
Um conto crist�o de terror se instalou. Xingaram mulheres, �s vezes idosas, de lixo. Um malfeitor questionou, ao grito, se as pessoas eram crentes. Melhor que n�o fossem.
Dormia-se num alojamento mal-ajambrado. De manh�, um caf� frio e sem a��car, o p�o sem manteiga. No jantar, sopa de p� de galinha servida numa cumbuca improvisada com fundo de garrafa PET.
Em dado momento, o grupo chegou ao que parecia ser uma igreja clandestina. Ouviu-se uma explos�o. Durante todo o tempo imperou o clima de medo. Uma jovem foi torturada e morta, ou ao menos deu-se a entender assim. Outra, estuprada. Cortaram a l�ngua de uma mission�ria e a jogaram na m�o de um homem —um peda�o de carne ensanguentada.
Um pedido era reiterado sempre que poss�vel pelos raptores: nega Jesus!
A experi�ncia, relatada � Folha em julho por um participante, foi arquitetada pela Comunidade B�blica Internacional, igreja sediada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Era tudo encena��o: uma fantasia aterrorizante para fazer o fiel sentir na pele o que � uma na��o sem liberdade religiosa, como se o cristianismo no Brasil tamb�m estivesse a perigo.
Uma "mistura de campo de concentra��o nazista com acampamento do Jim Jones", nas palavras desse membro que odiou a viv�ncia. Jones foi o l�der de uma seita que, em 1978, levou quase mil pessoas ao suic�dio, com a ingest�o de suco com cianureto.
Em nome de Jesus, algumas igrejas evang�licas decidiram radicalizar. Existem hoje uma mir�ade de projetos que carregam o sufixo "radical": Impacto Radical, Influ�ncia Radical e por a� vai.
A representa��o montada pela igreja de Duque de Caxias se chama Onda Radical. A reportagem entrou em contato, pelo telefone e rede social, com o pastor Eduardo Vieira, um dos respons�veis. Ele manteve uma postura desconfiada, que se repetiu toda vez que a reportagem procurou algum porta-voz dessas a��es.
Ap�s apagar mensagens que escreveu, Vieira deu uma resposta sint�tica sobre o prop�sito daquilo tudo: "O que posso lhe dizer � que existem centenas de igrejas e projetos que seguem a mesma tem�tica teatral, que h� anos vem impactando vidas de muitas pessoas: adictos libertos de v�cios, casamentos destru�dos sendo restaurados, fam�lias desfragmentadas sendo unidas em prol do Evangelho".
Tamanha retic�ncia em falar sobre as ondas radicais que inundam a periferia evang�lica tem explica��o. H� o medo de que, uma vez exposto na m�dia, o movimento seja estigmatizado. E tamb�m o risco de arruinar o elemento surpresa das performances.
Em S�o Jo�o do Meriti (RJ), a Primeira Igreja Batista em �den promove o Atitude Radical, descrito como "um acampamento ricamente aben�oador" onde todos "ser�o tratados como crist�os da IGREJA PERSEGUIDA".
Regras do jogo: n�o pode mulher gr�vida e menor de 18 anos. Esque�a o conforto ("tudo faz parte do processo") e se prepare para "atividades que exigir�o esfor�o f�sico, emocional e ps�quico". H� etapas para menores, o Atitude Radical J�nior (8 a 11 anos) e o Ateentude Radical (12 a 17 anos).
Tudo come�ou em 2010, quando 17 l�deres da igreja foram enviados para um projeto inspirado no Acampa Underground, simula��o desenvolvida pela Miss�o Portas Abertas, uma organiza��o crist� internacional.
Um v�deo divulgado pela entidade d� spoilers de uma din�mica semelhante � narrada pelo integrante do Onda Radical. Fi�is no meio do mato, barulhos de tiros e algozes de trajes mu�ulmanos.
Em 2021, a mineira Comunidade Evang�lica Nova Vida lan�ou o Trem Radical. O evento come�ou com m�sica eletr�nica e o an�ncio do pastor: "Chegou o dia! Fica de p� a�, seu crente lerdo! Tamo junto!".
O tel�o exibiu um recado do pastor Arildo Borges Xavier, da irm� Atitude Radical. "No Rio, dizemos que o crente que vem fazer o Atitude Radical, ele leva um tranco. � como se a gente pegasse nos ombros de cada crente e dissesse: voc� est� brincando de ser crente, voc� vai aprender agora como ser um servo de Jesus."
A apresenta��o do Impacto Radical, de uma igreja batista de Belford Roxo (RJ), lembra um filme da Marvel. Frases de efeito dram�tico saltam na tela ("voc� ora? tem f�?") acompanhadas de uma trilha heroica. Recomenda-se levar B�blia, roupa de cama, travesseiro, toalha, t�nis velho, roupa, rem�dios indispens�veis, alimenta��o "de uso pessoal" e "muita disposi��o e coragem".
Projetos assim est�o longe do consenso no segmento. Muitos desconhecem que existam. O presidente da bancada evang�lica n�o tinha ideia do que eram at� a reportagem perguntar o que achava deles.
O deputado S�stenes Cavalcante (PL-RJ) se disse chocado ao ouvir o relato sobre a Onda Radical. "Esse povo n�o pode ser considerado evang�lico, tem que ser considerado terrorista."
Pedro Lu�s Barreto Litwincsuk, o pastor Pedr�o, da Comunidade Batista do Rio, v� os circuitos radicais como evolu��o de um retiro organizado pelo G12, modelo de c�lulas evangelizadoras popularizado pelo pastor colombiano C�sar Castellanos.
Os chamados Encontros com Deus j� tinham a meta de evangelizar por meio de sensa��es fortes. "Voc� tinha que largar celular, deixar tudo, e l� eles tinham v�rias simula��es. At� fingir que tinha um parente morto seu no caix�o, [falavam] ‘t� vendo, t� morto, voc� n�o falou de Jesus, essa pessoa vai pro inferno, a culpa � sua’."
Pedr�o considera a autointitulada via radical, com "o choque de gest�o que voc� d� no cara", um exagero. "Eles querem mostrar o perigo que as pessoas correm, a igreja perseguida. Mas a B�blia fala ‘n�o por for�a nem por viol�ncia, mas pelo Esp�rito’."
� preciso assinar um termo de consentimento para participar dessas pr�ticas. Algumas aceitam menores de idade, desde que acompanhados. Era o caso da ancorada pela Comunidade Internacional B�blica, que questionava se a pessoa � crist� ou afastada do Evangelho, se tem problemas de sa�de e se j� se vacinou contra a Covid.
A s�tima edi��o da Onda Radical est� marcada para 30 de setembro a 2 de outubro, ao custo de R$ 170. O termo explica que, por meio de encena��es, o indiv�duo ser� "confrontado com suas pr�prias mazelas e caprichos" e desafiado a "tomar atitudes corretas de um verdadeiro crist�o".
Kathielly Azevedo esteve na quinta edi��o. Numa rede social, postou imagens antigas suas, tristonha com vestes de religi�es afro-brasileiras ou bebendo �lcool, e fotos atuais dela sorridente vestindo a camisa da Onda Radical. "Deus marcou um encontro comigo e me fez perceber que n�o havia nada de bom em mim", escreveu na legenda.
Ela � lac�nica quando conta � Folha sobre o acampamento, como se n�o quisesse quebrar o pacto de sil�ncio em torno do programa. "Deus nunca disse que a jornada seria f�cil, mas Ele disse que a chegada valeria a pena."