
Por onde passam os pedestres em uma cidade planejada para carros?
Uma s�rie de imagens registradas em Bras�lia nos �ltimos dez anos pelo fot�grafo Diego Bresani retrata os trajetos inventados por quem anda a p� na cidade pensada para o tr�nsito de autom�veis.
S�o caminhos formados geralmente na rota mais curta ou mais conveniente para o pedestre - rotas que o fot�grafo aprendeu com colegas da �rea de urbanismo a chamar de "linhas de desejo".

No Plano Piloto (�rea central de Bras�lia), essas passagens improvisadas cruzam gramados, encostas e at� margeiam vias que nem sequer oferecem cal�adas.

"Essa � uma cidade em que, definitivamente, a pessoa que anda foi esquecida. Ela � monumental, � uma cidade bonita vista do carro, com certeza. Mas para quem anda nela, � uma cidade muito dura - voc� n�o tem cal�adas, precisa criar seu caminho, precisa muitas vezes lutar por espa�o com carros", diz Bresani.
S�mbolo da arquitetura modernista, a capital - Patrim�nio Cultural da Humanidade, segundo a Unesco - � conhecida por caracter�sticas como vias expressas e poucos sem�foros.

"Alguns lugares at� t�m uma proposta de cal�ada, mas essa proposta provavelmente � muito mais bonita de ser vista de cima. � visualmente bonita, mas n�o � pr�tica", diz. "As pessoas passam no meio, pela grama, porque, �bvio, assim voc� chega mais r�pido � parada de �nibus. Ent�o tem uma esp�cie de subvers�o, de transgress�o dessa l�gica (do planejamento inicial)."

A ideia do projeto fotogr�fico come�ou em 2013, depois que Bresani - que nasceu e cresceu no Plano Piloto - vendeu o carro e "virou pedestre".
"Comecei a ver que existiam essas rotas criadas por pessoas na cidade de Bras�lia, que quem anda de carro n�o v� ou n�o presta muita aten��o. Mas quem precisa se locomover sem carro precisa usar essas rotas ou criar novas."

Brasiliense de 39 anos, ele diz que, por tr�s de seus trabalhos, est� a inquieta��o de responder como existir em uma cidade inventada.
Ele, que tamb�m � diretor de teatro, interpreta esses caminhos como uma "segunda inven��o" na cidade inventada.
Bras�lia foi constru�da durante o governo Juscelino Kubitschek e inaugurada em 1960.

As fotos, em preto e branco, s�o feitas em uma c�mera anal�gica de grande formato, com chapas de filmes fotogr�ficos que s�o reveladas em S�o Paulo.
Durante o processo, Bresani percebeu diferen�as no resultado em diferentes �pocas do ano. "Uma linha de desejo, no filme preto e branco, sai de diferentes formas. Na chuva, a terra fica molhada e sai mais escura, preta. Na seca, reflete mais luz, ent�o sai branca."
O fot�grafo tamb�m percebeu que esses caminhos s�o mais vivos do que parecem.
"Durante a pandemia, eu falei: agora ser� �timo para fotografar porque n�o vai ter ningu�m na rua - e eu n�o queria pegar muita gente na rua. Mas cheguei e: cad� os caminhos? Eles foram sumindo. Como n�o tinha pessoas andando, a grama ia crescendo e eles iam desaparecendo. Quando as pessoas foram voltando para o trabalho, eles foram sendo reconstru�dos."
E se algumas s�o rotas consolidadas, outras t�m vida curta.
"� muito comum um caminho ser reconstru�do, outros desaparecerem, porque, por exemplo, abriu uma parada de �nibus em outro lugar. � bem org�nico", diz. "Tem uns que s�o bem consolidados, mas outros duram, sei l�, seis meses, que � o tempo que durou uma constru��o. A�, depois que acabou a constru��o, ele some."

