
Nos �ltimos dias, a suposta descoberta de Ratanab�, uma civiliza��o secreta no cora��o da Amaz�nia, se espalhou com grande velocidade pelas redes sociais.
De acordo com as postagens, que viralizaram no TikTok, no Twitter e no Instagram, a cidade seria "maior que a Grande S�o Paulo", era "a capital do mundo" e "esconde muita riqueza, como esculturas de ouro e tecnologias avan�adas de nossos ancestrais".
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Algumas teorias da conspira��o foram al�m e disseram que a descoberta ajudaria a explicar "o verdadeiro interesse de dezenas de homens poderosos na Amaz�nia" e at� o desaparecimento do jornalista ingl�s Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira.
Essas informa��es, por�m, n�o fazem o menor sentido. "Tudo isso � um del�rio", avalia o arque�logo Eduardo Go�s Neves, professor do Centro de Estudos Amer�ndios da Universidade de S�o Paulo (USP) e coordenador do Laborat�rio de Arqueologia dos Tr�picos do Museu de Arqueologia e Etnologia da mesma institui��o.
H� mais de 30 anos, o especialista integra uma rede de pesquisadores que trabalham para revelar o passado da Amaz�nia e dos povos que viveram (e ainda vivem) por l�.
Na avalia��o dele, o surgimento de hist�rias como a de Ratanab�, que n�o tem fundamento algum nas publica��es cient�ficas recentes, presta um "desservi�o � arqueologia".
"H� mais de 20 anos, os arque�logos que atuam na regi�o defendem que existiam cidades na Amaz�nia, mas isso era visto como coisa de maluco", conta.
"Com o passar do tempo, a perspectiva foi mudando e a comunidade acad�mica come�ou a aceitar que, sim, existem evid�ncias de s�tios de grande dimens�o, estradas e aterros constru�dos h� muito tempo", continua o especialista, que refor�a que essas descobertas n�o t�m nada a ver com civiliza��es antigas ou tesouros ocultos.
"Agora, todo o nosso esfor�o pode quase voltar � estaca zero com a hist�ria de Ratanab� e a propaga��o de informa��es das maneiras mais estapaf�rdias poss�veis", completa.
A seguir, confira porque os principais argumentos utilizados para falar sobre a "cidade perdida na Amaz�nia" n�o fazem sentido — e o que as evid�ncias cient�ficas revelam sobre a ocupa��o humana na maior floresta tropical do mundo.
Uma conta que n�o fecha
O primeiro detalhe que chama a aten��o nas postagens sobre Ratanab� s�o as datas utilizadas. Em alguns textos, est� escrito que a civiliza��o teria existido ali h� 350, 450 ou at� 600 milh�es de anos.
"Isso n�o faz o menor sentido do ponto de vista da hist�ria geol�gica e biol�gica do nosso planeta", responde Neves.
"Para ter ideia, nem os dinossauros existiam h� 350 milh�es de anos. Nossos ancestrais mais antigos viveram h� mais ou menos 6 milh�es de anos. Mas a nossa esp�cie mesmo, o Homo sapiens sapiens, surgiu h� 350 mil anos na �frica", estima.
Ou seja: h� um erro de c�lculo de, pelo menos, 349.650.000 anos nessa hist�ria.

"Se algu�m falasse que existiram cidades na Amaz�nia h� 3.500 anos eu at� pensaria que essa era uma quest�o para tentar entender melhor e pesquisar. Agora, uma civiliza��o h� 350 milh�es de anos? N�o existe a menor possibilidade disso", assinala o arque�logo.
Metr�poles do passado, pequenas cidades de hoje
A segunda informa��o completamente errada sobre Ratanab� tem a ver com o suposto tamanho da cidade. Algumas postagens dizem que ela seria maior que a Grande S�o Paulo.
Mais uma vez, isso est� em desacordo com as evid�ncias cient�ficas. "Ainda n�o temos uma estimativa exata de quantas pessoas viviam nessas cidades da Amaz�nia, mas certamente elas n�o tinham o tamanho de S�o Paulo de jeito nenhum", diz Neves.
