
"Eu n�o tenho religi�o, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o �nico Deus todo poderoso. Tamb�m acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem v�o me ajudar... Acredito em energias, no universo..."
Assim Mariana Oliveira Viana, de 21 anos e moradora do Rio de Janeiro, definiu em uma rede social suas cren�as.
Manicure aut�noma e moradora do bairro de Iraj�, na Zona Norte do Rio, Mariana tem parte da fam�lia evang�lica, uma m�e que frequenta a umbanda e um irm�o de 24 anos que, como ela, n�o segue uma religi�o, mas acredita em Deus.
"Minha fam�lia sempre deixou que o outro tenha total liberdade, ningu�m fica questionando nada a ningu�m", conta Mariana � BBC News Brasil.
N�o batizada em nenhuma religi�o, a jovem frequentou terreiros e igrejas, e diz ter se sentido bem em todos esses lugares. Assim, decidiu n�o escolher uma religi�o e acreditar em tudo.
"Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religi�es e ter a mente aberta com isso."
Os 'sem relig�o' no Censo e no Datafolha
Mariana � uma de milhares de jovens brasileiros que se auto definem como "sem religi�o", grupo que j� supera cat�licos e evang�licos entre a popula��o de 16 a 24 anos no Rio e em S�o Paulo, segundo as primeiras pesquisas Datafolha do ciclo eleitoral de 2022.
No Censo de 2010, os sem religi�o eram 8% da popula��o brasileira, ou mais de 15 milh�es de pessoas. Esse percentual vem crescendo d�cada ap�s d�cada: os sem religi�o eram 0,5% da popula��o brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000.
Com o adiamento do Censo populacional de 2020 para este ano, devido � pandemia, ainda n�o � poss�vel saber de forma definitiva o que aconteceu com a religiosidade brasileira na �ltima d�cada.
Mas as pesquisas eleitorais, cujas amostras s�o constru�das com objetivo de refletir a realidade da popula��o brasileira, d�o pistas importantes neste sentido.
As primeiras pesquisas Datafolha de 2022, por exemplo, mostram que, em n�vel nacional, 49% dos entrevistados se dizem cat�licos, 26% evang�licos e 14% sem religi�o — j� acima dos 8% sem religi�o identificados no �ltimo Censo.
Entre os jovens de 16 a 24, o percentual dos sem religi�o chega a 25% em �mbito nacional.
Nas pesquisas Datafolha para Rio de Janeiro e S�o Paulo, o crescimento dos brasileiros que se dizem "sem religi�o" � ainda mais marcante, particularmente entre os jovens.
Em S�o Paulo, os jovens de 16 a 24 anos que se dizem sem religi�o chegam a 30% dos entrevistados, superando evang�licos (27%), cat�licos (24%) e outras religi�es (19%).
No Rio, os sem religi�o nessa faixa et�ria chegam a 34%, tamb�m acima de evang�licos (32%), cat�licos (17%) e demais religi�es (17%).
Mas o que significa ser "sem religi�o" no Brasil? Por que esse grupo cresce, e como isso se relaciona com a diminui��o da popula��o cat�lica e ascens�o das religi�es evang�licas no pa�s?
Por que esse fen�meno � maior entre os jovens e nas grandes cidades? E que rela��o tudo isso tem com o comportamento eleitoral da juventude brasileira?
A BBC News Brasil ouviu tr�s cientistas sociais especialistas em religi�o para explicar o fen�meno.
Quem s�o os brasileiros 'sem religi�o'
Em primeiro lugar, � preciso ter clareza que apenas uma minoria dos "sem religi�o" no Brasil s�o ateus ou agn�sticos. Os ateus s�o pessoas que n�o acreditam na exist�ncia de Deus, j� os agn�sticos avaliam que n�o � poss�vel afirmar com certeza se Deus existe ou n�o.
No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milh�es de brasileiros que se diziam sem religi�o, apenas 615 mil (4% dos sem religi�o) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agn�sticos (0,8%).
