
"Dias de terror". Essa � a defini��o da brasileira Silvana Vicente, de 53 anos, para o per�odo em que viveu em uma regi�o da Ucr�nia duramente afetada pelos in�meros ataques sofridos pelo pa�s desde o in�cio da invas�o russa, no fim de fevereiro.
"Tudo isso que vivemos � o terror causado pela guerra. A gente despertou e, de repente, tudo estava de pernas pro ar, inst�vel, demolido, com bombas para todos os lados e ningu�m sabia qual dire��o seguir, nem quando tudo acabaria", diz Silvana � BBC News Brasil.
Ela permaneceu cerca de 25 dias sem contato com a fam�lia, por causa da falta de energia el�trica e de internet na cidade.
A brasileira, o marido, o ucraniano Vasyl Pilipenko, e a sogra dela moravam em Mariupol, uma importante cidade portu�ria ucraniana que foi duramente atacada desde o in�cio do conflito com a R�ssia.Desde o in�cio da guerra, a vida de Silvana mudou completamente no pa�s do leste europeu. Ela teve parte do apartamento atingida por uma bomba e precisou improvisar uma janela para se proteger do frio intenso junto com a fam�lia. Al�m disso, faltavam itens b�sicos como alimentos e at� mesmo �gua.
O per�odo foi marcado por uma rotina de incerteza sobre o futuro. "Tudo era dif�cil, mas a sobreviv�ncia era a nossa maior preocupa��o", conta.
Em meio � trag�dia, a brasileira quis registrar alguns momentos por meio do celular para mostrar as dificuldades enfrentadas na regi�o. "Eu buscava formas de carregar o celular, no meu computador ou do meu esposo. Fazia as fotos e desligava completamente para economizar", diz. Ela compartilhou algumas dessas fotografias com a BBC News Brasil (as fotos est�o publicadas ao longo desta reportagem).

O come�o dos 'dias de terror'
Silvana ouviu os primeiros impactos da guerra logo no in�cio dos ataques russos, em 24 de fevereiro. "Eu lembro que at� a noite de 23 de fevereiro n�o havia nada, mas logo na manh� do dia seguinte recebemos a liga��o de uma prima do meu marido, que � ucraniana, e ela avisou: a guerra chegou a�", conta a brasileira.
"Assim que ela avisou, a gente come�ou a notar o barulho dos tiros de canh�es. Eu e meu marido nos levantamos assustados, porque at� o dia anterior a gente achava que o (presidente russo) Vladimir Putin n�o levaria a guerra adiante", acrescenta Silvana.
Os ataques come�aram em uma �rea distante do apartamento de Silvana. "Os bombardeios iniciais aconteceram em uma regi�o de f�brica na cidade", diz. A partir de ent�o, a brasileira e os familiares passaram a conviver com o constante barulho de explos�es.
Mariupol se tornou um dos principais alvos da R�ssia em virtude da posi��o estrat�gica no mapa da Ucr�nia. Se dominada, a cidade ajudar� os russos a formarem uma esp�cie de corredor ligando as duas �reas separatistas da regi�o de Donbas at� a pen�nsula da Crimeia, anexada pela R�ssia em 2014. Com esse grau de controle, os russos teriam tamb�m acesso facilitado tanto ao Mar de Azov quanto ao Mar Negro.
Em poucos dias, Silvana come�ou a enfrentar os impactos do conflito. Nos mercados, as prateleiras ficaram cada vez mais vazias e havia dificuldades at� mesmo para encontrar �gua pot�vel. A cidade tamb�m come�ou a sofrer problemas no abastecimento de g�s, energia el�trica e havia dificuldades para acessar a rede de telefonia da regi�o.
Mesmo com as dificuldades, a brasileira e o marido optaram por permanecer na Ucr�nia para proteger a sogra dela, Yulia Pilipenko, que � idosa e possui uma sa�de fr�gil. "Seria quase imposs�vel tentar se aventurar a sair da cidade com ela", explica.
No come�o de mar�o, Silvana fez o �ltimo contato com a fam�lia por meio da internet. Pouco depois, n�o conseguiu mais nenhum tipo de conex�o. Durante semanas, ficou incomunic�vel.
"No dia 2 (de mar�o), falei com a minha fam�lia e fiz um v�deo contando como estava a situa��o. Pouco depois, a energia el�trica da regi�o foi cortada totalmente", diz.