"Para ter ideia, no s�culo 16, as cidades mais populosas do mundo provavelmente eram Istambul, na Turquia, e Tenochtitl�n, no M�xico. E elas tinham 50 mil, no m�ximo 200 mil habitantes", calcula o professor da USP.
Atualmente, a Grande S�o Paulo abriga cerca de 22 milh�es de habitantes.
Neves calcula que, antes da chegada dos europeus nas Am�ricas, existiam cerca de 10 milh�es de ind�genas em toda a Amaz�nia. "E esse n�mero caiu muito a partir do s�culo 17 por conta das guerras e das epidemias", ensina.
Linhas retas no meio da selva
O terceiro argumento que confere musculatura aos boatos sobre Ratanab� tem a ver com t�neis encontrados na regi�o amaz�nica ou com imagens a�reas, que mostram linhas retas e quadrados perfeitos, vis�veis entre as copas das �rvores.
Esses t�neis, defendem as postagens nas m�dias sociais, serviriam de passagem secreta e conectariam diversas partes da Am�rica do Sul.
As linhas retas, por sua vez, n�o existem na natureza e seriam fruto de trabalho humano, garantem os boatos.
Neves esclarece que realmente existem t�neis na Amaz�nia. "As imagens divulgadas provavelmente v�m da regi�o do Forte Pr�ncipe da Beira, em Rond�nia, que era um posto colonial portugu�s."
"Essas constru��es est�o relacionadas �s disputas de fronteira entre Espanha e Portugal nas proximidades do rio Guapor� ao longo do s�culo 18", complementa.
Mas e as linhas retas? Pelas poucas imagens dispon�veis, Neves acredita que elas sejam de uma regi�o pr�xima da fronteira entre os Estados do Mato Grosso, Par� e Amazonas.
"Essas forma��es s�o conhecidas h� muito tempo e realmente parecem linhas perpendiculares, o que � uma coisa incomum", avalia.
"As principais suspeitas s�o de que seja uma forma��o natural de calc�rio ou algum tipo de rocha que segue esse padr�o", diz o arque�logo.
"� improv�vel que aquilo seja de autoria humana. Mas, caso realmente tenha sido feito pelos povos locais, essas constru��es n�o devem ter mais do que 2,5 mil anos", completa.
O que pode estar por tr�s do interesse no tema
Neves, que n�o possui nenhum perfil nas redes sociais, confessa que nunca tinha ouvido falar de Ratanab� at� a segunda semana de junho de 2022.
"Quando come�aram a me perguntar sobre isso, at� fui pesquisar e consultar outros colegas que estudam a arqueologia amaz�nica, mas ningu�m conhecia essa hist�ria", relata.
Embora existam perfis nas redes sociais e at� livros publicados sobre a tal "civiliza��o perdida" nos �ltimos anos, o tema s� ganhou o interesse popular e foi virar um assunto amplamente comentado nos �ltimos dias.
Na avalia��o de Neves, o fen�meno pode ser explicado por uma s�rie de fatores.
"Me parece uma mistura da ingenuidade das pessoas, que querem acreditar nesse tipo de coisa, com interesses econ�micos de explora��o da Amaz�nia", especula o especialista, que lembra de outras lendas parecidas, como a cidade de Eldorado, alvo de exploradores ao longo dos s�culos por supostamente ser feita de ouro.

"E tamb�m n�o podemos ignorar o racismo nesse contexto. Quando se fala que existiram civiliza��es 'avan�adas' h� 300 milh�es de anos, voc� est� retirando dos povos ancestrais, que s�o os antepassados dos ind�genas de hoje, a autoria de todas aquelas constru��es", acrescenta.
"� algo parecido ao que vemos no livro Eram os Deuses Astronautas?, de Erich von D�niken. Ali, soa mais f�cil explicar que as pir�mides do Egito foram constru�das por seres extraterrestres do que dar o cr�dito aos povos africanos", compara.
"E tudo isso denota um profundo racismo com todas as popula��es n�o europeias, como os ind�genas e os africanos, como se elas n�o fossem capazes", interpreta.