"A maior parcela dos sem religi�o tem a ver com uma desinstitucionaliza��o, o que quer dizer que o sujeito est� afastado das institui��es religiosas, mas ele pode ter uma vis�o de mundo e at� mesmo pr�ticas pessoais informadas por cren�as religiosas", explica Silvia Fernandes, cientista social e professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
Entre outros livros, ela � autora de Jovens religiosos e o catolicismo — escolhas, desafios e subjetividades (Quartet/FAPERJ, 2010), Novas Formas de Crer — cat�licos, evang�licos e sem-religi�o nas cidades (Promocat, 2009) e organizadora de Mudan�a de religi�o no Brasil — desvendando sentidos e motiva��es (Palavra e Prece, 2006).
"Ent�o esse sujeito � sem religi�o porque n�o est� vinculado a uma igreja, porque n�o frequenta, mas pode ter cren�as relacionadas a alguma religi�o que j� teve ou ter uma dimens�o mais pluralista da religiosidade", diz a especialista.
"Ele incorpora elementos de uma espiritualidade mais fluida, pode fazer um sincretismo [misturar elementos de diferentes religi�es], pode ter cren�as muito associadas ao universo do cristianismo — acreditar em Deus, em Jesus, em Maria — mas seguir se declarando sem religi�o."
Mariana, a carioca de Iraj� que acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias � um exemplo t�pico desses brasileiros sem religi�o, mas de forma alguma sem f�.

Por que cada vez mais brasileiros se dizem 'sem religi�o'
Regina Novaes, pesquisadora do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religi�o), observa que a fase dos 16 aos 24 anos, onde os "sem religi�o" s�o mais presentes, � uma fase de experimenta��o.
"H� uma trajet�ria de busca e experimenta��o que foi colocada para as novas gera��es que n�o era colocada para as antigas", diz a pesquisadora.
Ela observa que, atualmente, muitos jovens crescem em fam�lias plurirreligiosas, por exemplo, com av� m�e de santo, pai cat�lico n�o praticante e m�e evang�lica. Esses jovens n�o sentem a obriga��o de seguir uma religi�o de fam�lia e tendem a buscar uma religiosidade pr�pria.
Essa fase de experimenta��o pode seguir dois caminhos: uma busca que resulta mais tarde na escolha de uma religi�o; ou a constru��o de uma s�ntese pessoal, em que a pessoa se diz "sem religi�o" por n�o pertencer a nenhuma igreja, mas combina diversos elementos de f�.
"Isso � interessante, porque havia uma ideia de que, com o passar do tempo e o avan�o da seculariza��o [processo atrav�s do qual a religi�o perde influ�ncia sobre as variadas esferas da vida], haveria um aumento das pessoas que se desvinculariam da f�, do sobrenatural. Mas isso n�o est� acontecendo. O que est� acontecendo s�o outros modos de ter f�", diz Novaes.
A pesquisadora observa que esse � um fen�meno que vem desde a d�cada de 1990, mas h� outros dois processos mais recentes que t�m contribu�do para o avan�o dos "sem religi�o".
Luta antirracista e 'desigrejados'
O primeiro deles � a emerg�ncia das religi�es afro-brasileiras como uma op��o cultural, diante do fortalecimento da luta antirracista no pa�s.
"Junto � quest�o racial, vem a quest�o da ancestralidade. Ent�o h� muitos jovens que deixam de ser cat�licos, protestantes, evang�licos e se ligam a um terreiro, a uma m�e de santo ou pai de santo", diz Novaes.
"Mas h� tamb�m uma parcela que n�o vai se ligar institucionalmente, mas vai se sentir parte de uma cultura. Ent�o eles podem se dizer sem religi�o, mas participar de festas, cultuar orix�s, usar signos como turbantes e colares, como parte de um processo identit�rio."

Um segundo fen�meno s�o as novas gera��es de evang�licos, criados na igreja, mas que passam a ter problemas com seus pastores, por quest�es morais, comportamentais, por cr�ticas pol�ticas ou com rela��o � maneira de conduzir a igreja.
Muitos desses jovens v�o para outras igrejas, como as alternativas ou inclusivas. Mas h� um outro grupo que passa a se definir atrav�s de uma palavra nova: s�o os "desigrejados", jovens que seguem partilhando do mundo evang�lico, mas que ficam sem igreja.
