(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LINHAS DO DESEJO

Os caminhos inventados por pedestres em Bras�lia, cidade feita para carros

Confira s�rie de fotografias que revelam os caminhos feitos na �ltima d�cada por pedestres em Bras�lia %u2013 e o que dizem urbanistas sobre os desafios para quem anda a p� na capital.


21/12/2022 10:03 - atualizado 21/12/2022 10:44


foto mostra caminho alternativo criado por pedestres na Zona Central Norte, ao longo do Eixão
Caminho alternativo criado por pedestres na Zona Central Norte de Bras�lia, ao longo do Eix�o, via sem cal�ada e com seis faixas para carros (foto: Diego Bresani)

Por onde passam os pedestres em uma cidade planejada para carros?

Uma s�rie de imagens registradas em Bras�lia nos �ltimos dez anos pelo fot�grafo Diego Bresani retrata os trajetos inventados por quem anda a p� na cidade pensada para o tr�nsito de autom�veis.

S�o caminhos formados geralmente na rota mais curta ou mais conveniente para o pedestre - rotas que o fot�grafo aprendeu com colegas da �rea de urbanismo a chamar de "linhas de desejo".


caminho cruza a grama na Via N4 Leste
Caminho feito por pedestres cruza gramado na Via N4 Leste, no Plano Piloto (foto: Diego Bresani)

No Plano Piloto (�rea central de Bras�lia), essas passagens improvisadas cruzam gramados, encostas e at� margeiam vias que nem sequer oferecem cal�adas.


caminho criado na via N2 norte, com Congresso Nacional ao fundo
Pedestres n�o encontram cal�ada neste trecho da N2 norte, via paralela ao Eixo Monumental (foto: Diego Bresani)

"Essa � uma cidade em que, definitivamente, a pessoa que anda foi esquecida. Ela � monumental, � uma cidade bonita vista do carro, com certeza. Mas para quem anda nela, � uma cidade muito dura - voc� n�o tem cal�adas, precisa criar seu caminho, precisa muitas vezes lutar por espa�o com carros", diz Bresani.

S�mbolo da arquitetura modernista, a capital - Patrim�nio Cultural da Humanidade, segundo a Unesco - � conhecida por caracter�sticas como vias expressas e poucos sem�foros.


caminho criado por pedestres no Setor Hoteleiro Sul
(foto: Diego Bresani)

Nessas condi��es, o fot�grafo fala em "valentia" dos trabalhadores que cruzam os espa�os da capital.

"Alguns lugares at� t�m uma proposta de cal�ada, mas essa proposta provavelmente � muito mais bonita de ser vista de cima. � visualmente bonita, mas n�o � pr�tica", diz. "As pessoas passam no meio, pela grama, porque, �bvio, assim voc� chega mais r�pido � parada de �nibus. Ent�o tem uma esp�cie de subvers�o, de transgress�o dessa l�gica (do planejamento inicial)."


caminho criado em área inclinada no Eixo Sul
Um dos pontos de debate do urbanismo brasiliense � como atravessar o Eix�o e os chamados Eixinhos (vias nas asas de Bras�lia), que contam com passagens subterr�neas (na foto, caminho org�nico no Eixo Sul) (foto: Diego Bresani)

A ideia do projeto fotogr�fico come�ou em 2013, depois que Bresani - que nasceu e cresceu no Plano Piloto - vendeu o carro e "virou pedestre".

"Comecei a ver que existiam essas rotas criadas por pessoas na cidade de Bras�lia, que quem anda de carro n�o v� ou n�o presta muita aten��o. Mas quem precisa se locomover sem carro precisa usar essas rotas ou criar novas."


110 norte: caminho feito por pedestres cruza caminho asfaltado
Na quadra residencial 110 norte, caminho alternativo cruza o trajeto 'oficial' (foto: Diego Bresani)

Brasiliense de 39 anos, ele diz que, por tr�s de seus trabalhos, est� a inquieta��o de responder como existir em uma cidade inventada.

Ele, que tamb�m � diretor de teatro, interpreta esses caminhos como uma "segunda inven��o" na cidade inventada.

