
O avan�o do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da �gua doce do planeta, salinizou as �guas que banham as comunidades do arquip�lago do Bailique, no Amap�.
O fen�meno sempre ocorreu nesta �poca do ano, mas vem se intensificando nos �ltimos anos e passou a atingir comunidades que antes n�o eram impactadas, segundo os moradores.
Como consequ�ncia, a prefeitura de Macap�, que responde pelo arquip�lago, decretou estado de emerg�ncia na �ltima quinta-feira (14/10) e passou a entregar �gua pot�vel e cestas b�sicas �s comunidades.

Para um pesquisador que estuda o tema, o avan�o da saliniza��o pode estar ligado ao aumento global do n�vel do mar, um resultado das mudan�as clim�ticas.
Ele diz que a regi�o da foz do Amazonas tem passado por grandes transforma��es nos �ltimos anos. Um exemplo foi a dr�stica mudan�a no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.
Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atl�ntico e virou um afluente do Amazonas, altera��o que pode ter ampliado a saliniza��o no arquip�lago do Bailique e � associada � cria��o de b�falos e � constru��o de hidrel�tricas (leia mais abaixo).

Mais peixes de �gua salgada
O arquip�lago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quil�metros da sede de Macap�. S� � poss�vel acessar a regi�o por barco.
As principais atividades econ�micas do arquip�lago s�o a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de a�a�.
Geov� Alves, presidente da Associa��o das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de a�a�, diz � BBC News Brasil que sempre houve saliniza��o na regi�o entre os meses de setembro e novembro. Nessa �poca, em que chove menos, as �guas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avan�o da mar�.
Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fen�meno perde for�a, e a �gua volta a ficar doce.
Alves diz que, no passado, essa saliniza��o sazonal costumava afetar s� cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquip�lago. De alguns anos para c�, por�m, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.
A principal consequ�ncia, diz o morador, � a falta de �gua pot�vel para beber e cozinhar, j� que o rio � a principal fonte h�drica das fam�lias. "S�o comunidades carentes, que n�o conseguem comprar �gua mineral", afirma. Segundo Alves, um gal�o de 20 litros de �gua hoje custa at� R$ 25 no arquip�lago. As comunidades n�o t�m acesso a �gua encanada.
Outro efeito da saliniza��o tem sido sentido por pescadores. "Percebemos uma presen�a grande de peixes de �gua salgada, e o afastamento de peixes de �gua doce e camar�o", afirma Alves.
Essa mudan�a, por�m, n�o tem causado preju�zos aos pescadores, j� que peixes de �gua salgada s�o valorizados e t�m sido capturados em abund�ncia. "Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)", afirma.
J� no cultivo do a�a� ainda n�o foram notadas mudan�as, diz ele, pois os frutos s�o colhidos no per�odo chuvoso, quando a �gua j� voltou a ser doce.
"Mas ainda n�o sabemos se o solo vai ter algum preju�zo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produ��o", afirma.

A morte da foz do rio Araguari
Ele diz que muitos moradores do arquip�lago atribuem a crescente saliniza��o no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controv�rsia na regi�o e uma das maiores transforma��es na paisagem do Brasil nas �ltimas d�cadas.
Com cerca de 500 quil�metros de extens�o, o Araguari � o maior rio a correr exclusivamente no Amap�. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, at� 2013, desaguava no Atl�ntico ao norte do arquip�lago do Bailique, a poucos quil�metros da foz do Amazonas, ao sul.
Desde 2011, por�m, formou-se - espontaneamente, mas provavelmente em consequ�ncia da a��o humana - um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando at� que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.
Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e n�o mais no Atl�ntico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegeta��o desde ent�o.



Por causa dessa mudan�a, o fen�meno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a mar�, gerando uma onda que avan�a continente adentro.
Como n�o h� mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.
Outra consequ�ncia da mudan�a no curso do Araguari foi a acelerada eros�o nas �reas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fen�meno � conhecido localmente como "terras ca�das" e j� provocou a destrui��o de centenas de casas no Bailique.
Menor resist�ncia frente ao mar
Geov� Alves diz que a saliniza��o no arquip�lago se tornou mais intensa a partir da mudan�a no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari "ajudava o Amazonas a empurrar a �gua salgada para longe" da costa.
"Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da for�a, e o mar invadiu onde n�o havia resist�ncia", ele afirma.
Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amap� (Unifap), a tese faz sentido.
P�s-doutor em fluxos hidrol�gicos entre ecossistemas terrestres e aqu�ticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da regi�o desde 2004.
Em artigo em 2018 para o peri�dico cient�fico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudan�a no curso do Araguari.

Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba - que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas - pode estar relacionado a tr�s fatores:
1 - Din�micas naturais no estu�rio do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das �guas tanto em dire��o ao oceano quanto no sentido contr�rio, alterando o curso do rios;
2 - A implanta��o de usinas hidrel�tricas no alto curso do Araguari.
A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a din�mica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;
3 - A cria��o de b�falos nas margens do rio.
Introduzidos na regi�o no s�culo 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba - que, com a for�a das �guas, foi se expandindo at� alcan�ar o Amazonas.
Estima-se que haja 202 mil b�falos na bacia do Araguari, n�mero tr�s vezes maior que a popula��o humana local.
Em entrevista � BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a �gua salgada longe da costa.
Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente saliniza��o no Bailique, ambas associadas �s mudan�as clim�ticas.
A primeira � o aumento global no n�vel do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (ag�ncia espacial americana), o n�vel m�dio do mar subiu cerca de 20 cent�metros entre 1901 e 2018.
Cunha explica que, em todos os estu�rios (pontos onde o rio se encontra com o mar), h� um jogo de for�as entre o fluxo dos rios e as mar�s. Quando a mar� sobe e o fluxo do rio diminui, a �gua salgada consegue avan�ar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a mar� baixa e o fluxo do rio aumenta.
Por isso, diz Cunha, o aumento do n�vel dos oceanos tende a alterar esse equil�brio em favor do mar, fazendo com que a �gua salgada avance mais facilmente pelos rios.
� o que j� pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.

Outra poss�vel explica��o para o aumento da saliniza��o no arquip�lago do Bailique, segundo ele, � a eleva��o das temperaturas na regi�o, outro efeito das mudan�as clim�ticas.
O calor mais forte amplia a evapora��o, o que por sua vez acelera a circula��o de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.
Cunha afirma que as mudan�as em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avan�o no n�vel do mar. Segundo ele, a regi�o � extremamente sens�vel a altera��es - e como seus rios e lagos est�o conectados, uma mudan�a num ponto qualquer pode provocar consequ�ncias a v�rios quil�metros dali.
At� o fim deste s�culo, prev�-se que o n�vel m�dio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em rela��o aos padr�es pr�-industriais a depender do ritmo das emiss�es de gases causadores do efeito estufa.
As transforma��es no arquip�lago do Bailique jogam luz sobre uma das poss�veis consequ�ncias das mudan�as clim�ticas para popula��es costeiras. Sabe-se que a eleva��o do n�vel do mar tende a inundar muitas regi�es litor�neas, for�ando suas popula��es a migrar.
Para muitas comunidades em estu�rios, por�m, escapar das inunda��es talvez n�o seja suficiente, pois pode faltar �gua doce para abastec�-las.
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