
O pa�s j� tinha muitas fragilidades na aten��o obst�trica, mas, com a crise sanit�ria, elas se intensificaram. Um dos indicadores mais importantes � a raz�o de mortalidade materna (RMM), que computa �bitos relacionados a complica��es na gravidez e at� 42 dias ap�s o parto (puerp�rio).
Em 2021, a RMM apontou que, a cada 100 mil nascidos vivos, houve 110 mortes de mulheres, mesma taxa registrada em 1998.
Os dados preliminares do Minist�rio da Sa�de, compilados pelo OOBr (Observat�rio Obst�trico Brasileiro), mostram que o n�mero � quase o dobro do registrado em 2019, per�odo anterior � pandemia, quando a raz�o foi de 57,9 mortes. Em 2020, a taxa oficial foi de 71,9 �bitos por 100 mil nascidos vivos.
Em n�meros absolutos, foram 1.964 mortes em 2020 e 2.941 mortes em 2021. Os dados de 2022 ainda n�o est�o consolidados.
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S� para efeito de compara��o, nos Estados Unidos, foram 861 �bitos maternos em 2020 e 1.178 em 2021, segundo o CDC (Centro de Controle e Preven��o de Doen�as). Somados, eles representam menos da metade das mortes brasileiras nesse per�odo.
O Brasil � signat�rio de um acordo firmado com a ONU (Organiza��o das Na��es Unidas) em 2015 para reduzir, at� 2030, a raz�o de mortalidade materna para, no m�ximo, 30 por 100 mil nascidos vivos, ou seja, quase um quarto do n�mero registrado em 2021.
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Relat�rio do Minist�rio da Sa�de de 2019 obtido pela Folha de S.Paulo mostra que h� 95% de chance de o pa�s n�o atingir a meta. A RMM projetada por t�cnicos do minist�rio para 2030 � de 55,6 mortes por 100 mil nascidos vivos.
A reportagem percorreu cidades do Norte do pa�s, regi�o com taxa de mortalidade de 140,8 mortes por 100 mil, a maior do pa�s, ouviu profissionais de sa�de, gestores e, principalmente, fam�lias que perderam gestantes e constatou uma s�rie de problemas na rede de aten��o materno-infantil que ser�o retratados em reportagens ao longo deste m�s.
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Roraima liderou o ranking da mortalidade materna em 2021, com 281,7 �bitos por 100 mil nascidos vivos, patamar semelhante ao de pa�ses da �frica subsariana, como Mo�ambique. Em pa�ses desenvolvidos, a taxa fica em torno de 10 por 100 mil.
As mortes de Thais Kauana Rodrigues Diniz, 21, e do seu beb�, em Boa Vista (RR), exemplificam alguns dos gargalos. A jovem vivia numa regi�o de garimpo, estava na 19ª semana de gesta��o, mas n�o tinha feito nenhuma consulta de pr�-natal. Chegou � maternidade Nossa Senhora de Nazareth, no �ltimo dia 12 de janeiro, com dor abdominal e perda de l�quido amni�tico.
A maternidade funciona de forma improvisada em tendas de um hospital de campanha. O pr�dio original est� em reforma desde junho de 2021. Havia uma promessa do governador Antonio Denarium (PP) de entregar as obras em janeiro deste ano, o que n�o ocorreu.
No d�cimo dia de interna��o de Tha�s, foi constatado que o feto havia morrido no �tero, segundo a tia, Alessandra Ara�jo. A morte do beb� se soma a outras 27 registradas na maternidade do in�cio deste ano at� 7 de fevereiro. Em 2022, foram 20 �bitos.
"Ela passou dois dias sofrendo ap�s receber medicamento para induzir o parto. N�o quis mais comer, a barriga come�ou a inchar, ela s� gemia de dor. Eu pedia socorro, era n�tido que ela estava piorando, mas eles diziam que o incha�o era ac�mulo de gases. A situa��o ali dentro � ca�tica", afirma Alessandra.
J� em estado grave, Tha�s foi levada ao Hospital Geral de Roraima, o �nico do SUS com UTI na capital. Os exames revelaram ruptura uterina e infec��o generalizada (septicemia). Ela passou por cirurgia, foi intubada e morreu dois dias depois, em 27 de janeiro.
A maternidade nega que tenha havido neglig�ncia no atendimento. Sobre as mortes dos beb�s, o governo estadual diz que as causas s�o diversas, "com parte delas estando relacionadas � falta de pr�-natal adequado". Sobre a maternidade, diz que os servi�os de reforma do pr�dio est�o na fase final.
Ao mesmo tempo que as causas de morte materna cl�ssicas, como a infec��o puerperal que matou Tha�s, seguem sem tr�gua, o pa�s ainda investiga os �bitos por Covid de 2021, ano em que s� a doen�a foi respons�vel por 52% das mortes de gestantes e pu�rperas (1.524 de um total de 2.941).
Recente revis�o de estudos publicada na revista BMJ Global Health mostra que gr�vidas com Covid t�m oito vezes mais risco de morte em compara��o �s gestantes n�o infectadas. Rec�m-nascidos tamb�m apresentam maior chance de complica��es nos casos em que a m�e contraiu o Sars-CoV-2.