Bras�lia foi constru�da durante o governo Juscelino Kubitschek e inaugurada em 1960.


caminho no gramado da 207 norte
Caminho cruza o gramado da quadra residencial 207 norte (foto: Diego Bresani)

As fotos, em preto e branco, s�o feitas em uma c�mera anal�gica de grande formato, com chapas de filmes fotogr�ficos que s�o reveladas em S�o Paulo.

Durante o processo, Bresani percebeu diferen�as no resultado em diferentes �pocas do ano. "Uma linha de desejo, no filme preto e branco, sai de diferentes formas. Na chuva, a terra fica molhada e sai mais escura, preta. Na seca, reflete mais luz, ent�o sai branca."

O fot�grafo tamb�m percebeu que esses caminhos s�o mais vivos do que parecem.

"Durante a pandemia, eu falei: agora ser� �timo para fotografar porque n�o vai ter ningu�m na rua - e eu n�o queria pegar muita gente na rua. Mas cheguei e: cad� os caminhos? Eles foram sumindo. Como n�o tinha pessoas andando, a grama ia crescendo e eles iam desaparecendo. Quando as pessoas foram voltando para o trabalho, eles foram sendo reconstru�dos."

E se algumas s�o rotas consolidadas, outras t�m vida curta.

"� muito comum um caminho ser reconstru�do, outros desaparecerem, porque, por exemplo, abriu uma parada de �nibus em outro lugar. � bem org�nico", diz. "Tem uns que s�o bem consolidados, mas outros duram, sei l�, seis meses, que � o tempo que durou uma constru��o. A�, depois que acabou a constru��o, ele some."


três caminhos de pedestres no Setor Cultural Norte
No Setor Cultural Norte, no centro de Bras�lia, tr�s linhas atravessam o gramado em �rea sem cal�adas (foto: Diego Bresani)

Outra caracter�stica que ficou clara nesses anos em que o fot�grafo saiu nas primeiras horas da manh� para fotografar os caminhos - em um momento ainda sem muitos pedestres - foi o perfil do p�blico que diariamente desenha esses caminhos.

"S�o as pessoas que trabalham em Bras�lia, n�o s�o as que moram no Plano Piloto. Ent�o, essa subvers�o da l�gica modernista � feita por pessoas que moram na periferia de Bras�lia, trabalhadores e trabalhadoras. N�o por moradores do Plano Piloto, que, na sua grande maioria, usam carros."


homem desce área inclinada na 201 norte
Bresani planeja, na segunda etapa do projeto, fotografar os trabalhadores que usam esses caminhos no Plano Piloto (foto: Diego Bresani)

O pr�ximo passo do projeto � exatamente fotografar as pessoas que passam por esses caminhos. E Bresani j� identificou uma clara predomin�ncia de g�neros, dependendo do hor�rio.

"�s 6h30 da manh� voc� encontra basicamente homens, que est�o indo para constru��o civil. Se vai 7h30, 8h, voc� encontra mulheres que s�o cozinheiras, bab�s, empregadas dom�sticas."

'Caminhos da necessidade'


caminho formado pelos pedestres forma um ´atalho´ na 207 sul
Na 207 sul, caminho org�nico que leva � parada de �nibus representa uma dist�ncia menor que o trajeto cal�ado (foto: Diego Bresani)

A arquiteta e urbanista Thaisa Comelli, formada pela Universidade de Bras�lia (UnB) e doutora em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que "claramente existe uma divis�o socioecon�mica com recortes raciais e de g�nero" nesse tema.

"Os 'caminhos do desejo', org�nicos, na realidade s�o 'caminhos da necessidade' para muitos - popula��es da periferia sem acesso a ve�culos automotivos - e, se ermos e pouco dotados de infraestrutura, podem ser perigosos para mulheres e outros grupos vulner�veis", diz. "Infelizmente h� pouca discuss�o ainda sobre como as pessoas experimentam a cidade de formas diferentes. Esses temas �s vezes entram como pautas sup�rfluas, est�ticas ou cotidianas, quando na verdade s�o janelas para quest�es mais s�rias."


caminho criado por pedestres no Setor Comercial Sul
"Os 'caminhos do desejo', org�nicos, na realidade s�o 'caminhos da necessidade' para muitos", diz a urbanista Thaisa Comelli (foto: Diego Bresani)

Comelli tamb�m destaca a falta de acessibilidade. "Temos muitos avan�os na legisla��o arquitet�nica, mas na escala da cidade isso � menos pensado e refor�ado. Bras�lia � um caso especialmente dif�cil. Imagine o trajeto de uma pessoa cadeirante que quer se deslocar da W3 para a L2? � uma jornada de obst�culos…", diz, em refer�ncia a duas das principais vias de Bras�lia.


