A dificuldade de atua��o da Pol�cia Federal (PF) no pa�s vizinho e a localiza��o geogr�fica central na Am�rica do Sul transformaram a Bol�via no santu�rio do Narcosul, como os investigadores chamam o cartel que re�ne representantes da c�pula do Primeiro Comando da Capital (PCC) e associados no tr�fico internacional de drogas. Eles investem em joias, cl�nicas m�dicas, restaurantes, fazendas e passeiam em seguran�a com as fam�lias na regi�o de Santa Cruz de La Sierra, centro do poder do grupo e rota de passagem da droga que, vinda do Peru e da Col�mbia, se junta � coca�na propriamente boliviana.
Dali, os "narcos" brasileiros se locomovem em avi�es e helic�pteros para passar f�rias nas praias do Nordeste, onde fecham neg�cios com as ndrine, as fam�lias que integram a 'Ndrangheta, a m�fia da Cal�bria. Mais poderosa das organiza��es criminosas da It�lia, ela fica com 40% de toda a droga que o PCC negocia na Europa. Esse � o imposto para que os carregamentos de coca�na da Am�rica do Sul possam circular pelo continente. Ali, o quilo da droga, adquirido em Santa Cruz de La Sierra por US$ 1 mil, alcan�a at� US$ 35 mil.
Fotografias e mensagens in�ditas apreendidas nos telefones celulares do traficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, e informa��es das intelig�ncias do sistema prisional, da PF e da Pol�cia Civil paulista mostram a ostenta��o e o cotidiano dos l�deres do cartel. Dono de uma rede de cl�nicas m�dicas em S�o Paulo, Gordo estaria investindo no mesmo ramo na Bol�via.
"O Narcosul, o cartel do PCC, � a organiza��o criminosa que mais cresce hoje no mundo", afirma o procurador de Justi�a M�rcio S�rgio Christino, respons�vel em 2002 pela primeira den�ncia contra a c�pula da fac��o, quando Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, come�ava a ascender ao topo do grupo.
Lucro
Depois disso, muita coisa mudou. O lucro com o tr�fico internacional de drogas, estimado em mais de R$ 1,5 bilh�o por ano, cresceu tanto que a fac��o decidiu, em agosto passado, suspender a cobran�a de mensalidade de R$ 950 de seus integrantes em liberdade. Essa contribui��o, chamada de Cebola, era obrigat�ria desde os anos 1990, e servia para manter despesas como o PCC TUR, os �nibus que levam de S�o Paulo familiares de encarcerados at� pres�dios no oeste do Estado. Tamb�m era usada para pagar os servi�os da Sintonia dos Gravatas, o departamento jur�dico da fac��o, cestas b�sicas e outros servi�os do chamado "populismo carcer�rio" da organiza��o.
"Isso s� foi poss�vel gra�as ao tr�fico internacional", diz o promotor Lincoln Gakiya. Amea�ado de morte pelo PCC, Gakiya � respons�vel pela Opera��o Sharks, que identificou os chefes da fac��o que assumiram o controle da organiza��o nas ruas depois do acerto de contas que matou, em 2018, Rog�rio Jeremias de Simone, o Geg� do Mangue. O principal deles � Valdeci Alves dos Santos, o Colorido, de 49 anos.
Colorido � o respons�vel pela log�stica do tr�fico feito em nome do grupo. Homens do PCC e seus associados podem comprar, transportar e vender da "fam�lia", mas tamb�m mant�m neg�cios pessoais. "Eles se unem para transportar em um mesmo caminh�o, avi�o ou cont�iner droga de mais um traficante", afirma Gakiya.
Integrantes da Pol�cia Federal ouvidos pelo Estad�o apontam tr�s raz�es para que o PCC aja com desenvoltura na Bol�via, apesar de o Brasil manter acordo de colabora��o policial com o Pa�s. O primeiro seria a resist�ncia da Pol�cia Nacional boliviana em atuar em parceria com a DEA, a ag�ncia antidrogas americana. A segunda, uma certa rivalidade com o Brasil e, por fim, a possibilidade de os narcotraficantes contarem com a prote��o de policiais e militares corruptos.
