
H� 200 anos, o Brasil se tornava independente. H� 100, assistia � Semana de Arte Moderna. Mas um outro acontecimento hist�rico, menos conhecido, completa 60 anos em 2022.
Trata-se da maior onda de saques da hist�ria do pa�s, que teve in�cio em Duque de Caxias e se espalhou por toda a Baixada Fluminense.
Em meio � infla��o, � fome e a uma greve geral, o quebra-quebra aos gritos de "Queremos comer" e "Saque" deixou ao menos 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos, muitos dos quais nunca se recuperaram.
"A respeito dos dist�rbios, o ent�o prefeito Adolfo David declararia ao Jornal do Brasil que tinha assistido a uma verdadeira batalha, onde mulheres, homens e crian�as gritavam que preferiam morrer lutando, a morrer de fome", relatam Rog�rio Torres e Newton Menezes, no livro Sonega��o, Fome, Saque (1987), que relata os acontecimentos de 5 de julho de 1962.
Em resposta ao epis�dio, comerciantes da Baixada Fluminense passaram a patrocinar grupos armados para proteger suas lojas. Segundo pesquisadores, os grupos conhecidos como Brigada de Defesa da Fam�lia Caxiense e Turma do Esculacho marcam a origem das mil�cias na regi�o.
Em 2019, o Minist�rio P�blico do Estado do Rio de Janeiro estimava que as mil�cias atuavam em 14 cidades do Estado do Rio e em 26 bairros da capital, com mais de 2 milh�es de pessoas vivendo sob o jugo de paramilitares.
O que estava acontecendo no Brasil em 1962
Em agosto de 1961, com apenas sete meses de mandato, J�nio Quadros renunciou � presid�ncia da Rep�blica em meio a uma crise pol�tica, numa tentativa de voltar nos bra�os do povo, com mais poderes. O tiro saiu pela culatra, e a ren�ncia foi prontamente aceita pelo Congresso.
O vice-presidente Jo�o Goulart estava na China, numa miss�o oficial armada por J�nio, e militares tentaram impedir a posse dele como presidente. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, liderou o movimento pela legalidade, conseguindo impedir o golpe.
Mas o Congresso apenas permitiu a posse de Jango, em setembro daquele ano, sob um regime parlamentarista, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. Foi uma forma de limitar os poderes do pol�tico percebido pelos militares e setores da sociedade civil como "subversivo" e "comunista".
"Jo�o Goulart assume, mas a estrutura social, econ�mica e pol�tica do pa�s estava numa crise profunda. O pr�prio Jango expressava todo um movimento cr�tico a essa realidade. Ele pregava grandes mudan�as, com uma base pol�tica vinda do trabalhismo e com apoio de movimentos sociais e sindicais, que cresciam muito nessa �poca", lembra Jos� Cl�udio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) e autor do livro Dos bar�es ao exterm�nio: Uma hist�ria de viol�ncia na Baixada Fluminense (2020), em entrevista � BBC News Brasil.
Naquele in�cio dos anos 1960, uma s�rie de fatores contribu�am para uma crise econ�mica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das pol�ticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados d�ficits comerciais e redu��o da capacidade de importa��o do pa�s; e um aumento da infla��o que se agravava desde o final dos anos 1950.
Em 1960, a infla��o acumulada foi de 25,4%; no ano seguinte, de 34,7%. Em 1962, o ano do grande saque, a alta de pre�os chegaria a 50,1% e a 78,4% em 1963.

"H� uma infla��o galopante, um aumento acelerado de pre�os das mercadorias da cesta b�sica", afirma Marl�cia Santos de Souza, coordenadora geral no Centro de Refer�ncia Patrimonial e Hist�rico de Duque de Caxias (CRPH/DC).
"Come�a ent�o uma press�o dos movimentos feministas no Brasil inteiro, incluindo S�o Paulo e Rio de Janeiro. Os movimentos de mulheres 'Panela Vazia', contra o custo de vida, contra a carestia v�o pressionar o governo no sentido de controlar os pre�os dos alimentos."
Com pre�os tabelados pela Cofap (Comiss�o Federal de Abastecimento e Pre�os), comerciantes retiravam mercadoria das prateleiras, para vend�-las a pre�os mais altos no mercado paralelo.
"Faltava arroz, p�o, feij�o, enfim, raro foi o dia em que um ou mais produtos n�o entraram no 'index' dos sonegadores. Parecia que o pa�s vivia em clima de racionamento de guerra. Como sempre, mais uma vez o governo Jango era responsabilizado pela carestia e pela falta de g�neros", escrevem Torres e Menezes.
Em meio � press�o crescente da sociedade civil, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e Jo�o Goulart indica San Tiago Dantas para substitu�-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indica��o foi vetada pelos setores conservadores.
Em resposta ao veto e � indica��o para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convocou uma greve geral para o dia 5 de julho.
5 de julho de 1962: da greve ao saque
"Frente � fome e � crise econ�mica que se abatia sobre a Baixada e temerosos de perderem seus empregos, os trabalhadores sa�am de madrugada dos bairros mais distantes de Duque de Caxias e se aglomeravam pr�ximos � Pra�a do Pacificador, no centro do munic�pio", escreve Jos� Cl�udio Souza Alves, em seu livro, baseado em tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da USP (Universidade de S�o Paulo).
Frustradas pela impossibilidade de chegar ao trabalho, cerca de 20 mil pessoas se concentravam nos arredores da pra�a por volta das 4h30 da manh�.
Foi quando correu a not�cia de que, em uma casa comercial pr�xima, havia feij�o, produto que naquele momento tinha praticamente sumido da mesa das fam�lias.
"Imediatamente ap�s o saque da Casa da Banha, localizada na antiga estrada Rio-Petr�polis, quase ao lado da Galeria Baltazar, foi a vez dos demais estabelecimentos que estavam pr�ximos: Armaz�m Drag�o, Supermercado S�o Vicente, Mercadinho Nacional", relatam Torres e Menezes.

