
Nas �ltimas d�cadas, a media��o de conflitos virou uma esp�cie de ci�ncia. Hoje h� v�rios cursos universit�rios e pesquisadores dedicados ao tema, e t�cnicas desenvolvidas por eles j� ajudaram a encerrar guerras em v�rios pa�ses.
Esses m�todos tamb�m v�m ganhando espa�o em sistemas judiciais, onde s�o empregados como alternativas ao encarceramento e em concilia��es entre v�timas e ofensores.
Ser� que essas pr�ticas poderiam ser �teis para uma sociedade brasileira t�o polarizada? Mediadores experientes teriam dicas a compartilhar com brasileiros que brigaram com parentes ou amigos por causa da pol�tica?
Esse � o tema do epis�dio do podcast Brasil Partido que vai ao ar nesta sexta-feira (19/05) no site da BBC, no YouTube e em plataformas de �udio como Spotify, Apple Podcasts e Deezer.
Apresentado pelo rep�rter Jo�o Fellet, o podcast trata de conflitos que dividem a sociedade brasileira. Os epis�dios v�o ao ar �s sexta-feiras. Ou�a um trecho:
Afonso Celso Prazeres de Oliveira, de 83 anos, � um expert em media��o de conflitos, ainda que nunca tenha estudado o tema.
Ele � s�ndico desde 1993 de um dos maiores edif�cios do Brasil, o Copan, no centro de S�o Paulo. O Copan tem 1.160 apartamentos e cerca de 5 mil moradores — ou seja, � mais populoso do que muitas cidades brasileiras.
Ele diz que o per�odo mais dif�cil que enfrentou como s�ndico foram os anos 1990. Na �poca, o Copan era um grande ponto de tr�fico de drogas e de prostitui��o.

Afonso diz que o combate �s atividades lhe rendeu amea�as, e ele teve at� que passar um tempo usando colete � prova de balas.
Hoje, os problemas parecem ter sido superados, e o Copan se tornou um dos edif�cios mais valorizados da regi�o.
Mas h� outra explica��o para o sucesso do s�ndico, segundo moradores ouvidos pelo podcast Brasil Partido: a forma como ele lida com brigas entre cond�minos.
“Aprendi ao longo do tempo a ouvir as pessoas. Quando � necess�rio o sil�ncio, ele permanece. Salvo o contr�rio, (fa�o) uma ou outra observa��o, nunca desfavor�vel”, afirma o s�ndico.
“Tento sempre conversar com os dois lados, porque s� ouvir uma parte voc� n�o vai fazer ju�zo do problema.”
Ele diz que j� viveu outros dois momentos de polariza��o intensa no Brasil: o segundo mandato de Get�lio Vargas (1951-1954) e a ditadura militar (1964–1985).
Para ele, o conflito pol�tico atual “� uma repeti��o da hist�ria com personagens novos”. Segundo Afonso, Lula e Bolsonaro s�o reflexos “de um passado recente que n�o mudou e talvez t�o cedo n�o vai mudar”.
Mesmo sem jamais ter estudado media��o de conflitos, Afonso segue alguns preceitos dos especialistas nesse campo, como o de buscar ouvir, n�o fazer julgamentos sobre os interlocutores e jamais tomar partido numa disputa.

O que � comunica��o n�o violenta
Esses preceitos s�o alguns dos pilares de uma filosofia hoje usada para mediar conflitos em diferentes ambientes: a comunica��o n�o violenta.
Juliana Calder�n � consultora em comunica��o n�o violenta do Instituto Ti�, que d� treinamentos sobre esse tema em empresas.
Ela diz que chegou a esse campo depois de ajudar a mediar a separa��o de seus pais.
“Ali eu percebi essa minha aptid�o para tentar conciliar”, conta.
Mas foi s� ap�s se formar na faculdade de Comunica��o que ela conheceu a obra do psic�logo americano Marshall Rosenberg, o principal te�rico da comunica��o n�o violenta.
Morto em 2015, Rosenberg dizia que por tr�s de todo comportamento humano existe alguma necessidade: ser ouvido, respeitado, se sentir seguro, reconhecido, amado etc.
Para ele, uma pessoa agride outra quando sente que alguma necessidade dela n�o foi atendida. Nesse caso, o que uma pessoa que usa a comunica��o n�o violenta faz � buscar as raz�es que levaram o outro a ser agressivo, em vez de retribuir a agress�o.
Juliana conta que o emprego da comunica��o n�o violenta numa discuss�o exige trocar julgamentos por fatos. Por exemplo: se uma pessoa est� chateada com um amigo que n�o atendeu seus telefonemas quando ela precisava de ajuda, a pessoa deve evitar falas como “voc� n�o se importa comigo”, ou “voc� n�o tem considera��o pelas pessoas”.
Em vez disso, diz Juliana, a pessoa deve citar fatos: “Tentei te ligar X vezes, precisava muito da sua ajuda, mas voc� levou tantas horas para me atender”.
Segundo Juliana, quando a conversa segue esses par�metros, � mais f�cil descobrir por que o amigo n�o atendeu os telefonemas e buscar uma concilia��o que considere as necessidades das duas partes.
Para ela, muitas brigas sobre pol�tica poderiam ser evitadas se as pessoas seguissem os princ�pios da comunica��o n�o violenta.
Juliana diz, inclusive, que a polariza��o pol�tica no Brasil � tamb�m um problema de comunica��o.
“A forma como a gente v� o mundo dessa maneira bin�ria, dualista, est� impregnada na nossa comunica��o. Tem um conflito de ideias entre duas pessoas e a gente j� est� assim: ‘Quem � o certo, quem � o errado?’”, afirma.
“Ent�o a gente fica cada um na sua bolha, xingando a outra bolha e vivendo em realidades paralelas que n�o se afetam mutuamente.”