"Ao ficar sem igreja, muitos desses jovens podem passar a se definir como sem religi�o. Porque, diferentemente do catolicismo, em que o batizado cat�lico �, no mundo evang�lico, a frequ�ncia � igreja � fundamental para a pessoa se definir", observa a especialista.
Um fen�meno jovem e urbano
Para Ricardo Mariano, professor da USP (Universidade de S�o Paulo) e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999), a perda de for�a da igreja cat�lica � um dos motivos que explicam o avan�o dos "sem religi�o".
Em 1950, quase 94% da popula��o brasileira se dizia cat�lica, percentual que caiu a 65% no Censo demogr�fico de 2010 e est� em 49% entre os entrevistados do Datafolha de 2022.

"O forte decl�nio dos cat�licos em idade de reprodu��o contribui para a redu��o no n�mero de crian�as educadas em fam�lias cat�licas e consequentemente, dos jovens com forma��o cat�lica", observa o soci�logo.
"Al�m disso, a igreja cat�lica tradicionalmente tem um enorme contingente de cat�licos ditos 'nominais', ou seja, que n�o frequentam os cultos, n�o est�o expostos �s autoridades eclesi�sticas e nem �s suas orienta��es doutrinais, morais e comportamentais", acrescenta.
"Isso tamb�m reduz a socializa��o religiosa intrafamiliar, aquela que ocorre dentro da fam�lia, o que torna menos prov�vel que os filhos de pais cat�licos permane�am na religi�o ou sejam por ela influenciados."
Para o pesquisador, outro fator que explica a maior parcela de jovens sem religi�o � o fato de que esse grupo tem redes de sociabilidade mais diversas — diferentemente, por exemplo, dos idosos, cuja sociabilidade muitas vezes � restrita � fam�lia e � igreja — e est� exposto a m�ltiplas fontes de informa��o, como col�gios, universidades, redes sociais e ve�culos midi�ticos.
"Os jovens ocupam seu tempo engajados em atividades de lazer e entretenimento — o funk, o hip hop, blocos e escolas de carnaval, e por a� vai — que muitas vezes entram em conflito com orienta��es comportamentais e morais das igrejas crist�s mais conservadoras", observa.
Para Silvia Fernandes, da UFRRJ, isso ajuda a explicar tamb�m por que os "sem religi�o" s�o em maior n�mero nos grandes centros urbanos, como Rio e S�o Paulo.
"� preciso considerar que mais de 80% da popula��o brasileira hoje � urbana. E, nas grandes cidades, h� uma celeridade da vida e acesso a uma multiplicidade de informa��es que colocam a religi�o como uma das esferas poss�veis da exist�ncia, mas ela n�o � mais t�o determinante para a sociabilidade e o encontro como no mundo rural", diz Fernandes.
Escolhas eleitorais
H� rela��o entre o aumento do n�mero de jovens "sem religi�o" e o fato dessa parcela do eleitorado ser uma das que mais indica inten��o de voto em Lula (PT) nas elei��es de outubro, j� que Jair Bolsonaro (PL) construiu sua imagem como um candidato da comunidade evang�lica?
Aqui, os especialistas t�m vis�es diversas.

Para Ricardo Mariano, da USP, isso � sim um fator que contribui para a melhor performance da candidatura petista junto a esse segmento da popula��o.
"O governo Bolsonaro abra�ou pautas morais ultraconservadoras, as armas, homofobia, autoritarismo, pol�ticas antiecol�gicas e anticient�ficas, sobretudo na pandemia. Tudo isso afastou muito os jovens", observa o professor.
"Eles [os jovens] t�m acesso a muita informa��o e tendem a ser menos conservadores em uma s�rie de pautas. Por isso a rejei��o maior ao governo Bolsonaro", avalia.
J� Regina Novaes, do ISER, destaca que � preciso ter clareza que, assim como os sem religi�o s�o uma categoria fluida, os evang�licos n�o s�o um grupo est�tico.
