
A subida ocorre no mesmo ano em que o Brasil registrou o maior n�mero de resgates de pessoas em situa��es an�logas � escravid�o desde 2013. Foram 1.937 pessoas resgatadas. Em 2020, tinham sido 936. "N�s temos muito mais trabalhadores em situa��es an�logas � escravid�o do que os 1.900. O que n�o temos s�o condi��es de fazer as fiscaliza��es, se tiv�ssemos mais auditores, mais or�amento e mais apoio ter�amos muito mais trabalhadores resgatados", afirma o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait) e coordenador da superintend�ncia Regional do Trabalho em Pernambuco, Carlos Silva. "N�s tivemos um aumento das den�ncias exatamente por conta da pandemia'', completa.
O professor de sociologia da Universidade de Bras�lia (UnB) e pesquisador do tema S�rgio Sauer atribui os n�meros � situa��o econ�mica vivida pelo pa�s, que atinge especialmente os mais pobres e vulner�veis. "Eles aceitam qualquer trabalho e, ao chegarem no local ou com o passar do tempo, vai se tornando clara a situa��o de explora��o", explica. Em 2021, o Brasil bateu o recorde de 14,7% de desempregados, que atingiu 14,8 milh�es de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE). O pa�s terminou o ano com a quarta maior taxa de desemprego entre as principais economias do mundo, de acordo com ranking da ag�ncia de classifica��o de risco Austin Rating.
O professor de economia da UnB Evil�sio da Silva Salvador tamb�m cita outros fatores que podem ter contribu�do para este aumento, como a flexibiliza��o na legisla��o trabalhista e o aumento da fome. "Muito provavelmente h� uma subestima��o das informa��es. O censo est� atrasado h� dois anos, ent�o, n�o temos muitas estat�sticas", enumera.
No ano passado, chegou-se a um n�mero recorde de 447 locais inspecionados por suspeita de trabalho an�logo � escravid�o. Houve opera��es em todos os estados. O governo gastou R$ 2,8 milh�es na fiscaliza��o, segundo dados enviados ao Correio pelo Minist�rio do Trabalho, por meio da Lei de Acesso � Informa��o. S� em 2013 tinha havido um investimento parecido.
Especialistas e profissionais que atuam na fiscaliza��o dizem, no entanto, que os n�meros t�m de ser vistos no seu contexto. Segundo Carlos Silva, do sindicato dos auditores fiscais, o resultado das fiscaliza��es foi poss�vel devido a um empenho das equipes, realoca��o de auditores e uma organiza��o dos trabalhos por parte da Divis�o de Fiscaliza��o para Erradica��o do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspe��o do Trabalho (Detrae/ SIT). "No ano passado, a Detrae organizou uma opera��o nacional, em alus�o � semana nacional de combate ao trabalho escravo, em que todas as superintend�ncias tiveram que fazer uma opera��o", afirma. "Em janeiro, v�rios auditores de outras �reas foram fazer fiscaliza��es", acrescenta.
O auditor fiscal Magno Riga tamb�m atribui o alto n�mero a uma maior demanda, especialmente desde o segundo semestre de 2021 — n�o apenas den�ncias, mas tamb�m informa��es vindas dos �rg�os parceiros, como pol�cias, Ibama, ICMBio. "Nos 'viramos nos 30' para atender � demanda crescente", afirma.
Segundo Carlos Silva, a �rea do trabalho an�logo � escravid�o n�o tem um or�amento pr�prio desde 2013 e isso sempre p�e em risco a continuidade das a��es. "O or�amento para fiscaliza��es n�o � protegido. N�s temos um montante que se mistura com toda a inspe��o do trabalho. Todos os anos, quando tem contingenciamento, o or�amento da fiscaliza��o � cortado. � sempre uma decis�o pol�tica", explica.