Outra caracter�stica que ficou clara nesses anos em que o fot�grafo saiu nas primeiras horas da manh� para fotografar os caminhos - em um momento ainda sem muitos pedestres - foi o perfil do p�blico que diariamente desenha esses caminhos.
"S�o as pessoas que trabalham em Bras�lia, n�o s�o as que moram no Plano Piloto. Ent�o, essa subvers�o da l�gica modernista � feita por pessoas que moram na periferia de Bras�lia, trabalhadores e trabalhadoras. N�o por moradores do Plano Piloto, que, na sua grande maioria, usam carros."

O pr�ximo passo do projeto � exatamente fotografar as pessoas que passam por esses caminhos. E Bresani j� identificou uma clara predomin�ncia de g�neros, dependendo do hor�rio.
"�s 6h30 da manh� voc� encontra basicamente homens, que est�o indo para constru��o civil. Se vai 7h30, 8h, voc� encontra mulheres que s�o cozinheiras, bab�s, empregadas dom�sticas."
'Caminhos da necessidade'

A arquiteta e urbanista Thaisa Comelli, formada pela Universidade de Bras�lia (UnB) e doutora em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que "claramente existe uma divis�o socioecon�mica com recortes raciais e de g�nero" nesse tema.
"Os 'caminhos do desejo', org�nicos, na realidade s�o 'caminhos da necessidade' para muitos - popula��es da periferia sem acesso a ve�culos automotivos - e, se ermos e pouco dotados de infraestrutura, podem ser perigosos para mulheres e outros grupos vulner�veis", diz. "Infelizmente h� pouca discuss�o ainda sobre como as pessoas experimentam a cidade de formas diferentes. Esses temas �s vezes entram como pautas sup�rfluas, est�ticas ou cotidianas, quando na verdade s�o janelas para quest�es mais s�rias."

Comelli tamb�m destaca a falta de acessibilidade. "Temos muitos avan�os na legisla��o arquitet�nica, mas na escala da cidade isso � menos pensado e refor�ado. Bras�lia � um caso especialmente dif�cil. Imagine o trajeto de uma pessoa cadeirante que quer se deslocar da W3 para a L2? � uma jornada de obst�culos…", diz, em refer�ncia a duas das principais vias de Bras�lia.

Na pr�tica, o que faz de Bras�lia uma cidade "por vezes pouco sens�vel aos pedestres", nas palavras da urbanista?
Comelli cita tr�s caracter�sticas, que refletem paradigmas do urbanismo modernista:
- A escala da cidade, "que cria grandes dist�ncias entre pontos de interesse"
- O rodoviarismo, "infraestrutura focada nas necessidades de ve�culos motorizados, n�o de pessoas"
- A rigidez no desenho urbano, "que faz com que alguns desses problemas n�o sejam facilmente solucionados por meio de interven��es urban�sticas"

Antes de falar em solu��es, Comelli destaca que "dentro de Bras�lia existem muitas Bras�lias" e "cada 'peda�o' da cidade vai requer uma solu��o diferente".
"A quest�o do tombamento gera restri��es na escala da cidade, justamente porque o car�ter rodovi�rio � protegido. Interven��es simples e baratas, como colocar um sem�foro no Eix�o, melhorariam muito a vida dos pedestres, mas s�o impopulares e consideradas 'agressoras' do desenho de Bras�lia", diz.

Comelli considera, ainda, que "falta vontade pol�tica para enfrentar o problema" e menciona que j� houve concursos de projeto para melhorar as passagens subterr�neas, por exemplo, mas diz que n�o houve avan�o na implementa��o.
"Considerando esses impasses, o que resta para o brasiliense � apostar nas interven��es na escala de bairro - ou da quadra -, que podem melhorar um pouco a vida, mas que n�o solucionam quest�es estruturais da cidade", diz. "Sombrear melhor as passagens j� existentes - org�nicas - ou investir em pequenas interven��es comerciais ou de ilumina��o e mobili�rio que deixem os caminhos mais vivos, alegres e seguros tamb�m ajuda. Mas o problema da mobilidade a longo prazo n�o se resolver� com esses pequenos gestos."

