Pedras, grades e espetos de ferro. Esses objetos foram inseridos na arquitetura de diversas constru��es e equipamentos p�blicos em diversas cidades do Brasil, como S�o Paulo e Florian�polis, para evitar a presen�a e perman�ncia dos mais pobres, principalmente os moradores de rua.
H� meses, o padre J�lio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua em S�o Paulo, usa as redes sociais para criticar essas interven��es e pressionar para que empresas e at� mesmo �rg�os p�blicos recuem e retirem essas instala��es.
Em uma das fotos publicadas pelo padre, � poss�vel ver um banco de pra�a com uma grade no meio dele, para evitar que uma pessoa se deite. J�lio Lancellotti define essas a��es como aporobofia — avers�o aos mais pobres.
Outra imagem mostra o banco de um ponto de �nibus em Florian�polis feito com ferros em forma de cilindro e espa�ado. A estrutura tamb�m impede que algu�m se deite. Nessa mesma foto, aparece um morador de rua dormindo no ch�o, em cima de um papel�o.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Florian�polis informou, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Planejamento Urbano, que os abrigos de passageiros que aparecem na publica��o do padre J�lio no Instagram "j� est�o sendo substitu�dos por novos h� mais de um ano".
A prefeitura disse ainda que "os novos pontos de �nibus s�o humanizados, modernos e t�m baixo impacto na paisagem". A administra��o municipal afirmou que os novos modelos j� est�o implantados em diversos pontos da cidade e que os antigos ser�o reciclados e transformados em balizadores urbanos de prote��o de pedestres nas cal�adas.
A pasta concluiu dizendo que "o modelo antigo de abrigo de passageiros foi feito em outra gest�o" e que n�o sabe quem o projetou.
Campanha nacional
Com quase 1 milh�o de seguidores no Instagram, o padre J�lio Lancellotti disse � BBC News Brasil que est� sensibilizado pela quantidade de pessoas que est�o mobilizadas nessa campanha para denunciar instala��es hostis.
"Eu n�o pe�o nada, mas elas me mandam fotos e dizem: 'lembrei de voc�'. Outros falam que n�o percebiam que existiam constru��es hostis na cidade e agora est�o percebendo. Isso tem sido importante porque a inten��o das minhas publica��es � sensibilizar as pessoas e sair da hostilidade para a hospitalidade", afirmou.
O padre ressaltou que � importante n�o confundir instala��es hostis com o port�o de uma casa ou a grade de um jardim. Mas ele afirmou que algumas pessoas instalam alguns objetos quase impercept�veis, como obras de arte, vasos e plantas que servem como obst�culo, com a inten��o de apenas obstruir um espa�o p�blico.
Entre os exemplos mais desumanos, o padre cita um sistema de gotejamento instalado em uma cal�ada na cidade de Santa Rita do Sapuca�, no interior paulista, para evitar que pessoas fiquem paradas na cal�ada.
https://www.instagram.com/p/CYSBxjKvuZY/
"Teve gente dessa cidade que ficou irritada porque fiz duas publica��es de l�. Alguns n�o conseguem entender que eu n�o quero que as pessoas fiquem ao relento ou embaixo dos viadutos e marquises. Mas que essas pessoas que est�o mais preocupadas com hostilidade oferecem menos com acolhimento".
O padre lembrou ainda que essas instala��es com grades e ganchos, por exemplo, podem causar acidentes. A preocupa��o dele � especialmente com os mais vulner�veis, como idosos e pessoas com defici�ncia f�sica.
"Al�m de ser desumano, coloca uma sociedade inteira em risco. A pessoa pode sofrer uma queda e se acidentar gravemente nesses ganchos. A cidade que instala isso n�o odeia os pobres. Mas nessa cidade existe �dio contra os pobres", afirmou o padre J�lio.
Mas o padre disse ter recebido not�cias de que alguns bancos est�o reunindo os gerentes para discutir esse assunto com eles e pedir para que n�o implantem mais esse tipo de instala��o nas ag�ncias.

Aporofobia
Aporofobia foi eleita a palavra do ano em 2017 pela Funda��o Espanhol Urgente (Fund�u). O termo tem sido usado de maneira recorrente pelo padre J�lio Lancellotti como uma campanha para descrever as pessoas que implantam as instala��es urban�sticas que impedem a aproxima��o e perman�ncia de moradores de rua em locais p�blicos.
Segundo ele, o motivo dessas interven��es � a avers�o �s pessoas mais pobres.