No dia seguinte, conta Silvana, o g�s tamb�m foi cortado e o abastecimento de �gua ficou cada vez mais prec�rio. "A �gua que chegava era muito gelada e come�ou a vir preta, n�o dava para beber ou cozinhar, a gente s� usava para dar descarga", detalha.
As dificuldades na luta pela sobreviv�ncia
No apartamento em Mariupol, a situa��o ficava cada vez mais dif�cil. Silvana e o marido se preocuparam principalmente com a sogra dela, que precisa de diversos rem�dios para cuidar dos problemas de sa�de. "Ela come�ou a racionar rem�dios para durar mais, porque as farm�cias da regi�o tinham sido saqueadas", detalha a brasileira.
Dias ap�s perder a comunica��o com os familiares, Silvana viveu um dos momentos mais dif�ceis na Ucr�nia: uma explos�o nas proximidades do pr�dio dela.
"Por volta do dia 6 (de mar�o), a explos�o de uma mina atingiu o nosso pr�dio. At� ent�o, os ataques ainda estavam na �rea das f�bricas, mas como essas minas t�m uma for�a muito grande, acabaram atingindo a regi�o do pr�dio tamb�m", conta.
O impacto da explos�o, diz Silvana, estilha�ou os vidros das janelas de muitos apartamentos do pr�dio, inclusive o dela. "O pr�dio todo foi prejudicado", diz.
Sem o vidro da janela, ela precisou improvisar para amenizar o frio, de cerca de 5 graus negativos. "Coloquei um pl�stico de constru��o na janela. Enquanto havia o bombardeio l� fora, eu ajustava o pl�stico. Meu esposo falava: sai da�, sen�o voc� vai ser atingida. Mas se eu n�o fizesse isso, a gente n�o aguentaria o frio", conta. Posteriormente, ela usou pregos para fixar o pl�stico na janela.
"Ainda assim, fazia muito frio. O frio foi uma das partes mais dif�ceis de tudo isso, mas decidimos continuar no apartamento porque n�o havia outra escolha. Se a gente sa�sse dali, os bombardeios continuariam da mesma forma. Nossa casa era o lugar mais seguro para a gente", declara a brasileira.

A interven��o na janela foi somente uma das adapta��es que Silvana fez para sobreviver.
Sem �gua, ela precisou recorrer a um rio em uma regi�o perto da sua casa, onde dezenas de pessoas tamb�m sofriam com a falta de �gua e se acumulavam em filas.
"A gente buscava �gua em dias alternados. S� t�nhamos dois gal�es de cinco litros e tr�s de tr�s litros. O maior medo era o caminho para o rio, porque no trajeto havia algumas �reas que j� tinham sido atingidas por ataque e a gente tinha medo que houvesse novos ataques ali", diz Silvana.
E diante da falta de g�s, ela e os vizinhos come�aram a cozinhar com lenhas, que buscavam na regi�o, em um fog�o improvisado em frente ao pr�dio em que morava.
Enquanto faziam o alimento, precisavam ficar atentos a qualquer barulho de explos�o nas proximidades.
Silvana e os familiares faziam uma pequena refei��o por dia, al�m de tomar caf� puro pela manh�. "Quando tinha p�o, a gente comia aos poucos", diz. Segundo ela, o marido perdeu 13 quilos em menos de um m�s.
Para enfrentar as dificuldades, os moradores do pr�dio de Mariupol tentavam se ajudar por meio de troca de alimentos ou �gua. "A gente dividia as coisas, conforme a necessidade do outro. � um povo muito forte e esperan�oso de que a guerra logo vai acabar", afirma.

