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Estado de Minas M�SICA � VIDA

'Violino serviu de escudo e me salvou de bala perdida no Rio'

Em 20 de agosto, Samuel estava a caminho da aula de m�sica quando ficou em meio a um confronto na comunidade em que mora. Jovem conta que instrumento musical foi o respons�vel por evitar que ele fosse atingido por tiro.


15/09/2021 06:30 - atualizado 15/09/2021 08:49


Carlos Samuel, de 20 anos, foi salvo por violino durante tiroteio no Rio de Janeiro
Carlos Samuel, de 20 anos, foi salvo por violino durante tiroteio no Rio de Janeiro (foto: Arquivo pessoal)

Na manh� de 20 de agosto, Carlos Samuel Galv�o, de 20 anos, estava a caminho da aula de m�sica. Enquanto seguia em dire��o ao ponto de �nibus, uma bala perdida quase o acertou. Ele foi protegido do tiro por algo que considera que j� havia salvado a vida dele anteriormente: a m�sica.

Samuel, como � conhecido, carregava um violino nas costas quando ficou em meio a um tiroteio na regi�o da comunidade em que mora, no Rio de Janeiro. Um dos disparos foi na dire��o do jovem e atingiu o instrumento musical. "O violino serviu como um escudo e salvou minha vida", diz.

"Se n�o estivesse com o violino, eu seria s� mais um nas estat�sticas. Ia passar na reportagem que houve um ataque de criminosos fortemente armados, a mesma hist�ria de sempre, por um ou dois dias falariam sobre o assunto e depois iriam abafar o caso. N�o ia acontecer nada, como sempre", diz o jovem � BBC News Brasil.

Ele sabe da tr�gica estat�stica de mortes de pessoas negras no pa�s e conhece algumas das hist�rias de v�timas da viol�ncia. "Eu conhecia v�rias pessoas negras que foram v�timas de balas perdidas ou 'achadas'", diz.

Ele conhecia, por exemplo, a jovem Kathlen Romeu , de 24 anos, que morreu em junho deste ano, ap�s ser baleada durante uma a��o da Pol�cia Militar na comunidade do Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio.

"A gente chegou a frequentar a mesma igreja. Mas depois a gente frequentou igrejas em locais diferentes. Nunca mais a vi, at� que um tempo depois vi na televis�o que ela tinha morrido", comenta Samuel. "Acredito que poderia ter acontecido algo semelhante comigo naquele dia (20 de agosto), mas Deus n�o deixou", acrescenta o jovem.

Os negros representaram 77% das v�timas de homic�dios no pa�s em 2019, segundo o Atlas da Viol�ncia 2020, divulgado no fim de agosto deste ano pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica (FBSP) e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada).

O dado, o mais recente sobre o tema, aponta que a taxa de homic�dios entre os negros corresponde a 29,2 por 100 mil habitantes. O mesmo dado entre os n�o negros � de 11,2 para cada 100 mil. Isso indica que o risco de um negro ser assassinado no Brasil � 2,6 vezes maior que uma pessoa n�o negra.


Jovem mostra bala que atingiu violino na manhã de 20 de agosto
Jovem mostra bala que atingiu violino na manh� de 20 de agosto (foto: Arquivo pessoal)

'Antes da m�sica, eu n�o sabia o que fazer da vida'

Em meio � crescente viol�ncia contra pessoas negras no pa�s, Samuel avalia que a m�sica se tornou fundamental para ele e para outros jovens.

"Costumo dizer que foi fundamental para a minha trajet�ria. Antes da m�sica, eu n�o sabia o que fazer. Sabia que ia crescer, arrumar emprego e ser mais um trabalhando em uma �rea que n�o gosta. Mas quando me encantei pelo violino, descobri que ia ser nele que eu ia trabalhar com o que gosto", afirma.

Ele mora no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e viu a oportunidade de estudar um instrumento quando a organiza��o n�o governamental A��o Social pela M�sica do Brasil chegou � comunidade.

A organiza��o tem o objetivo de oferecer educa��o musical para crian�as e adolescentes que vivem em �reas vulner�veis.

"Uma tia me avisou do projeto e eu fui com minha m�e. Chegando l�, escolhi aprender violino, porque sempre achei um instrumento muito bonito, por causa do filme Titanic. Falei: 'p�, vou aprender a tocar esse aqui'", diz o jovem.

Nas primeiras aulas, ele, que na �poca tinha 14 anos, ficou desanimado porque pensou que n�o era o que realmente queria. "Mas quando parei, senti uma falta muito grande e voltei no m�s seguinte cheio de g�s", diz. "Fui me destacando e assim, dentro de, mais ou menos, um ano eu j� estava na orquestra tocando", acrescenta.