O termo aporofobia vem de duas palavras gregas: "�poros", o pobre, o desamparado, e "fobia", que significa temer, odiar, rejeitar. Da mesma forma que "xenofobia" significa "avers�o ao estrangeiro", aporofobia � a avers�o ao pobre pelo fato de ser pobre.
Em entrevista � BBC, a escritora e fil�sofa espanhola Adela Cortina, que inventou a palavra aporofobia h� 20 anos, explica que o preconceito ao pr�ximo � causado por quest�es financeiras.
"E a palavra surgiu da forma mais simples, quando percebemos que n�o rejeitamos realmente os estrangeiros se s�o turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles s�o pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da pr�pria fam�lia."

Professora da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, Raquel Rolnik diz que esse tipo de instala��o ocorre n�o apenas em cidades brasileiras, mas tamb�m em grandes metr�poles em todo o mundo.
"Ela est� presente em duas situa��es: cidades com muitos moradores de rua, como Los Angeles, nos Estados Unidos e regi�es muito desiguais. O livro Cidade de Quartzo relata as estrat�gias urbanas usadas nos anos 1980 e 1990 para evitar a presen�a das pessoas em situa��o de rua na cidade americana", afirma.
Em entrevista � BBC News Brasil, a urbanista explicou que a "marca" dessa rela��o entre os mais ricos e os moradores de rua � a desigualdade. E que a pandemia aumentou ainda mais o n�mero de pessoas sem teto.
"Em plena crise, os alugu�is e pre�os de im�veis n�o pararam de subir. A quantidade de pessoas que n�o tem onde morar porque n�o podem pagar nem mesmo aluguel numa favela ou periferia � muito grande. Diante disso, precisamos de pol�ticas p�blicas de moradia para lidar com esse fen�meno", disse � BBC News Brasil.
https://www.instagram.com/p/CYSP9Jyv6Zj/
Segundo a urbanista, hoje n�o h�, em n�vel municipal, estadual ou federal, nenhuma pol�tica efetiva para diminuir o n�mero de moradores de rua.
"O abrigamento � uma antipol�tica. O que deve haver � uma defesa de pol�ticas de moradia. O abrigo n�o � a casa dessa pessoa. N�o � um lugar onde ela consegue respirar e ter privacidade", afirmou.
Para Rolnik, essas interven��es que afastam pessoas da frente de lojas e casas s�o respostas dos mais ricos a esse grande aumento da popula��o de rua.
"A ocupa��o da rua � a �nica alternativa dessas pessoas e a resposta dos mais ricos �: 'N�o quero essas pessoas na porta da minha casa ou diante do meu neg�cio'. E essas interven��es s�o as estrat�gias que eles usam para que aquele lugar n�o se torne um abrigo", explicou.
Um dos exemplos dados pela urbanista � de que os bancos de pra�a, que eram retos, agora s�o ondulados justamente para evitar que pessoas durmam neles. Para ela, a visibilidade dada a esse assunto, por meio das publica��es do padre J�lio, s�o essenciais para que as pessoas entendam o que significa cada uma dessas interven��es e n�o passem despercebidas, gerando uma onda de solidariedade.
No entanto, ela diz que essas exposi��es s�o v�lidas quando s�o seguidas de desdobramentos pr�ticos nas leis e no comportamento das pessoas.
Lei Padre J�lio Lancellotti
A Comiss�o de Desenvolvimento Urbano, da C�mara dos Deputados, aprovou em novembro de 2021 o projeto de lei Padre J�lio Lancellotti, que pro�be a implanta��o de t�cnicas e constru��es que usem equipamentos para afastar ou restringir o uso de espa�os p�blicos, principalmente por pessoas em situa��o de rua.
O relator do Projeto de Lei � o deputado federal Joseildo Ramos (PT-BA). O texto ainda precisa passar pela Comiss�o de Constitui��o e Justi�a da C�mara, antes de seguir para vota��o.
O padre J�lio disse � reportagem que gostou muito do projeto de lei, mas acha dif�cil que ele seja aprovado.
"� muito dif�cil aprovar um projeto desses a n�vel nacional, principalmente por conta da nossa atual conjuntura pol�tica. Existe um na Assembleia Legislativa de S�o Paulo e outros em v�rias c�maras municipais que eu acho ter mais chances. Temos esperan�a, mas acho dif�cil. O principal � a consci�ncia e a press�o que conseguimos fazer em com�rcios, bancos e igrejas para acabar com essas a��es", disse o padre.
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