decidir se desfazer do Capanema, que o pr�dio seja assumido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU).
"O apoio dos arquitetos foi maci�o", avalia ele. "O CAU se colocou na lideran�a desse processo desde o princ�pio, que a gente assumisse aquilo e transformasse num grande instituto internacional difusor de arquitetura, com produ��o de conhecimento, assist�ncia t�cnica � moradia, infraestrutura e desenvolvimento urbano e � arquitetura da edifica��o em si mesma."
"O Capanema � o primeiro edif�cio que serve aos princ�pios da arquitetura moderna do come�o ao fim. Foi projetado e constru�do sob a supervis�o do Le Corbusier, um dos maiores expoentes mundiais da arquitetura moderna", pontua o professor.
"� emblem�tico porque teve Niemeyer no projeto, Le Corbusier auxiliando o desenvolvimento, Burle Marx no paisagismo, obra do Portinari… Tem as caracter�sticas modernistas bem intensas, e isso deve ser preservado e conservado, com a planta livre e o t�rreo vazado para a cidade", comenta o arquiteto e urbanista Sergio Lessa Ortiz, coordenador do curso de Arquitetura do Centro Universit�rio Belas Artes de S�o Paulo.
"N�o poderia ser nem sequer permitido aventar a possibilidade de vender esse pr�dio. Ele � no m�nimo um patrim�nio nacional", defende o arquiteto e urbanista Henrique de Carvalho, pesquisador na Universidade de S�o Paulo e autor do blog 'Sobre Cidades', do portal Estad�o.
"O problema � que a conserva��o acaba sendo padr�o 'patrim�nio brasileiro'. N�o sei direito o que fazer ali, porque no fundo eu duvido muito da capacidade de o Brasil ter mais um museu, ainda mais agora. Mas � imoral, indecente, inadmiss�vel, absurdo, uma ignor�ncia, uma burrice, uma canalhice, um abuso de poder que eles nem deveriam ter. � um golpe, n�o um golpe de Estado, este j� houve, mas um golpe financeiro — seria como vender um peda�o da praia do Rio de Janeiro."

A Noite
Outro pr�dio que aparece na lista preliminar do governo � o Edif�cio Joseph Gire, mais conhecido como A Noite — porque abrigava o antigo jornal vespertino carioca de mesmo nome.
Erguido na d�cada de 1920, ele foi considerado, quando ficou pronto, o maior arranha-c�u da Am�rica Latina e o mais alto edif�cio do mundo constru�do em concreto armado.
"� um local com potencial para recuperar usos que foram esvaziados porque n�o foi mantido corretamente. � dever do governo manter seus acervos, nossos acervos, nossos edif�cios. O Estado tem de fazer isso, tem de ser exemplo aos propriet�rios de im�veis tombados", comenta Motta.
Ortiz lembra que o A Noite era um cart�o-postal do Rio na �poca, facilmente avistado "por quem chegava � cidade de navio, da regi�o portu�ria".
"Muito ic�nico, com tra�os bem importantes de art deco. Foi sede de um jornal muito importante e, depois, tamb�m da r�dio Nacional, ent�o tem essa caracter�stica tamb�m, de ter abrigado elementos culturais importantes. Com a revitaliza��o da Pra�a Mau�, ele teve grande valoriza��o. Poderia ser aproveitado nesse sentido", avalia o arquiteto.
O projeto saiu das pranchetas do franc�s Joseph Gire — mesmo arquiteto que desenhou o Hotel Copacana Palace — e do brasileiro Elis�rio Bahiana. Foi erguido entre 1927 e 1929, com c�lculos estruturais ficando a cargo do engenheiro Em�lio Henrique Baumgart.
"S�o edif�cios que mostram a certid�o de nascimento do Brasil moderno. O patrim�nio precisa ser conservado como mem�ria, identidade e a��o", defende Motta.

Igase e Renato Feio
Para a arquiteta Lia Motta, pr�dios como o Edif�cio Engenheiro Renato Feio (antiga RFFSA) e o Edif�cio Antiga Igase precisam ser entendidos segundo uma l�gica de que "n�s ainda estejamos precisando produzir conhecimentos e atribui��o de valor a eles".
"N�o podem ser inclu�dos, colocamos numa lista de 2 mil e tantos im�veis. O que tem de se fazer s�o estudos, invent�rios, discutir com a sociedade", pontua.
"Em princ�pio, todos esses edif�cios t�m um valor hist�rico fundamental pela sua liga��o com o governo federal e a hist�ria do Rio de Janeiro, enquanto capital federal. V�o carregar essa identidade para o resto da vida", acrescenta.
"No edif�cio da RFFSA, eu fui l� certa vez pesquisar no arquivo [quando era coordenadora geral de Documenta��o e Pesquisas do Iphan]. E a gente precisa lembrar tamb�m desses acervos. O governo vai fazer o qu� com eles? Vender os pr�dios e botar os acervos onde? Fazer uma fogueira no p�tio?", provoca ela.
Caldana tamb�m preocupa-se com a l�gica dessas privatiza��es. "Os poderes est�o tratando os seus pr�prios edif�cios p�blicos como produtos de mercado imobili�rio, fazendo t�bula rasa, sem definir a gradua��o de valores simb�licos e hist�ricos desses im�veis. � uma vis�o mercantilista que nem sequer � de financeiriza��o. � vender um im�vel como uma fam�lia vende seu apartamento para comprar um novo", critica o professor.
"Isso n�o � pol�tica p�blica. Os im�veis n�o s�o tratados por sua import�ncia completa, mas como pequenos bens a serem vendidos e comprados", acrescnta Caldana.
"Est�o fazendo uma pol�tica de privatiza��o de bens paup�rrima, sem qualifica��o, sem valor agregado, querendo fazer essa mercantiliza��o e, mais, com erro estrat�gico grave: colocando tudo � venda ao mesmo tempo, o que obviamente baixa o valor na medida em que voc� aumenta a oferta", aponta.
"A princ�pio, n�o vejo problema em destinar um edif�cio ocioso a um novo uso, desde que n�o seja descaracterizado, caso tenha relev�ncia hist�rica", comenta Carvalho, ressaltando que tudo precisaria ser melhor estudado e planejado.
"Pode ser o contr�rio, pode ajudar a preservar. Mas por que eles n�o colocam em leil�o todos os pr�dios atolados em d�vida, abandonados? Deviam acelerar esse tipo de processo. N�o sou contra vender."
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