Posteriormente, ele foi selecionado para a Orquestra Sinf�nica Jovem do Rio de Janeiro, fundada pela A��o Social Pela M�sica para os alunos que se destacam.

Assim como Samuel, outros jovens que ele conhece tamb�m viram novas chances de um futuro melhor ao participar do projeto. "Espero que tenha muito mais projetos assim, porque ajuda muitas pessoas a n�o entrarem na vida errada. O projeto salva a vida legal. Eu j� tive conhecidos que perderam a vida ao entrar pro crime, porque n�o tiveram oportunidades", diz.


Instrumento ficou completamente danificado e precisará passar por manutenção
Instrumento ficou completamente danificado e precisar� passar por manuten��o (foto: Arquivo pessoal)

"Quando o projeto chegou, muita gente quis participar e est� nele at� hoje. Se n�o fosse pelo projeto, muita gente estaria nessa vida errada", comenta.

Diretora e fundadora da A��o Social pela M�sica do Brasil, Fiorella Solares diz que o projeto ajudou milhares de jovens. "Tem sido muito frut�fero. O projeto avan�ou muito e proporcionou a inclus�o social atrav�s da educa��o musical", diz.

Al�m do Rio de Janeiro, a iniciativa tamb�m est� presente nas periferias de Jo�o Pessoa (PB) e em Ji-Paran� (RO). Atualmente, segundo Fiorella, o projeto atende 4,7 mil alunos no pa�s, entre crian�as e adolescentes. Ela avalia que a iniciativa ajuda na redu��o das desigualdades sociais no Brasil, ao levar cultura a locais que dificilmente t�m acesso ao ensino da m�sica.

Ela considera que Samuel � um exemplo positivo do projeto. "Creio que ele vai poder se profissionalizar na �rea, porque tem dedicado mais tempo � m�sica e tem sido muito elogiado pelo professor. Estudar m�sica exige disciplina, � preciso dedicar muitas horas, como nos casos dos esportistas", afirma.

Com o passar dos anos, Samuel ganhou cada vez mais destaque na m�sica. Junto com o projeto, j� viajou para diversas regi�es do Brasil, al�m de ter conhecido Nova York, nos Estados Unidos, para participar de uma apresenta��o com o grupo.

A bala perdida

A dedica��o de Samuel faz com que ele queira aprender cada vez mais. Na manh� de 20 de agosto, ele tinha aula de violino. Quando acordou, ouviu barulhos de tiros na comunidade.

Segundo a Pol�cia Militar do Rio de Janeiro, naquela manh� houve um ataque a tiros contra a UPP (Unidade de Pol�cia Pacificadora) Macacos. Conforme nota encaminhada � BBC News Brasil, os policiais revidaram e come�ou um tiroteio.

"Os suspeitos fugiram e, ap�s estabilizado o terreno, foram encontrados um estojo calibre 9mm, muni��es 5.56, um r�dio comunicador. O material apreendido foi encaminhado � 20ºDP, onde a ocorr�ncia foi registrada", informa nota da Pol�cia Militar do Rio de Janeiro.


Jovem afirma ter encontrado um sentido para o seu futuro por meio das aulas de música em projeto social
Jovem afirma ter encontrado um sentido para o seu futuro por meio das aulas de m�sica em projeto social (foto: Arquivo pessoal)

Por volta das 7h, Samuel informou ao professor de violino sobre a situa��o na comunidade. A aula dele estava marcada para 9h e ele costuma levar cerca de 40 minutos no trajeto. O jovem temia que os tiros n�o parassem nas horas seguintes. "O professor falou que eu poderia chegar a qualquer hora, quando eu conseguisse sair de casa", conta Samuel.

"� normal deixar de sair de casa por causa de tiroteio. Querendo ou n�o, a gente meio que se acostumou com a viol�ncia. A verdade � essa. Acostumados ou n�o, isso � parte da nossa realidade", diz o jovem.

Os barulhos de tiros cessaram por volta das 9h20. "Liguei pro professor e falei que chegaria rapidinho. Ele me disse para ir com calma e tranquilo", diz Samuel.

O jovem desceu em dire��o a um ponto de �nibus. Nas costas, levava o violino em um estojo, que tinha uma al�a para ser carregado. "Sempre carreguei nas costas para ficar com as m�os livres", diz o jovem.

Quando chegou perto do ponto de �nibus, em uma �rea nas proximidades da comunidade, Samuel ouviu o tiroteio recome�ar. "Estava muito forte, parecia que estavam usando v�rios tipos de armas e granadas. Todo mundo se abaixou", relata. Ele estava na cal�ada e sequer teve tempo para abaixar tamb�m.

