
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 29 de dezembro de 2017 e atualizada em 30 de dezembro de 2021
O costume de celebrar a chegada de um novo ciclo no calend�rio n�o � nada novo. Existe h� mais de 4 mil anos. Mas, naquela �poca, em vez de um "ano" novo, a passagem do tempo era contada pelas esta��es do ano.
O primeiro povo a celebrar a festa de passagem teria sido o da Mesopot�mia, �rea que corresponde hoje aos territ�rios de Iraque, Kuwait, S�ria e Turquia. Por dependerem da agricultura para sobreviver, eles celebravam o fim do inverno e in�cio da primavera, �poca em que se iniciava uma nova safra de planta��o.
Com isso, a festa de passagem dos mesopot�micos n�o se dava na noite do dia 31 de dezembro para 1º de janeiro, mas sim do dia 22 para o 23 de mar�o, data do in�cio da primavera no hemisf�rio Norte.Foi somente com a introdu��o de um novo calend�rio no Ocidente, em 1582 — o calend�rio gregoriano, adotado pelo papa Greg�rio 13 no lugar do calend�rio juliano — que o primeiro dia do novo ano passou a ser 1º de janeiro.
Assim como acontece nas comemora��es de Ano Novo atualmente, as celebra��es de passagem tamb�m representavam esperan�a. Se hoje alguns rituais t�m por objetivo atrair prosperidade e dinheiro — como usar a cor amarela na festa de R�veillon ou comer lentilhas — os cultos de 4 mil anos atr�s pediam alimento e fartura.
J� o termo R�veillon, usado em v�rias partes do mundo para descrever a festa de v�spera de Ano Novo, � mais recente: surgiu no s�culo 17, na Fran�a, e representava festas da nobreza que duravam a noite toda.
O R�veillon n�o tinha data para acontecer, mas com o decl�nio da nobreza francesa a palavra foi sendo adaptada para a festa de v�spera de Ano Novo — a palavra R�veillon deriva do verbo "acordar" em franc�s.
No s�culo 19, essas festas foram adotadas pela nobreza de outros lugares do mundo que eram influenciados pela cultura francesa.
A nobreza do Brasil foi uma das que adotaram o R�veillon, mas o sincretismo religioso caracter�stico do passado hist�rico do pa�s fez com que as comemora��es aqui adicionassem novos personagens, costumes e comidas �s festas de Ano Novo.

� moda brasileira
Em Salvador, a Igreja do Senhor do Bonfim � o principal ponto da cidade na �ltima sexta-feira do ano, chamada de "Sexta-feira da Gratid�o". Fi�is de todo o pa�s v�o at� o templo para pedir prote��o para o pr�ximo ano e levar objetos para benzer, como colares, as famosas fitinhas do bonfim, chaves de casa, fotos e at� o carro.
Em todas as praias do Brasil, seguidores de Iemanj� costumam passar o R�veillon no litoral para fazer oferendas ou pular as sete ondas.
Iemanj�, a Rainha do Mar, � uma divindade africana originalmente vinda da Nig�ria, da tradi��o chamada de iorub�, e incorporada pelo candombl� e pela umbanda no Brasil.
"Na Nig�ria, o ritual a Iemanj� � feito no dia 2 de fevereiro (assim como na Bahia), mas ele tamb�m ocorre no Brasil durante os �ltimos dias do ano e na v�spera de Ano Novo", explicou o professor da Unirio Zeca Ligi�ro, autor de livros sobre tradi��o e performance afro-brasileira.
"Iemanj� se popularizou nas religi�es afro-brasileiras, como a umbanda, o Tambor de Mina e o candombl� pela for�a deste arqu�tipo feminino que ela representa: m�e, vaidosa que gosta de perfumes, flores e agrados e protetora das gestantes", completou o professor.
Ligi�ro contou que a umbanda nasceu no Brasil depois que os rituais africanos foram duramente perseguidos no pa�s, tendo sido diretamente influenciada pela cultura nacional.
"Essa nova religi�o de matriz africana, a umbanda, mesclou v�rias tradi��es amer�ndias, esp�rita e cat�lica, criando uma nova imagem para Iemanj�, uma esp�cie de v�nus cabocla, cujos quadris s�o mais fartos que os seios", explicou o professor.
"A imagem de Iemanj�, por causa dessa mescla, parece sair do mar como uma virgem de Botticelli, mas distribui gra�as com suas palmas abertas como algumas imagens de Virgem Maria. Ali�s, ela tem semblante de Maria, mas traz uma estrela na testa (s�mbolo da alta espiritualidade africana) e tem longos cabelos negros, mais ind�genas que afro."
"Todas as religi�es fazem empr�stimos umas das outras para construir suas ritualidades espec�ficas", explicou o professor de Hist�ria Moderna da Unicamp Rui Luis Rodrigues, ao falar sobre a origem hist�rica das festas de final de ano.
"Pesquisas hist�ricas, antropol�gicas e teol�gicas t�m indicado os variados empr�stimos que os grupos religiosos contraem entre si em seus rituais."
O umbandista Marcelo Rodrigues, do Rio de Janeiro, contou ter o h�bito de fazer, todos os finais de ano, oferendas a Iemanj�.
"Procuro fazer a virada de ano na praia, mas, quando n�o � poss�vel, costumo ir um ou dois dias antes ao mar."
Sete ondas
A rela��o do brasileiro com as praias nacionais durante o R�veillon, no entanto, n�o � exclusiva de devotos de Iemanj�.