Caso exemplar envolve a pris�o de Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, s�cio de Marcola e l�der do Narcosul. Ele permaneceu 20 anos foragido e s� foi apanhado em 2020, em Mo�ambique, por meio de uma a��o que contou com a ajuda da DEA. Fuminho estava na �frica desde mar�o de 2018 abrindo novas rotas de tr�fico para o Oriente e para a Europa com a ajuda de nigerianos. O objetivo seria se livrar do ped�gio da 'Ndrangheta e, assim, aumentar seus lucros.
Antes, morava na Bol�via sem ser incomodado. Comprou uma fazenda e produzia folhas de coca modificadas geneticamente, tornando-se s�cio de produtores bolivianos. "Uma vez, uma equipe de investigadores brasileiros chegou a t�-lo a cinco metros de dist�ncia, na Bol�via, mas n�o p�de fazer nada", conta Gakiya.
A Bol�via, segundo ele, ocupou a posi��o que nos anos 1990 era do Paraguai. Exemplo disso � que Marcola foi preso em 1999, em S�o Paulo, quando voltava do Paraguai, onde comprara uma fazenda. � na Bol�via que a fac��o mant�m sua frota de aeronaves. "Fuminho tinha um Citation (avi�o fabricado pela Cessna) com o qual se deslocava", diz Gakiya.
Hoje, essa frota � controlada por Colorido e pelos associados, como o Gordo. Nascido em Jardim de Piranhas, no Rio Grande do Norte, Colorido est� foragido desde 2014, quando saiu do pres�dio de Valpara�so, interior paulista, ap�s receber o benef�cio da sa�da tempor�ria no Dias dos Pais.
Ele foi preso pela primeira vez em 1993, em Atibaia (SP), acusado de uma les�o corporal. Nos dez anos seguintes, seria acusado meia d�zia de vezes por tr�fico, recepta��o, forma��o de quadrilha, falsidade ideol�gica e homic�dio, at� ser preso. Passou onze anos na cadeia, envolveu-se em duas rebeli�es e ascendeu na fac��o. "Ele se tornou o principal articulador do tr�fico internacional do PCC", afirma Gakiya.
Na Bol�via, Colorido controla ainda uma frota de caminh�es para o transporte da droga. Tem como bra�o direito S�rgio Luis de Freitas, o Mij�o. Mij�o seria dono de um restaurante em Santa Cruz de La Sierra. Outros traficantes da fac��o tamb�m investem parte do dinheiro na Bol�via. Nos quatro celulares de Lacerda, o Gordo, apreendidos pelo 4.� Distrito Policial de Guarulhos, em 2020, a per�cia achou fotografias dele inspecionando avi�es em Santa Cruz de La Sierra, al�m de festas e passeios de sua fam�lia no Pa�s. Ele ainda fotografou sedes de empresas e at� mesmo reuni�es com supostos fornecedores de droga em um bar. "As imagens mostram uma rotina absolutamente tranquila dele na Bol�via", conta o delegado Fernando Santiago, que comandou a Opera��o Soldi Sporchi e est� no Departamento Estadual de Investiga��es sobre Narc�ticos (Denarc).
Traficantes como Gordo usam criptomoedas nas transa��es internacionais (leia ao lado). "Eles pagam at� US$ 20 mil por 'voo cego' feito por pilotos de aeronaves para o Brasil", afirma Lacerda. Gordo integra o grupo que cresceu na Baixada Santista, com la�os fortes com a estiva do Porto de Santos. � aqui que entra aquele que � apontado pela PF como o maior traficante de drogas ligado � fac��o: trata-se de Andr� de Oliveira Macedo, o Andr� do Rap, que conta entre seus associados Sua�lio Martins Leda, o Canam, e Moacir Levi Correia, o Bi da Baixada. Gordo, Leda, Correia e Andr� do Rap foram soltos por decis�es judiciais entre 2016 e 2020 - dois por meio de habeas corpus, um em raz�o da covid-19 e outro recebeu o direito de responder ao processo por tr�fico em liberdade. "Todos est�o operando a partir da Bol�via", conta o delegado Rodrigo Costa, respons�vel pelo n�cleo da PF que investiga a fac��o em S�o Paulo.