"A popula��o carregava tudo que encontrava e, dos armaz�ns, passou aos a�ougues e padarias. Pelas ruas, homens, mulheres, crian�as e velhos transportavam da maneira que podiam os mais diversos artigos: latas de biscoitos, sacos de arroz, feij�o, mantas de carne-seca e at� mesmo pe�as inteiras de carne", completam os autores.
Do centro de Caxias, a revolta se espalha por outros munic�pios da Baixada, como S�o Jo�o do Meriti e Nova Igua�u. Ao meio-dia, praticamente todo o com�rcio de alimentos j� havia sido saqueado, sendo poupados apenas estabelecimentos que estenderam na fachada a bandeira do Brasil, com faixas de apoio "� legalidade democr�tica".
Saqueadores saqueados, linchamentos e mortes
Numa padaria na Av. Presidente Vargas, dezenas de pessoas que sa�am com produtos saqueados foram atacadas por outras que esperavam do lado de fora.
O dono de uma loja de materiais de constru��o que, armado, tentou defender uma padaria vizinha, foi morto com um paralelep�pedo. Um comerciante portugu�s atingiu um menor de idade ao atirar contra a multid�o, sendo posteriormente linchado.
Ap�s um jovem de 14 anos ser ferido durante tiroteio, o dono de uma boate foi atacado a pedradas e todos os m�veis do estabelecimento empilhados na rua e incendiados.

"N�s ouvimos a quantidade de pessoas que vinham na frente, gritando 'Quebra! Quebra!', e os outros que vinham atr�s j� saqueando tudo, quebrando todas as portas", recordou a aposentada Maria Concebida, em entrevista sobre suas mem�rias daquele 5 de julho, ao document�rio 1962: O Ano do Saque (2014), de Rodrigo Dutra e Victor Ferreira.
"Onde tivesse uma porta fechada que fosse de com�rcio, quebrava. E carregava de tudo. Ent�o meu marido [falou]: 'Eu vou entrar, porque n�s vamos passar fome'", contou Concebida.
"N�s levamos arroz, feij�o e farinha. Era a �nica coisa mais f�cil para carregar. N�o roubava as coisas de dentro das casas, n�o. Era s� alimento. No fim, os bebuns come�aram a carregar as outras coisas: cacha�a, bebida, tudo."
A greve geral e a onda de saques sem precedentes estamparam as capas e p�ginas internas de todos os jornais na sexta-feira, 6 de julho de 1962.
Sob a manchete "Explos�o popular no Estado do Rio: 700 v�timas e dano de 1 bilh�o", o Jornal do Brasil reportava: "O Pal�cio do Ing� [ent�o sede do Governo Fluminense] informou ontem � noite que 42 pessoas morreram, e 700 foram feridas em quatro Munic�pios do Estado do Rio, onde a popula��o se revoltou e, ganhando as ruas, invadiu um a um todos os armaz�ns, emp�rios e mercadinhos, num saque sistem�tico que causou preju�zos de Cr$ 1 bilh�o [1 bilh�o de cruzeiros]. (...) A manifesta��o foi a maior dessa esp�cie j� verificada no Pa�s."

