
Nos �ltimos dias, o caso de uma menina de 11 anos no Piau� que est� gr�vida pela segunda vez ganhou destaque nacional. V�tima de estupro, a crian�a prosseguiu com a gesta��o na primeira vez e, segundo a fam�lia, a decis�o deve ser a mesma nesse novo epis�dio.
Do ponto de vista legal, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que rela��es sexuais e atos libidinosos com pessoas menores de 14 anos s�o sempre considerados estupros, independentemente de existir qualquer tipo de consentimento das v�timas.
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E, como tamb�m est� previsto na lei, as meninas que engravidam a partir desse crime t�m o direito ao aborto, sem precisar pedir qualquer autoriza��o judicial.
J� do ponto de vista da sa�de, manter uma gravidez numa idade t�o tenra representa um enorme risco: entidades como a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) afirmam que as crian�as que esperam um beb� t�m maior probabilidade de morrer antes, durante e ap�s o parto, al�m de serem acometidas com mais frequ�ncia por quadros como anemia, pr�-ecl�mpsia, ecl�mpsia, diabetes gestacional, infec��es e hemorragias severas.
Uma 'epidemia'
Apesar de casos como o do Piau� chamarem a aten��o, as estat�sticas oficiais brasileiras mostram que o problema � mais profundo do que muita gente pode imaginar.
Entre 2006 e 2015, foram registrados 278 mil partos de nascidos vivos cujas m�es tinham entre 10 e 14 anos pela idade, todas elas foram v�timas de estupros.
Isso significa que, em m�dia, tr�s meninas brasileiras com menos de 14 anos d�o � luz a cada hora.
E � preciso lembrar que esses dados levam em conta apenas os estupros cujo resultado foi uma gravidez que prosseguiu e resultou no nascimento de um beb�.
"Em 2021, apenas na faixa et�ria dos 10 aos 19 anos, o pa�s teve 4.880 mortes maternas, que compreendem o per�odo da gesta��o, do parto e dos 42 dias ap�s o nascimento", calcula a ginecologista e obstetra Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberl�ndia, em Minas Gerais.
A m�dica, que tamb�m trabalha no N�cleo de Aten��o Integral �s V�timas de Agress�o Sexual (Nuavidas) do Hospital das Cl�nicas de Uberl�ndia, conta que essas estat�sticas ganham rosto e hist�rias no dia a dia do consult�rio.
"Muitas vezes, a situa��o fica ainda mais frustrante quando atendemos uma menina de 10 ou 11 anos que engravida de um estupro, mas n�o se sente estuprada", relata a m�dica, que tamb�m integra a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras.
"Ela realmente acha que est� namorando um cara de 23 anos, s� porque ele compra e d� balas e doces de presente."
"� muito doloroso quando, nessa situa��o, n�o h� o desejo de interromper a gravidez. A gente v� como essa maternidade for�ada prejudica n�o apenas o futuro social e econ�mico dessa menina, mas tamb�m a sa�de f�sica e psicol�gica dela", complementa.
O que diz a lei
A advogada Fabiana Severi, professora da Faculdade de Direito de Ribeir�o Preto da Universidade de S�o Paulo (USP), explica que o estupro � um crime previsto no C�digo Penal.
"E quando a conjun��o carnal ou o ato libidinoso acontece com um indiv�duo menor de 14 anos, h� uma viol�ncia presumida que independe de qualquer consentimento", pontua.
Em outras palavras, o ato sexual praticado com uma crian�a ou um pr�-adolescente (at� os 14 anos) � considerado estupro automaticamente, mesmo se a v�tima afirmar que concordou com aquilo.
"Isso est� alinhado com outras legisla��es brasileiras, como o Estatuto da Crian�a e do Adolescente (ECA), que entendem que esses indiv�duos n�o s�o capazes de fazer uma s�rie de atos jur�dicos", diz a especialista, que � pesquisadora da �rea de direito e g�nero.
Ainda na esfera legal, vale lembrar que o aborto n�o � pass�vel de puni��o no Brasil em tr�s situa��es.
"Esse procedimento � permitido quando a gesta��o representa um risco de morte a mulher, se a gravidez � fruto de um estupro ou no caso de fetos anenc�falos, em que h� uma inviabilidade da vida", lista o advogado Fernando Aith, professor titular e diretor do Centro de Pesquisa em Direito Sanit�rio da USP.
Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, casos como o da menina de 11 anos no Piau� t�m o direito assegurado ao aborto por dois motivos. Primeiro, pela gesta��o ser fruto de um estupro. Segundo, pelo pr�prio desenvolvimento de um beb� numa idade t�o tenra representar um risco � sa�de e � vida, como voc� confere a seguir.

Amea�as � sa�de
"O risco de morte na gesta��o, durante o parto ou ap�s o nascimento do beb� � cinco vezes maior nas meninas com menos de 14 anos em compara��o com mulheres gr�vidas de 20 a 29 anos", estipula Paro.