De acordo com dados levantados pelo N�cleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundo P�blico, Or�amento, Hegemonia e Pol�ticas Sociais da UnB, a pedido do Correio, o or�amento para inspe��es trabalhistas s� correspondeu a 0,03% dos gastos federais com trabalho em 2021. As verbas efetivamente aplicadas na fiscaliza��o do trabalho escravo s�o baixas e compostas, em sua maioria, por gastos com seguro desemprego dos resgatados, segundo o professor Evil�sio da Silva, l�der do n�cleo e especialista em or�amento p�blico. Ele destaca que a melhora observada em 2021 nos gastos, provavelmente, seja um reflexo da retomada econ�mica do pa�s, com as viagens voltando a ocorrer, por exemplo. Al�m disso, o professor acredita que a recria��o do Minist�rio do Trabalho, no ano passado, deveria ter tido um impacto maior no or�amento. "A inspe��o do trabalho est� enfraquecida. Mais do que dados econ�micos, o or�amento reflete uma pol�tica governamental, as prioridades da gest�o", explica.

Em dezembro, a Comiss�o Nacional para Erradica��o do Trabalho Escravo (Conatrae) demonstrou preocupa��o com os recursos para a fiscaliza��o trabalhista para 2022. Em nota p�blica, a comiss�o refor�ou "a necessidade de assegurar recursos or�ament�rios, sobretudo se for considerado que os recursos destinados a esta rubrica v�m registrando queda consider�vel nos �ltimos anos". As proje��es n�o s�o boas. Quase um ter�o do or�amento do Minist�rio do Trabalho e Previd�ncia aprovado pelo Congresso foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Apesar disso, pelo texto da Lei Or�ament�ria Anual (LOA), a previs�o de gastos para 2022 com inspe��es trabalhistas � maior do que em 2021. Por�m, o or�amento � 34% do que foi em 2017 e metade do que foi aprovado em 2019. O Minist�rio do Trabalho foi questionado sobre os valores previstos, especificamente, para o combate ao trabalho escravo, mas n�o retornou os telefonemas.
A vice-presidente da Associa��o Nacional dos Magistrados da Justi�a do Trabalho (Anamatra), a ju�za do trabalho Luciana Conforti, alerta, ainda, para o fato de o governo federal ter alterado uma norma que aumentava os recursos para os grupos m�veis que fazem as opera��es de resgate, com verbas que resultaram das fiscaliza��es. Em 2021, um ato do Poder Executivo recusou os recursos que vinham da aplica��o de multas do Minist�rio P�blico do Trabalho, dos Termos de Ajustamento de Conduta", destaca. No fim do ano passado, o deputado Rog�rio Correia (PT-MG) entrou com requerimento para que seja convocada uma audi�ncia p�blica sobre esta altera��o.
De acordo com Carlos Silva, a falta de or�amento � sentida no dia a dia das opera��es. "Muitas vezes, vamos fazer a opera��o e n�o temos carros ou n�o est�o em boas condi��es, n�o temos telefones com sinais de sat�lite", relata.
A Defensoria P�blica da Uni�o tamb�m se queixa da falta de condi��es para a sua participa��o nas fiscaliza��es. "Nosso or�amento est� tendo cortes. N�o conseguimos acompanhar todas as a��es porque n�o temos efetivo. Falta tamb�m apoio do governo ao trabalho", afirma o coordenador do grupo de trabalho de assist�ncia aos trabalhadores resgatados na defensoria p�blica, William Charley. Hoje, o Brasil tem cinco grupos m�veis, respons�veis por fazer as opera��es de fiscaliza��o e resgate. O pa�s j� chegou a ter 10.
"O Brasil serve de exemplo, j� fomos elogiados pela OIT e pela ONU, mas nos �ltimos anos tivemos alguns retrocessos na pol�tica. � expressivo termos tido tantos resgates diante da falta de apoio. Temos um empenho das equipes de fiscaliza��o e do Minist�rio P�blico. Um esfor�o das pessoas envolvidas e n�o do governo", afirma Raissa Roussenq, professora de direito na UnB e autora de um livro sobre a escravid�o moderna.