412 norte
Pequeno caminho org�nico 'encurta dist�ncia' na 412 norte (foto: Diego Bresani)

Na pr�tica, o que faz de Bras�lia uma cidade "por vezes pouco sens�vel aos pedestres", nas palavras da urbanista?

Comelli cita tr�s caracter�sticas, que refletem paradigmas do urbanismo modernista:

  • A escala da cidade, "que cria grandes dist�ncias entre pontos de interesse"
  • O rodoviarismo, "infraestrutura focada nas necessidades de ve�culos motorizados, n�o de pessoas"
  • A rigidez no desenho urbano, "que faz com que alguns desses problemas n�o sejam facilmente solucionados por meio de interven��es urban�sticas"

caminho de pedestres em área íngreme na lateral da via S3 sul
'Se ermos e pouco dotados de infraestrutura, (esses caminhos) podem ser perigosos para mulheres e outros grupos', diz Comelli; na foto, via S3 Sul (foto: Diego Bresani)

Antes de falar em solu��es, Comelli destaca que "dentro de Bras�lia existem muitas Bras�lias" e "cada 'peda�o' da cidade vai requer uma solu��o diferente".

"A quest�o do tombamento gera restri��es na escala da cidade, justamente porque o car�ter rodovi�rio � protegido. Interven��es simples e baratas, como colocar um sem�foro no Eix�o, melhorariam muito a vida dos pedestres, mas s�o impopulares e consideradas 'agressoras' do desenho de Bras�lia", diz.


caminho na via S3 sul
Caracter�stica do modernismo, Bras�lia tem infraestrutura focada nas necessidades de ve�culos motorizados, n�o de pessoas; na foto, via S3 Sul (foto: Diego Bresani)

Comelli considera, ainda, que "falta vontade pol�tica para enfrentar o problema" e menciona que j� houve concursos de projeto para melhorar as passagens subterr�neas, por exemplo, mas diz que n�o houve avan�o na implementa��o.

"Considerando esses impasses, o que resta para o brasiliense � apostar nas interven��es na escala de bairro - ou da quadra -, que podem melhorar um pouco a vida, mas que n�o solucionam quest�es estruturais da cidade", diz. "Sombrear melhor as passagens j� existentes - org�nicas - ou investir em pequenas interven��es comerciais ou de ilumina��o e mobili�rio que deixem os caminhos mais vivos, alegres e seguros tamb�m ajuda. Mas o problema da mobilidade a longo prazo n�o se resolver� com esses pequenos gestos."


SCES Trecho 3 Polo 7: caminho em área de vias sem calçadas
'Se somos patrim�nio cultural da humanidade modernista, � nesta cidade que os melhores experimentos de promo��o de qualidade de vida deveriam ser feitos', diz urbanista (foto: Diego Bresani)

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Frederico Fl�sculo diz que, na quest�o da mobilidade associada com acessibilidade, "Bras�lia � uma das piores cidades do Brasil". "As pessoas s�o muito mal tratadas", diz.

"Se somos patrim�nio cultural da humanidade modernista, � nesta cidade que os melhores experimentos de promo��o de qualidade de vida deveriam ser feitos. E, paradoxalmente, � nesta cidade que os melhores experimentos de qualidade de vida n�o s�o feitos", afirma o professor.


caminho na 212 norte
Em mobilidade e acessibilidade, 'Bras�lia � uma das piores cidades do Brasil', diz professor da UnB; na foto, 212 norte (foto: Diego Bresani)

Para Fl�sculo, o equil�brio entre autom�veis e pedestres esteve presente no projeto do urbanista L�cio Costa para o Plano Piloto, especialmente no sistema de circula��o nas superquadras, que foram concebidas "de modo sinuoso, para dificultar a velocidade do autom�vel e facilitar a circula��o do pedestre por toda a periferia das quadras".