"Sim, � poss�vel pensar que mais jovens longe das igrejas, fazendo suas escolhas, tamb�m possam fazer escolhas mais questionadoras e por isso se aproximar do Lula. Mas qual � o perigo dessa pergunta?", questiona a pesquisadora.
"� achar que os jovens evang�licos s�o est�ticos, e que eles s�o [eleitores de] Bolsonaro, enquanto os sem religi�o s�o [eleitores de] Lula. Isso n�o � verdade. Os evang�licos n�o s�o essa massa de manobra que o Bolsonaro pensa que s�o, eles t�m cor, t�m classe social, t�m local de moradia. Esse � um ponto bem importante e acredito que vamos conhecer melhor o mundo evang�lico nessas elei��es", avalia.
Brasil pode nunca vir a ser pa�s de maioria evang�lica?
O crescimento dos sem religi�o coloca uma d�vida para o futuro do Brasil: pode ser que o pa�s nunca venha a ter uma maioria evang�lica, como chegaram a prever alguns analistas?
Olhando para os dados, vemos que, do Censo de 2000 para o de 2010, o percentual de evang�licos no Brasil saltou de 15% para 22%, e os cat�licos diminu�ram de 74% para 65%.
J� na pesquisa Datafolha desse in�cio de ano para o Brasil como um todo, os cat�licos s�o 49% dos entrevistados, evang�licos 26% e os sem religi�o, 14%.
Embora as pesquisas n�o sejam diretamente compar�veis, pela diferen�a de abrang�ncia, os n�meros do Datafolha trazem algumas pistas do que esperar para o pr�ximo Censo.
"O decl�nio hist�rico do catolicismo continua, com a igreja cat�lica perdendo fi�is a cada d�cada. Mas, ao mesmo tempo, voc� n�o tem os evang�licos crescendo na mesma propor��o e parte disso � explicado por esse fen�meno dos sem religi�o", diz Fernandes, da UFRRJ.
Para a professora, alguns fatores explicam a perda de �mpeto da expans�o evang�lica: em primeiro lugar, as igrejas pentecostais e neopentecostais deixaram de ser uma novidade.
Um segundo fator � a diversifica��o na oferta dessas igrejas, que faz com que elas disputem entre si pelos fi�is, contribuindo para esse processo de experimenta��o caracter�stico da experi�ncia religiosa mais fluida da contemporaneidade.
Por fim, com as igrejas evang�licas j� em atividade h� d�cadas no pa�s, h� uma parcela dos fi�is que se decepcionaram com promessas n�o cumpridas de cura, milagres e prosperidade, ou que n�o conseguem se integrar �s r�gidas normas morais e comportamentais, engrossando as fileiras dos "sem religi�o".
Para Mariano, da USP, ainda assim � de se esperar que os evang�licos sejam um dia maioria.
"� inevit�vel at� por raz�es demogr�ficas, o perfil dos cat�licos no Brasil � mais rural, mais velho do que os evang�licos. Os pentecostais t�m um contingente enorme de pessoas em idade reprodutiva, mais do que os cat�licos, al�m disso, essas igrejas t�m uma grande capacidade de recrutamento e manuten��o de adeptos. Ent�o � uma quest�o de tempo", afirma.
Regina Novaes, do ISER, tem outra vis�o.
"� dif�cil fazer 'profecia' sociol�gica, mas acredito que o Brasil n�o ser� um pa�s evang�lico. Por dois motivos: o catolicismo n�o � mais 'a religi�o dos brasileiros', mas ainda � da maioria dos brasileiros. Ateus e agn�sticos v�o continuar sendo minoria, mas a categoria dos sem religi�o passa a fazer parte das alternativas presentes do campo religioso", observa.
"Agora, a ideia � n�o olhar para os sem religi�o como uma coisa est�tica, porque as ofertas [religiosas] continuam existindo. E o lugar que a religi�o tem na vida — de dar sentido a ela, de tornar o sofrimento 'sofr�vel' — continua existindo. Ent�o as religi�es continuam a ser recursos culturais para os sem religi�o", acrescenta.
"O Brasil continuar� um pa�s de maioria cat�lica, os evang�licos crescer�o ainda, mas os sem religi�o passam a ser uma possibilidade que tem de ser observada."
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