A mediatiza��o dos casos de resgates tamb�m poder� estar tendo efeito nas den�ncias. “A pessoa v� de casa e talvez esteja com um parente passando por isso. Ent�o ajuda demais na conscientiza��o”, completa L�via Miraglia, coordenadora da Cl�nica de Trabalho Escravo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A ju�za Luciana Conforti destaca que uma das quest�es mais cr�ticas para a manuten��o das a��es � a falta de auditores-fiscais do trabalho. Desde 2013 n�o h� concurso p�blico para o cargo. No momento, h� uma defasagem de mais de 1.600 vagas, segundo a subsecretaria de Inspe��o do Trabalho. Hoje h� 2.026 auditores para um universo de 86 milh�es de trabalhadores no pa�s. "Fica cada vez mais dif�cil organizar opera��es com a presen�a de auditores", destaca o procurador Italvar Medina, vice-coordenador nacional de Erradica��o do Trabalho Escravo do Minist�rio P�blico do Trabalho.
No fim do ano passado, a necessidade do concurso para auditores fiscais foi pauta de reuni�o da Conatrae e assunto de nota p�blica. Para Italvar, a grande defasagem de auditores faz com que o Brasil esteja descumprindo acordos internacionais de manter os meios para o combate ao trabalho escravo, como a Conven��o 105 da Organiza��o Internacional do Trabalho (OIT).
Em nota, o Minist�rio do Trabalho e Previd�ncia informou que est� em tr�mite um pedido para realiza��o de concurso p�blico para o provimento dos cargos de auditor-fiscal do trabalho e que "n�o houve qualquer corte de recursos financeiros ou humanos destinados para as opera��es fiscais de combate �s condi��es de trabalho an�logas �s de escravo e que diversas estrat�gias foram incrementadas para auxiliar as a��es fiscais."
Pol�mica
Durante o governo Bolsonaro pelo menos mil normas trabalhistas foram alteradas. O governo explicou que as mudan�as tiveram como intuito "desburocratizar e simplificar normas trabalhistas, preservando os direitos dos trabalhadores", segundo o Minist�rio do Trabalho. O professor S�rgio Saure n�o concorda: "Essas mudan�as nas leis trabalhistas tiraram poder do Minist�rio P�blico do Trabalho”, afirma: “A gente tem uma situa��o de crise econ�mica com leis trabalhistas mais flex�veis. Isso tudo vai gerando um ambiente mais prop�cio para pr�ticas ilegais”, acrescenta.
O presidente Jair Bolsonaro j� deu diversas declara��es ao longo do mandato criticando a maneira como � classificado o trabalho escravo no Brasil. Em dezembro, em um evento da Confedera��o Nacional da Ind�stria (CNI), Bolsonaro criticou uma a��o no Cear�. Para o presidente, as multas s�o desproporcionais. "Multou por qu�? Porque n�o tenho banheiro qu�mico. Eu estou a 45ºC e obviamente n�o tenho banheiro qu�mico. O cara vai deixar de colher a folha ali, andar 500m, fazer um xixi e voltar? Meteram a caneta no cara. Tamb�m uma mesinha feita de forma r�stica, com madeira da regi�o, para servir o almo�o. N�o estava adequada aquela mesa. Tamb�m a quest�o do dormit�rio, o pessoal dormia em uma barraca. Multa em cima dele”, disse na ocasi�o. No pr�prio Plano de Governo, previa-se o fim da expropria��o de terras de ruralistas autuados por trabalho escravo.
A Secretaria de Comunica��o Social da Presid�ncia da Rep�blica (Secom) foi questionada sobre a posi��o do governo e do presidente Bolsonaro, mas informou que quem responde pelas a��es de combate ao trabalho escravo � o Minist�rio do Trabalho. A pasta tamb�m n�o deu retorno.

No Congresso Nacional, tramitam pelo menos tr�s projetos de lei que querem alterar o que se entende hoje por trabalho escravo para somente situa��es com ocorr�ncias em que se identifica o cerceamento � liberdade do trabalhador, excluindo casos em que eles s�o submetidos a situa��es degradantes. O mais famoso deles foi proposto pelo ex-deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO). A ex-ministra da Agricultura, Pecu�ria e Abastecimento K�tia Abreu (PP-TO) e a atual ministra da pasta, Tereza Cristina, tamb�m j� declararam ser a favor da mudan�a . Em 2017, o conceito chegou a ser mudado por uma portaria, que foi revogada logo depois ap�s receber cr�ticas de v�rios setores. Os defensores da mudan�a argumentam que hoje a defini��o � muito gen�rica, e por isso podem ocorrer injusti�as com empregadores.