Uma an�lise publicada no The Lancet Regional Health Americas, em 2022, identificou ao menos tr�s barreiras que as gestantes e pu�rperas brasileiras enfrentaram durante pandemia.
A primeira foi a dificuldade de acesso aos testes diagn�sticos. A segunda foi encontrar vagas em hospitais. Houve demora m�dia de sete dias entre o in�cio dos sintomas e a interna��o. Familiares ouvidos na an�lise relatam que as gestantes foram v�rias vezes ao mesmo hospital ou em at� cinco diferentes institui��es antes de serem hospitalizadas.
O terceiro entrave foi o acesso a cuidados intensivos adequados ap�s a hospitaliza��o. Entre 2020 e 2021, 1 em cada 5 gr�vidas mortas n�o conseguiu acesso � UTI, e 1 em cada 3 que estava na UTI n�o chegou a ser intubada, segundo dados do OOBr.
Para a obstetra Rossana Pulcineli Francisco, professora da USP e coordenadora do Observat�rio Obst�trico Brasileiro, esse fator, associado � falta de profissionais capacitados para a assist�ncia, foi o que mais contribuiu para a alta taxa de mortalidade.
"Se um intensivista trata uma gestante da mesma forma que as outras pessoas, os resultados n�o ser�o bons. Para todos os par�metros [de oxigena��o, por exemplo], � preciso pensar na m�e e no beb�, intensivistas e obstetras precisam trabalhar juntos."
Do ponto de vista fisiol�gico, na gesta��o, a mulher passa por muitas mudan�as que podem causar maior rea��o inflamat�ria � Covid. Por isso, logo no in�cio da pandemia, o CDC americano alertou para o grave risco que a infec��o representava �s gestantes, com orienta��es sobre o cuidado adequado.
O Minist�rio da Sa�de brasileiro tamb�m publicou cartilha sobre o assunto, mas, sem uma rede que pudesse acompanhar de perto essas mulheres na aten��o prim�ria e encaminh�-las a hospitais com leitos de UTI e profissionais capacitados para atend�-la, o documento teve pouca serventia.
Regi�es historicamente vulner�veis sofreram mais. "A gente j� previa uma trag�dia porque n�o via uma rede materno-infantil, um sistema de sa�de adequado para atender essas mulheres no pr�-natal e no parto. Sem uma pol�tica que garantisse o acesso, elas ficaram peregrinando por maternidades, por hospitais", afirma a enfermeira Brena Gama, pesquisadora do Instituto Evandro Chagas, em Bel�m (PA).
Para a m�dica F�tima Marinho, pesquisadora s�nior da Vital Strategies, o alto n�mero de �bitos maternos � o reflexo da nega��o da pandemia e dos direitos sexuais e reprodutivos na gest�o de Jair Bolsonaro. "A falta de uma coordena��o nacional junto aos estados e munic�pios deixou cada um por si. N�o houve um trabalho conjunto para proteger as gestantes e pu�rperas, mesmo j� havendo um alerta de que elas representavam um grupo de maior risco."
A m�dica Rafaela Pacheco, diretora de comunica��o da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Fam�lia e Comunidade), tamb�m cita barreiras de acesso ao aborto legal e � vacina contra a Covid �s gestantes e pu�rperas. "Houve uma neglig�ncia criminosa contra essa popula��o. Sab�amos que, com essa desassist�ncia, a mortalidade iria pipocar."
Em 2020, s� 55% dos hospitais que faziam aborto legal seguiram atendendo as mulheres, segundo o Mapa do Aborto Legal. Aborto inseguro � a quarta causa de morte materna. Em rela��o � vacina��o contra a Covid-19 em gestantes e pu�rperas, o Minist�rio da Sa�de chegou a condicionar a imuniza��o � apresenta��o de prescri��o m�dica, gerando uma baixa ades�o nesse grupo.
Segundo an�lise do OOBr, gestantes e pu�rperas hospitalizadas com Covid-19 que j� previamente vacinadas tiveram menos risco de precisar de UTI (23,5% contra 37,4%), de intuba��o (4,8% contra 18,8%) e de morrer (3% contra 14,1%) quando comparadas �quelas n�o imunizadas.
N�sio Fernandes, atual secret�rio de Aten��o Prim�ria do Minist�rio da Sa�de, diz que a abordagem negacionista dada � pandemia pelo governo Bolsonaro fez com que a comunica��o de risco na gesta��o e no puerp�rio fosse subestimada.
Segundo ele, o minist�rio vai reativar os comit�s de mortalidade materno-infantil nos estados e criar uma rede de vigil�ncia e monitoramento dos cuidados a gestantes e pu�rperas, especialmente nas regi�es com vazios assistenciais � sa�de.
O primeiro passo retomar a Rede Cegonha, projeto criado em 2011 para apoiar e financiar a��es de atendimento �s gestantes e beb�s, que havia sido extinto pelo governo Bolsonaro em 2022 e substitu�do por outro muito criticado por ter deixado de lado toda uma rede multidisciplinar j� consolidada.
A gest�o anterior da Secretaria de Aten��o Prim�ria nega a falta de pol�ticas p�blicas para frear as mortes maternas. Diz que houve repasses de recursos para melhoria das estruturas das maternidades, elabora��o de material t�cnico sobre o impacto da Covid e apoio na capacita��o dos profissionais.