Apesar de morar longe do litoral, no interior de S�o Paulo, a fam�lia do paulista Rodrigo da Gama costuma passar o R�veillon nas praias de Santa Catarina, Estado onde t�m familiares.
"Quando estamos em Santa Catarina, sempre vamos at� a praia, usamos roupas brancas e pulamos as sete ondas na virada", contou Gama.
De uma fam�lia de "cat�licos n�o praticantes", ele explicou que o ritual de usar branco e pular as ondas, diferente de como � para os umbandistas, n�o tem significado religioso, somente espiritual.
A tradi��o da fam�lia dele demonstra como a figura de Iemanj� se popularizou no Brasil, principalmente nos anos 1950 e 1960, quando seu ritual passou a ser praticado nas praias da famosa Zona Sul do Rio de Janeiro, ganhando visibilidade nacional.
"Mas a partir da organiza��o de shows pirot�cnicos e de patroc�nios milion�rios para as festas nas praias cariocas, os rituais a Iemanj� t�m sido banidos para praias cada vez mais distantes", afirmou Ligi�ro.
"Percebemos que os rituais de oferendas a Iemanj� correm cada dia mais risco, mesmo com Iemanj� congregando milh�es de pessoas de outras religi�es, que se vestem de branco e v�o para a praia. Assistimos a volta da persegui��o �s religi�es afro-brasileiras com a hostiliza��o desses rituais."
A tradi��o de usar branco
Usar roupas brancas na festa de Ano Novo se tornou comum no Brasil na d�cada de 1970, quando membros do candombl� passaram a fazer suas oferendas na praia de Copacabana. Pessoas que passavam pela praia e viam o ritual acharam bonito o branco — e adotaram a vestimenta.
A tradi��o de pular as sete ondas na virada do ano, fazendo sete pedidos diferentes, tamb�m est� ligada � umbanda e ao culto a Iemanj�.
O sete � um n�mero cabal�stico, que na umbanda representa Exu, filho de Iemanj�. Tamb�m tem rela��o com as Sete Linhas de Umbanda, conceito de organiza��o dos esp�ritos sob o comando de um orix�s. Cada pulo, nesse caso, seria o pedido a um orix� diferente.

Os dias de Ano Novo
As comemora��es de Ano Novo n�o acontecem necessariamente no dia 1º de janeiro. Isso porque existem v�rios calend�rios que organizam o ciclo anual de maneira diferente do gregoriano.
Para os mu�ulmanos, o Ano Novo corresponde ao m�s de maio do calend�rio gregoriano; para os judeus, corresponde ao per�odo de final de setembro e in�cio de outubro; j� os chineses celebram a passagem entre final de janeiro e in�cio de fevereiro.
A advogada Anna Beatriz Dodeles contou � BBC que sua fam�lia � judia e n�o comemora o Ano Novo do calend�rio gregoriano.
"O 'Ano Novo' Judaico se chama Rosh Hashana, conhecido como Dia do Julgamento e a Cabe�a do Ano. Ele acontece em um dos meses mais importantes do juda�smo, o m�s de Elul", contou ela.
"Essa festividade ocorre no s�timo m�s do calend�rio judaico — Lunar — e marca para os judeus o nascimento do mundo, o in�cio da cria��o humana."
Para celebrar o Rosh Hashana, cujas comemora��es duram dois dias, a fam�lia Dodeles faz ora��es e come determinadas comidas t�picas para a comunidade judia, como o vinho e a chal� redonda (p�o fermentado arredondado) umedecido no mel.
"Nessa �poca, devemos pedir perd�o �s pessoas que magoamos, n�o de forma gen�rica, mas de maneira pensada. Caso aquela pessoa n�o aceite as desculpas, o pedido deve ser feito no m�nimo tr�s vezes, e o mais importante � mudar o nosso comportamento para que aquilo n�o se repita naquele novo ano", explicou a advogada.

J� a fam�lia da jornalista Fl�via Sato, que � budista, tamb�m segue tradi��es da cultura japonesa. Por isso, sua fam�lia se despede do ano velho no dia 31 de dezembro, mas fazendo faxina na casa.
"No dia 31, na casa dos meus pais, praticamos um ritual chamado Oosouji, que � uma limpeza minuciosa da casa para renovar as energias do ambiente e come�ar o Ano Novo do zero, com tudo limpo e organizado", conta a jornalista.
A comida tamb�m � importante neste ritual de passagem. "N�o pode faltar ozoni, um caldo que leva um bolinho de arroz; o moti, que, segundo a tradi��o, traz boa sorte para o ano que se inicia. Depois da queima de fogos e de comer moti, nossa festa costuma acabar cedo, porque no dia seguinte, logo pela manh�, todos nos reunimos novamente para iniciar o ano em ora��o", descreveu ela, explicando que o Ano Novo � o principal feriado em fam�lia dos budistas.
Al�m da faxina, do jantar em fam�lia e da queima de fogos, tamb�m h� rituais individuais na casa dela.
"Meus pais sempre me incentivaram a aproveitar essa �poca para escrever todos os meus objetivos do ano, para que eu pudesse ter foco e realizar minhas metas pessoais."
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