Na justi�a
>> Em 2016, o Brasil foi condenado na Corte Internacional de Direitos Humanos pelo caso Fazenda Brasil Verde. Localizada em Sapucaia, no sul do Par�, a fazenda mantinha 128 pessoas em situa��o de trabalho escravo. Pela condena��o, o Brasil teve que reabrir a investiga��o e o caso ainda corre na Justi�a.
>> Entre 2008 e 2019, 20.174 trabalhadores foram resgatados, mas somente se atribu�a responsabilidade penal a 112 pessoas. A taxa de condena��o � de 4,2%, segundo estudo feito pela Cl�nica do Trabalho Escravo da UFMG. "� um crime que ainda compensa. As a��es demoram muito tempo”, destaca L�via Miraglia
O caminho para a solu��o
Este ano, a Universidade Federal da Bahia junto ao Minist�rio P�blico do Trabalho est� dando o pontap� inicial de um projeto que tem como intuito se tornar uma pol�tica p�blica. Se trata do Vida P�s Resgate. A ideia � usar os recursos ganhos nos processos trabalhistas por danos morais coletivos e reverter em fazendas agroecol�gicas. “Dessa forma, eles t�m oportunidade de se emancipar”, destaca Vitor Filgueira, coordenador da iniciativa. Os dois primeiros projetos pilotos j� est�o em fase inicial. Um na regi�o cacaueira, em Una, no sul da Bahia, com cerca de 10 fam�lias, e outro em Aracatu, que atender� cerca de 50 pessoas, que trabalhar�o com piscicultura.
Em Aracatu, o assentamento deve beneficiar parte de um grupo de 64 pessoas que foram resgatadas em julho do ano passado de uma colheita de caf� em uma fazenda em Pedregulho, em S�o Paulo. O intuito do projeto � evitar que as pessoas voltem para a situa��o de explora��o. De acordo com pesquisa feita pela Cl�nica do Trabalho Escravo, a taxa de reincid�ncia no trabalho escravo chega a 38%.
Nesse mesmo sentido, Magno Riga aponta que para solucionar a quest�o � necess�rio o andamento da reforma agr�ria. “H� uma desigualdade no campo muito grande. Os grandes produtores empregam alta tecnologia, mas ainda fazem uso de uma m�o de obra prec�ria”, ressalta. Essa tamb�m � a opini�o do procurador. “� preciso garantir o acesso � terra para os trabalhadores no meio rural para que eles possam garantir sua subsist�ncia”, afirma.
De acordo com a professora Raissa, para mudar a situa��o � necess�rio entender o que leva as pessoas � situa��o de explora��o. “Por que ainda temos trabalho escravo? 80% dos resgatados s�o pessoas negras e n�s somos uma sociedade de base escravista. Temos que ver quais fatores fazem com que o trabalho escravo seja naturalizado”, diz.
Para o defensor p�blico William Charley, � preciso que a situa��o econ�mica do pa�s tenha uma melhora. “� uma situa��o externa a n�s, o ambiente econ�mico do pa�s precisa melhorar. Ter mais oportunidades de emprego. Fazer o concurso para auditor e aumentar o or�amento dos �rg�os ligados � fiscaliza��o”, enumera.
Um outro projeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atua no ensino, pesquisa e extens�o sobre o tema. A Cl�nica do Trabalho Escravo desenvolve pesquisas sobre o assunto, oferece uma disciplina para os estudantes de direito, oferece assist�ncia aos resgatados de situa��es an�logas a escravid�o e ainda vai at� as escolas promover conscientiza��o sobre o tema. “A parte que tenho mais orgulho � o atendimento �s v�timas. Temos tr�s advogados volunt�rios, cada um com quatro estagi�rios. A gente faz o atendimento e, quando � o caso, a gente ingressa com a��es, se n�o for o caso, a gente encaminha para o �rg�o competente. J� atendemos mais de 150 pessoas e atualmente temos 73 a��es trabalhistas em tramita��o”, explica L�via.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio de uma bolsa da Thomson Reuters Foundation, do curso ‘Como Cobrir Tr�fico Humano e Escravid�o Moderna’