A Bol�via ainda � apontada como o ref�gio de Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, outro investigado na Opera��o Sharks. Tuta era adido comercial do consulado de Mo�ambique em Belo Horizonte e � apontado pela intelig�ncia prisional como o chefe da fac��o nas ruas. O pa�s africano era o destino de um carregamento de 5 toneladas de coca�na que a PF surpreendeu no dia 5, no porto do Rio. Escondida em caixas de sab�o em p�, a carga foi a maior apreens�o da hist�ria do Rio.
Da �frica, a droga iria para Las Palmas, na Espanha. A passagem por Mo�ambique era uma forma de driblar a vigil�ncia das cargas vindas da Am�rica do Sul em portos europeus. Ela indica ainda uma nova rota do cartel - al�m dos portos de Santos e Itaja� (SC), a fac��o costuma usar Fortaleza, Recife e Natal para escoar a droga para Europa, �frica, �sia e Estados Unidos. Recentemente, a fac��o teve um carregamento descoberto em Buenos Aires e, agora, no Rio.
Empresa da Lava Jato, bitcoin e videogames
Um posto de gasolina em Mau�, na Grande S�o Paulo, � o elo entre a lavagem de dinheiro de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, l�der do Primeiro Comando da Capital (PCC), e mais uma empresa investigada pela Pol�cia Federal na Opera��o Lava Jato.
O posto tem entre seus propriet�rios a empresa DVBR Alfa Participa��es e � um dos 32 de uma rede por onde teria sido lavado dinheiro de um esquema da organiza��o que movimentou de forma at�pica R$ 245 milh�es, dos quais R$ 60,6 milh�es em esp�cie, de acordo com relat�rio da PF na Opera��o Rei do Crime. Segundo o delegado Rodrigo Costa, a opera��o investigou 78 empresas que, em quatro anos, movimentaram R$ 32 bilh�es e obteve o bloqueio de bens avaliados em R$ 730 milh�es.
Essa n�o foi a primeira vez que os esquemas de lavagem do PCC cruzaram os caminhos da Lava Jato. Em 2014, durante a Opera��o Oversea, da PF, os agentes acharam no cofre da casa de um s�tio do traficante Sua�lio Martins Leda, de 54 anos, documentos das empresas Labogem e Piroqu�mica, ambas relacionadas na Lava Jato. Sua�lio ficou preso at� julho de 2020, quando recebeu o direito de aguardar em casa o fim da pandemia de covid-19. Est� foragido.
A partir de 2018, os traficantes do PCC e seus associados passaram a usar a estrutura de doleiros para operar com criptomoedas e, assim, evitar a circula��o de papel para os pagamentos da fac��o. "Voc� ainda tem entrega f�sica, em esp�cie, mas para que vou me arriscar se posso dar um comando no computador e colocar 2 milh�es em uma conta na China, sem controle? O bitcoin n�o tem controle. Posso pegar uma exchange no Brasil, mas posso abrir uma conta atrav�s de uma offshore na Fran�a, na Inglaterra, na China", afirma Costa.
Al�m das criptomoedas, os traficantes est�o usando o canal de voz de videogames, como a party, do Playstation, para driblar a vigil�ncia policial. O que as redes sociais haviam embaralhado e subtra�do da pol�cia na d�cada passada - por meio da oferta de comunica��o criptografada - os videogames ampliaram. Desconfiados da seguran�a de aplicativos, bandidos t�m testado m�todos alternativos de comunica��o. Cada um se cadastra com apelidos e convida o "amigo" para fazer parte de seu canal de voz. N�o � necess�rio nem mesmo jogar. Os dois alvos podem "bater papo" pelo console como se estivessem em um telefone. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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