Por fim, o arque�logo opina que o fato de lendas do tipo ganharem f�lego justamente agora serve como uma esp�cie de bal�o de ensaio.
"Elas funcionam como cortina de fuma�a num momento em que temos duas pessoas desaparecidas e desviam a aten��o do real problema da viol�ncia na Amaz�nia", completa.

(Falta de) pedras no caminho
Neves explica que a arqueologia amaz�nica enfrentou grandes percal�os ao longo das �ltimas d�cadas.
"De forma geral, a Amaz�nia tem poucas rochas. Ent�o, a principal mat�ria-prima utilizada nas constru��es do passado eram terra e madeira", contextualiza.
"Para compreender esses per�odos, precisamos de uma equipe multidisciplinar, capaz de trabalhar com objetos que foram deixados e resistiram ao tempo, como cer�micas, restos org�nicos, amostras de solo, peda�os de comida, sementes e ossos", exemplifica.
Para ilustrar essa dificuldade, Neves cita como exemplo um artigo publicado h� poucas semanas no peri�dico cient�fico Nature por especialistas de universidades brit�nicas e alem�s.
A pesquisa revelou os detalhes de dois grandes s�tios arqueol�gicos de 147 e 315 hectares (uma �rea equivalente a 205 e 441 campos de futebol, respectivamente), inclusive com a exist�ncia de pir�mides, na Amaz�nia boliviana.
"Essas estruturas de terra s�o conhecidas h� 60 anos, mas era muito dif�cil definir se eram naturais ou foram constru�das por seres humanos", avalia o arque�logo.
"S� foi poss�vel obter essa resposta agora, porque temos uma tecnologia chamada Lidar capaz de fazer esse tipo de an�lise."
O futuro depende do passado
Mas, afinal, diante das evid�ncias cient�ficas dispon�veis no momento, o que os cientistas sabem sobre a hist�ria dos povos que habitaram essa regi�o?
"Sabemos que a Amaz�nia foi densamente ocupada no passado e que os povos que viveram l� deixaram marcas muito vis�veis do modo de vida que tinham, com valas em formato geom�trico e estradas lineares", resume Neves.
"E temos dados que nos mostram de forma muito segura uma rela��o direta entre os indiv�duos que fizeram essas constru��es no passado e os povos ind�genas de hoje."
"N�o se trata, portanto, de uma civiliza��o perdida, que desapareceu h� milh�es de anos", assegura o pesquisador.

De acordo com o Painel Cient�fico para a Amaz�nia, publica��o coordenada pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) que tem um cap�tulo sobre os povos que viviam na regi�o antes da chegada dos europeus, h� evid�ncias de que essa floresta tropical � ocupada por ind�genas h� 12 mil anos.
"Durante essa longa hist�ria, as sociedades ind�genas desenvolveram tecnologias que eram altamente adaptadas �s condi��es locais e otimizadas para a expans�o do sistema de produ��o de alimentos", escreve o grupo de especialistas que assinam o documento, liderado por Neves.
"A arqueologia amaz�nica mostra qu�o profunda � a hist�ria ind�gena na regi�o, caracterizada pela diversidade cultural e agro-biol�gica. Trata-se de um dos poucos centros independentes de domestica��o de plantas no planeta e um dos primeiros centros produtores de cer�mica no Novo Mundo", segue o texto.
"Todas essas tecnologias podem inspirar novas formas de urbanismo, manejo dos dejetos e sistemas integrados do uso da terra", finalizam os autores.
Para Neves, esse conjunto de evid�ncias permite enxergar a Amaz�nia como um "patrim�nio biocultural", com uma intera��o entre a a��o humana e a natureza ao longo de mil�nios.
"Portanto, para proteger a Amaz�nia, precisamos fortalecer as popula��es locais, como os ind�genas, os ribeirinhos, os quilombolas e os caboclos, porque elas t�m um papel muito importante na constru��o e na manuten��o desse patrim�nio biocultural", conclui o arque�logo.
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61803303
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