"Foi tudo muito r�pido. Eu parei e virei pro lado, dei um passo pra frente e ouvi um tiro muito estrondoso atr�s de mim. N�o deu tempo de me abaixar ou correr. Na hora, pensei: bateu um tiro no pr�dio ", diz Samuel.

O jovem olhou para tr�s e viu que nenhum tiro parecia ter atingido o pr�dio pr�ximo a ele. "O pessoal come�ou a correr em minha dire��o para me socorrer. Eu comecei a ficar desesperado, achei que eu fui baleado e n�o senti porque estava com o sangue quente. Tirei a camisa e vi que n�o tinha acontecido nada comigo", diz.

Ele olhou o estojo do violino e encontrou o buraco do tiro. "Eu abri (o estojo) e vi o violino todo quebrado, a bala estava l� dentro. Foi um desespero absurdo", relata.

Se n�o tivesse dado um passo para frente no momento do tiroteio ou se n�o estivesse com o violino nas costas, Samuel acredita que teria sido atingido pela bala.

"O tiro poderia ter acertado minha costela. Eu poderia ter morrido. Foi desesperador. Num segundo voc� t� vivo e no outro pode estar morto. Passa um filme na cabe�a. Voc� fica 'pirad�o' com isso", desabafa o jovem.

Os n�meros dos �ltimos anos s�o totalmente desfavor�veis a jovens negros como Samuel. O Atlas da Viol�ncia 2020 aponta que entre os anos de 2009 a 2019, o n�mero de negros que foram v�timas de homic�dio cresceu 1,6% (subiu de 33.929 v�timas em 2009 para 34.466 em 2019). J� os registros entre pessoas n�o negras tiveram redu��o de 33% no mesmo per�odo (de 15.249 em 2009 para 10.217 em 2019).

O risco aumenta quando � jovem. De 2009 a 2019, foram 623.439 v�timas de homic�dio no Brasil, sendo que 53% desse total eram pessoas com idades entre 15 e 29 anos.


Samuel é um dos destaques em orquestra de jovens no Rio de Janeiro
Samuel � um dos destaques em orquestra de jovens no Rio de Janeiro (foto: Alanna Dahan)

'Quero me tornar m�sico profissional'

Ap�s o susto por quase ter se tornado uma tr�gica estat�stica de v�timas de homic�dio, Samuel teve uma outra preocupa��o: como consertar o violino atingido pela bala.

O instrumento que Samuel carregava naquele dia era emprestado, porque o violino que ele usava nas aulas, que pertence ao projeto social, estava em manuten��o.

"Eu fiquei desesperado porque o violino n�o era meu, muito menos do projeto. Na semana anterior, eu tinha uma prova na orquestra para avaliar se o aluno estava evoluindo e, como o violino que eu usava tinha soltado uma pe�a, precisei pegar um outro emprestado", diz.

"Esse violino que eu estava no dia do tiroteio era de um luthier (especialista em instrumentos de corda), que me emprestou por causa da prova que eu tinha. Eu fiz a prova na orquestra e passei. Naquele dia (20 de agosto), eu iria para a aula e depois devolveria o violino", conta o jovem.

Samuel n�o tinha condi��es de arcar com os custos de um novo violino para entregar ao luthier. A �nica fonte de renda dele � a bolsa que recebe na orquestra, que o auxilia nos gastos com transporte e alimenta��o.

Com a ajuda dos respons�veis pela A��o Social pela M�sica do Brasil, ele criou uma vaquinha online com o objetivo de arrecadar R$ 8 mil, para ajud�-lo a pagar o violino atingido pela bala perdida (cerca de R$ 4 mil). O restante do valor ser� para auxili�-lo com a manuten��o do instrumento e tamb�m para apoiar despesas futuras do jovem com a m�sica.

At� a tarde desta ter�a-feira (14/09), o jovem j� havia arrecadado R$ 5,9 mil, doados por 54 pessoas. "Fiquei muito feliz com o apoio que recebi", afirma.

Al�m da vaquinha, Samuel tamb�m foi ajudado pelo violinista Alessandro Borgomanero, que soube do caso da bala perdida e doou um violino para Samuel. Mas o instrumento deve permanecer com o jovem somente se ele continuar na m�sica. Caso deixe a �rea, dever� devolver o item ao projeto social, para que outros alunos possam utiliz�-lo.

Mas Samuel deve continuar com o violino que recebeu, pois n�o pensa em desistir da m�sica. O jovem deve concluir o ensino m�dio em breve, "por n�o ter dado aten��o ao col�gio no passado", e j� tem planos para ingressar na universidade. "Quero me tornar m�sico profissional e viver disso", afirma.

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