O professor atribui algumas das dificuldades sentidas at� hoje ao momento de execu��o do projeto. "Do sonho de L�cio Costa � realidade da constru��o de Bras�lia, houve uma s�rie enorme de ajustamentos feitos por Israel Pinheiro - engenheiro, respons�vel pela execu��o da cidade, presidente da Novacap (empresa do Governo do Distrito Federal)".

"Israel Pinheiro economizou muito no cap�tulo pedestres", diz ele, acrescentando que os caminhos alternativos criados por pedestres s�o vistos h� d�cadas.


três caminhos de pedestres em gramado próximo ao Teatro Nacional, no Setor Cultural Norte
Tr�s caminhos de pedestres em gramado pr�ximo ao Teatro Nacional, no Setor Cultural Norte (foto: Diego Bresani)

O grande problema, diz Fl�sculo, � que problemas antigos n�o tenham sido resolvidos mais de seis d�cadas depois. Historicamente, diz ele, "o governo � consistentemente insens�vel �s necessidades da comunidade".

"A gente compreende que L�cio Costa tinha uma tarefa muito pragm�tica, de execu��o muito r�pida. Mas isso aconteceu naqueles mil dias de execu��o de Bras�lia. S� que Bras�lia est� para completar 63 anos de idade - e essa delicadeza j� dava tempo de ter sido encarada e o governo n�o faz isso. Continuamos num modelo de abordagem grosseira, que se revela nos caminhos dos pedestres naquela cidade que deveria ser desenhada para os idosos, crian�as, cadeirantes, pessoas com limita��es."

"O movimento modernista n�o considerava as fragilidades do cotidiano e a gente ainda n�o aprendeu isso", diz.


Meio fio quebrado, atravessado por caminho feito por pedestres na 404 norte
'Continuamos num modelo de abordagem grosseira, que se revela nos caminhos dos pedestres naquela cidade que deveria ser desenhada para os idosos, crian�as, cadeirantes, pessoas com limita��es', diz professor (foto: Diego Bresani)

O que diz o Governo do Distrito Federal

A BBC News Brasil procurou o Governo do Distrito Federal (GDF) para responder �s cr�ticas sobre falta de acessibilidade em Bras�lia e de uma pol�tica voltada para as necessidades dos pedestres.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habita��o respondeu que, "em aproximadamente quatro anos, foram feitos cerca de 530 km de passeios, atendendo a pedestres das 33 regi�es administrativas".

Disse, ainda, que o projeto Rotas Acess�veis "tem mapeadas v�rias interven��es para melhorias pela capital" e que atualmente dois locais est�o sendo atendidos - o Instituto Federal de Bras�lia (IFB) em S�o Sebasti�o e o entorno do Hospital Regional do Guar�.

O projeto, segundo a assessoria, seleciona um ponto e, a partir dele, "desenvolve o projeto da rota tomando como base os pontos de �nibus mais pr�ximos, estabelecendo trajetos cont�nuos, sinalizados e livres de obst�culos".

A Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal disse que est� em andamento o Plano de Mobilidade Ativa (PMA), que "tem como foco melhorar as infraestruturas de mobilidade para a popula��o, incentivar a migra��o dos usu�rios dos modos motorizados para os modos ativos de deslocamento e requalificar o espa�o p�blico para torn�-los mais acess�veis e com deslocamentos mais seguro para os pedestres, ciclistas, idosos, cadeirantes e pessoas com defici�ncia".

Segundo o �rg�o, foram executados projetos na W3, no Setor Hospitalar Sul, Setor de R�dio e TV Sul, na Pra�a do Povo, entre outros.


Foto do cruzamento de caminhos de pedestres na 207 norte faz referência à foto do marco zero de Brasília, de Mario Fontenelle
Foto do cruzamento de caminhos de pedestres na 207 norte faz refer�ncia � foto do marco zero de Bras�lia, de Mario Fontenelle (foto: Diego Bresani)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)