As consequ�ncias da revolta popular
Jos� Cl�udio, da UFFRJ, conta que muitos estabelecimentos comerciais da Baixada nunca se recuperaram desse epis�dio.
Num relat�rio interno, a Associa��o Comercial e Industrial de Duque de Caxias concluiu que 30% dos comerciantes saqueados n�o se restabeleceram, 50% voltaram em condi��es prec�rias e apenas 20% retornaram em condi��es normais, cita o professor, em seu livro.
"Os processos de indeniza��o eram complexos, pois eram necess�rias regulariza��es e documenta��es para acessar. Ent�o os comerciantes mais din�micos, mais organizados, mais poderosos conseguiram obter recursos volumosos e reestruturam seus mercados. � quando surgem supermercados como Sendas e Casa da Banha", diz Marl�cia, do CRPH/DC, sobre o processo de concentra��o do varejo em grandes redes, ap�s a onda de depreda��o.
Outra consequ�ncia do levante popular de 5 de julho foi um refor�o na seguran�a por parte dos comerciantes atrav�s de grupos armados.
"O delegado convocou volunt�rios para o policiamento da cidade. Estes, em grupo de 12, formariam a Brigada de Defesa da Fam�lia Caxiense. Surgia assim uma for�a paramilitar da qual faziam parte muitos jovens que pertenciam a fam�lias abastadas da cidade", escreve Jos� Cl�udio.
Eronides Batista, presidente da Associa��o Comercial, assim justificou a cria��o da mil�cia, em reportagem da revista Fatos & Fotos, de 21 de julho de 1962:
"Mil�cia � forma de express�o. N�o h� comando militar. Eles apenas procuram evitar novos saques e perturba��es; e at� hoje n�o houve incidentes entre eles e o povo. N�s n�o somos favor�veis, � evidente, � fome. Mas n�o somos respons�veis por ela", defendeu Batista.

O professor da UFFRJ avalia que essa mil�cia nascente � diferente por exemplo, do grupo de Ten�rio Cavalcanti, pol�tico de Caxias conhecido como o "Homem da Capa Preta", vestimenta que usava para esconder a submetralhadora que sempre carregava, chamada Lurdinha.
"Cavalcanti tinha um grupo de capangas, mas de �mbito privado, pessoal. O que acontece em 1962, que � a indica��o de algo diferenciado, � a forma��o de grupos de vigilantes, homens que v�o pegar em armas para proteger o com�rcio, muitos deles ligados � classe m�dia, como a Turma do Esculacho", cita Jos� Cl�udio.
Ele destaca que muitos desses "playboys armados" se projetam politicamente a partir de sua a��o nas mil�cias, caso, por exemplo de Hydekel de Freitas, genro de Ten�rio Cavalcanti, que depois se tornaria prefeito de Duque de Caxias e deputado federal.
"Surge da� a ideia da forma��o de uma estrutura de seguran�a contra uma amea�a que s�o os pr�prios populares da cidade, ao passarem necessidade e fome. � o embri�o de uma estrutura apoiada pelo Estado, financiada pelos comerciantes e tendo por tr�s um apoio pol�tico que a mant�m", diz o pesquisador, sobre os paralelos com a mil�cia atual.
Mas os resultados da greve geral n�o foram apenas negativos. Foi dessa mobiliza��o da classe trabalhadora que nasceram conquistas como o 13º sal�rio.
De 1962 a 2022
Para Jos� Claudio, passados 60 anos, as desigualdades sociais do pa�s se intensificaram, com um fator in�dito: a pandemia, que penalizou mais as camadas vulner�veis. Ele cita ainda a volta da infla��o e da fome, como elementos que permitem um paralelo entre agora e ent�o.
"Mas, naquela �poca, havia um movimento popular e grupos sindicais muito fortes, que queriam modifica��es na sociedade. Esses grupos estavam se organizando e se movimentando. Hoje, n�o h� um movimento forte por parte das camadas populares para sanar as desigualdades sociais e uma organiza��o pol�tica desses grupos dentro do campo da esquerda", avalia o soci�logo.
"Ao contr�rio, h� um crescimento de grupos de extrema direita. Movimentos que querem manter essa popula��o controlada a partir de discursos conservadores, moralistas e que apoiam o exterm�nio, como 'bandido bom � bandido morto'."

O pesquisador observa que as mil�cias e os grupos de exterm�nio se mantiveram ao longo da ditadura militar, aprofundando suas rela��es pol�ticas, econ�micas e territoriais.
"Eles come�am a se eleger nos anos 1990, como vereadores, prefeitos e deputados estaduais nessa regi�o da Baixada. At� que, a partir de meados dos anos 1990, as mil�cias v�o se configurar como s�o hoje, uma estrutura mais ampla, com v�rios mercados de bens e servi�os que eles v�o monopolizar nas �reas que controlam", diz o professor.
"O poder desses grupos hoje � muito mais expressivo do que aquele grupo da Turma do Esculacho, que pegava em armas. Hoje j� superamos isso em muito: s�o mais de 2 milh�es de habitantes atingidos pela mil�cia somente no Rio de Janeiro, 14 munic�pios com presen�a maci�a de milicianos, um territ�rio de 348 km quadrados onde eles est�o atuando e, na cidade do Rio, 57% do territ�rio ocupado por grupos criminais est� na m�o de mil�cias. Ent�o isso mudou muito e, a meu ver, piorou muito, daquele momento para o atual."
- Texto originalmente publicado em: https://bbc.in/3J82yY3
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