Como mencionado anteriormente, cerca de 4,8 mil adolescentes brasileiras de 10 a 19 anos morrem por ano nessas condi��es.
O Brasil, ali�s, est� entre os pa�ses com a maior taxa de gravidez na adolesc�ncia do mundo. Num trabalho feito pela OMS em 2014, a propor��o de meninas que viram m�es por aqui � a quarta maior entre os 29 pa�ses analisados s� � menor do que o observado em Nicar�gua, Equador e Angola.
Al�m do risco de �bito, as consequ�ncias de ter um filho nessa faixa et�ria s�o bem conhecidas.
Entre m�es crian�as e adolescentes, quadros como pr�-ecl�mpsia (marcado pelo aumento da press�o arterial), diabetes gestacional, anemia e ecl�mpsia (que gera graves convuls�es e danos aos rins) s�o mais frequentes.
"S�o problemas que n�o afetam apenas a gesta��o, como tamb�m t�m consequ�ncias para o resto da vida", destaca Paro.
Os especialistas ainda chamam a aten��o para os efeitos de longo prazo, como o enorme impacto psicol�gico de um epis�dio desses e o abandono escolar, que perpetuam ciclos de pobreza e vulnerabilidade.
Os mecanismos exatos que ajudam a explicar todos esses riscos n�o s�o bem conhecidos mas h� um consenso geral entre m�dicos da �rea que, "na inf�ncia e na puberdade, a menina ainda n�o concluiu seu processo de maturidade cognitiva, psicossocial e biol�gica".
E � justamente essa imaturidade que traz tantas consequ�ncias.
Ainda segundo m�dicos e advogados, o que faz muitas crian�as e adolescentes estupradas seguirem com a gravidez � a press�o da fam�lia e da sociedade.
"E n�s sabemos que o risco de morte em decorr�ncia da pr�pria gesta��o � 14 vezes maior em compara��o com o risco do aborto", calcula Paro.
Severi lembra que, nessas situa��es, n�o � necess�rio o consentimento do pai e da m�e a vontade da crian�a precisa sempre ser respeitada.
"Pela Constitui��o Federal e pelo ECA, a crian�a est� sob a guarda dos pais e eles s�o os principais cuidadores, mas a preserva��o da integridade f�sica e dos direitos fundamentais dela tamb�m � responsabilidade do Estado", avalia.
"Num caso desses, pode ser necess�ria a interven��o do Minist�rio P�blico e do Conselho Tutelar para assegurar o direito ao aborto", complementa.

Tem solu��o?
Num Brasil em que tr�s meninas de 10 a 14 anos v�timas de estupro d�o � luz a cada hora, os especialistas veem a necessidade urgente de mudar as pol�ticas p�blicas.
"O grande problema � que esse debate sempre acaba influenciado por estigmas, preconceitos e vis�es religiosas", lamenta Aith.
"O Brasil nunca teve pol�ticas espec�ficas para lidar com essas quest�es e, nos �ltimos anos, tivemos uma diminui��o importante no or�amento de �reas relacionadas ao combate da viol�ncia dom�stica, o que aumenta ainda mais a vulnerabilidade", aponta Severi.
"Precisamos encarar o aborto n�o sob o ponto de vista da moral e dos costumes, mas da sa�de p�blica, que � onde ele pertence", refor�a Paro.
O primeiro passo, sugere a m�dica, envolve promover a educa��o sexual nas escolas desde a primeira inf�ncia. "Tudo deve ser feito com a linguagem e o contexto adequado, para que as crian�as aprendam desde de cedo a respeitar o corpo e a entender conceitos como consentimento e igualdade de g�nero", exemplifica.
"Al�m disso, precisamos descriminalizar o aborto, criar pol�ticas sobre o planejamento reprodutivo e sobre m�todos de contracep��o."
"S� assim vamos diminuir a viol�ncia contra crian�as, meninas e mulheres e reduzir os n�meros horr�veis de mortalidade materna em nosso pa�s", finaliza.
Procurada pela reportagem da BBC News Brasil, a Federa��o Brasileira das Associa��es de Ginecologia e Obstetr�cia (Febrasgo) encaminhou como resposta uma nota oficial publicada no site da institui��o.
No texto, a entidade refor�a que "nos casos j� previstos em lei (gravidez resultante de estupro, risco de vida � gestante e anencefalia fetal), n�o h� necessidade de solicitar autoriza��o judicial para o tratamento [o aborto]".
"O atraso do tratamento coloca em risco a sa�de das meninas e mulheres que j� t�m o direito garantido e provoca desnecess�ria inseguran�a jur�dica aos profissionais de sa�de", prossegue a nota.
"Defendemos os direitos civis, reprodutivos e constitucionais das meninas, adolescentes e mulheres brasileiras", conclui o texto.
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