As tropas russas avan�avam cada vez mais em Mariupol. Aos poucos, diz Silvana, o horror da guerra passou a fazer parte da vida deles. "Nosso maior medo era do ataque dos avi�es, porque o impacto era muito grande. O nosso pr�dio tremia com o impacto das bombas. Uma casa explodiu a poucos metros do nosso pr�dio", detalha.
Nas ruas, o cen�rio de guerra assustava a todos. Era poss�vel avistar carros e casas destru�dos ou at� mesmo corpos de pessoas atingidas pelos ataques. "Eu nunca vi um corpo e tinha muito medo de avistar algum, mas o meu marido viu alguns. Se eu visse, ficaria muito abalada e desabaria", diz.
Silvana diz que as cenas mais chocantes que presenciou foram os t�mulos improvisados. "As pessoas n�o tinham como enterrar o familiar no cemit�rio, ent�o abriam um buraco na cal�ada da casa, colocava o corpo, a cruz e pronto. Faziam isso para n�o deixar o morto exposto na rua com tanta gente passando", detalha.
Em meio ao cen�rio de destrui��o, Silvana se preparou para o pior. "Aprendi a ser forte e a controlar o medo. Eu n�o tinha mais tanto medo, muito menos p�nico da morte. Me preparei emocionalmente para morrer e orava para que Deus confortasse meu filho e a minha fam�lia. Eu dizia: se o senhor quiser me tirar daqui, que assim seja", relembra.

O resgate
No fim de mar�o, um ucraniano que morava em Mariupol foi ao pr�dio de Silvana e avisou que levaria a fam�lia dela para fora do pa�s em seu carro. "Ele chegou e disse: voc�s t�m 15 minutos para pegar o essencial e os documentos. E tivemos que sair �s pressas", relembra a brasileira.
O homem, que morava na regi�o e tamb�m queria deixar o pa�s, foi pago pelo filho de Silvana e Vasyl, o marinheiro mercante Gabriel Pilipenko, de 26 anos.
Gabriel, assim como outros familiares dele, vivia a ang�stia da falta de informa��es sobre Silvana, Vasyl e Yulia. A cada nova not�cia sobre ataques a Mariupol, o desespero do rapaz e de seus parentes aumentava mais.
Para conseguir se dedicar � busca pelos pais, Gabriel deixou o emprego em uma embarca��o em Taiwan e foi para a Alemanha. Ele chegou a cogitar ir para a Ucr�nia, mas desistiu em raz�o dos riscos.

Ao serem resgatados, Silvana, Vasyl e Yulia foram levados pelo ucraniano tendo que passar pelo territ�rio dominado pelos russos, onde tiveram o ve�culo revistado diversas vezes. Posteriormente, chegaram � Crimeia, onde ficaram alguns dias enquanto aguardavam um passaporte de emerg�ncia para Yulia. Depois, seguiram para Moscou, receberam apoio da embaixada brasileira e conseguiram as passagens a�reas.
Primeiro, pegaram um voo para Dubai e depois seguiram para o Brasil. Por fim, desembarcaram no domingo (10/4) em Jo�o Pessoa (PB), cidade natal de Silvana e onde a fam�lia dela mora.
Silvana e Vasyl ainda n�o reencontraram o filho, que conseguiu um emprego na Alemanha e permanece no pa�s europeu.

Em solo brasileiro, Silvana pensa em recome�ar, mas agora enfrenta outras dificuldades. "Estamos no meu apartamento, que estava fechado h� anos. A gente deixou tudo pra tr�s, ent�o nossa principal dificuldade � financeira. Viemos pra c� s� com a roupa do corpo mesmo", diz Silvana.
Ela e o marido est�o desempregados e contam com a ajuda de familiares de Silvana para se alimentar. "O meu esposo (que � marinheiro mercante) tem um �timo curr�culo, mas infelizmente isso dificulta para que ele ache um emprego facilmente. Mas acredito que logo ele estar� empregado", afirma Silvana.

"O governo da Para�ba est� dando suporte m�dico e exames, e est� tentando achar trabalho pro meu esposo. Temos nossas despesas, como comida, e n�o temos suporte para isso e isso tem sido a parte mais dif�cil atualmente", acrescenta.
O futuro ainda � completamente incerto para Silvana. Sobre os pr�ximos meses, ela afirma que seu principal desejo � o fim da guerra na Ucr�nia. "Me sinto culpada por ter deixado para tr�s tantas pessoas que compartilharam o terror da guerra com a gente", lamenta.
Quando o conflito terminar, ela pretende cumprir a promessa feita � sogra e elas, junto com Vasyl, retornar�o � Ucr�nia.

Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!