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Frederico Fl�sculo diz que, na quest�o da mobilidade associada com acessibilidade, "Bras�lia � uma das piores cidades do Brasil". "As pessoas s�o muito mal tratadas", diz.
"Se somos patrim�nio cultural da humanidade modernista, � nesta cidade que os melhores experimentos de promo��o de qualidade de vida deveriam ser feitos. E, paradoxalmente, � nesta cidade que os melhores experimentos de qualidade de vida n�o s�o feitos", afirma o professor.

Para Fl�sculo, o equil�brio entre autom�veis e pedestres esteve presente no projeto do urbanista L�cio Costa para o Plano Piloto, especialmente no sistema de circula��o nas superquadras, que foram concebidas "de modo sinuoso, para dificultar a velocidade do autom�vel e facilitar a circula��o do pedestre por toda a periferia das quadras".
O professor atribui algumas das dificuldades sentidas at� hoje ao momento de execu��o do projeto. "Do sonho de L�cio Costa � realidade da constru��o de Bras�lia, houve uma s�rie enorme de ajustamentos feitos por Israel Pinheiro - engenheiro, respons�vel pela execu��o da cidade, presidente da Novacap (empresa do Governo do Distrito Federal)".
"Israel Pinheiro economizou muito no cap�tulo pedestres", diz ele, acrescentando que os caminhos alternativos criados por pedestres s�o vistos h� d�cadas.

O grande problema, diz Fl�sculo, � que problemas antigos n�o tenham sido resolvidos mais de seis d�cadas depois. Historicamente, diz ele, "o governo � consistentemente insens�vel �s necessidades da comunidade".
"A gente compreende que L�cio Costa tinha uma tarefa muito pragm�tica, de execu��o muito r�pida. Mas isso aconteceu naqueles mil dias de execu��o de Bras�lia. S� que Bras�lia est� para completar 63 anos de idade - e essa delicadeza j� dava tempo de ter sido encarada e o governo n�o faz isso. Continuamos num modelo de abordagem grosseira, que se revela nos caminhos dos pedestres naquela cidade que deveria ser desenhada para os idosos, crian�as, cadeirantes, pessoas com limita��es."
"O movimento modernista n�o considerava as fragilidades do cotidiano e a gente ainda n�o aprendeu isso", diz.

O que diz o Governo do Distrito Federal
A BBC News Brasil procurou o Governo do Distrito Federal (GDF) para responder �s cr�ticas sobre falta de acessibilidade em Bras�lia e de uma pol�tica voltada para as necessidades dos pedestres.
A assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habita��o respondeu que, "em aproximadamente quatro anos, foram feitos cerca de 530 km de passeios, atendendo a pedestres das 33 regi�es administrativas".
Disse, ainda, que o projeto Rotas Acess�veis "tem mapeadas v�rias interven��es para melhorias pela capital" e que atualmente dois locais est�o sendo atendidos - o Instituto Federal de Bras�lia (IFB) em S�o Sebasti�o e o entorno do Hospital Regional do Guar�.
O projeto, segundo a assessoria, seleciona um ponto e, a partir dele, "desenvolve o projeto da rota tomando como base os pontos de �nibus mais pr�ximos, estabelecendo trajetos cont�nuos, sinalizados e livres de obst�culos".
A Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal disse que est� em andamento o Plano de Mobilidade Ativa (PMA), que "tem como foco melhorar as infraestruturas de mobilidade para a popula��o, incentivar a migra��o dos usu�rios dos modos motorizados para os modos ativos de deslocamento e requalificar o espa�o p�blico para torn�-los mais acess�veis e com deslocamentos mais seguro para os pedestres, ciclistas, idosos, cadeirantes e pessoas com defici�ncia".
Segundo o �rg�o, foram executados projetos na W3, no Setor Hospitalar Sul, Setor de R�dio e TV Sul, na Pra�a do Povo, entre outros.