A comunica��o n�o violenta tamb�m tem sido usada para lidar com conflitos graves que chegam � Justi�a.
Joana Blaney e a Mariana Pasqual Marques trabalham no Centro de Direitos Humanos e Educa��o Popular (CDHEP), uma ONG que funciona h� d�cadas num casar�o azul no Cap�o Redondo, na zona sul de S�o Paulo.
A organiza��o foi fundada em 1989 a partir de uma Comiss�o Pastoral da Arquidiocese de S�o Paulo.
Joana e Mariana n�o s�o apenas mediadoras de conflitos: os m�todos que elas empregam tamb�m buscam reparar os danos causados pela viol�ncia e reconciliar as pessoas envolvidas no caso.
Depois de fazer Mestrado em Educa��o e de trabalhar como professora e diretora de escolas em Washington e na Filad�lfia, Joana chegou ao Brasil no fim dos anos 90 como volunt�ria da Maryknoll, um dos principais �rg�os mission�rios da Igreja Cat�lica nos Estados Unidos.
No in�cio, ela trabalhou em favelas de S�o Paulo, ajudando comunidades a se organizarem.
Alguns anos depois, Joana conheceu um projeto criado pelo padre colombiano Leonel Narvaez, as Escolas de Perd�o e Reconcilia��o.
Nessas escolas, v�timas da guerra civil na Col�mbia — inclusive ex-combatentes — aprendiam a ler e escrever ao mesmo tempo em que eram estimuladas a falar sobre emo��es. Muitos deles j� eram adultos, mas nunca tinham se alfabetizado.
As pessoas traziam para os encontros palavras que eram significativas para elas, como raiva, luta, medo e �dio. Ent�o elas dialogavam sobre suas vidas e sobre os sentimentos que essas palavras despertavam.
Depois, conforme aprendiam a escrever, as palavras podiam ser desconstru�das: as letras eram reposicionadas para formar outras palavras que remetessem a sentimentos menos dolorosos e mais pac�ficos.
As Escolas de Perd�o e Reconcilia��o deram t�o certo na Col�mbia que se espalharam por v�rios outros pa�ses com altos �ndices de viol�ncia, incluindo o Brasil.
“Fomos treinados para ser facilitadores e vimos como este curso ajudou muito as pessoas a se recompor dentro e ir para frente com sua vida, depois lidando com as dores e os traumas de uma maneira bem saud�vel”, diz Joana.
A experi�ncia com as Escolas de Perd�o e Reconcilia��o aproximou a Joana de um campo em que ela se tornaria uma refer�ncia no Brasil: a Justi�a Restaurativa.
Trata-se de uma filosofia de resolu��o de conflitos n�o punitivista e em grande parte inspirada em pr�ticas de diferentes povos ind�genas e comunidades tradicionais.

� o caso, por exemplo, dos C�rculos de Constru��o de Paz, uma pr�tica inspirada em tradi��es de povos ind�genas canadenses. Nesses c�rculos, a pessoa que causou algum dano se re�ne com as pessoas prejudicadas e outros membros da comunidade para debater sua a��o e formas de remedi�-la.
Nesse modelo, o ofensor n�o � punido nem apartado da sociedade. O foco desse sistema � a repara��o do dano, e o ofensor inclusive participa da constru��o de um acordo com esse objetivo.
A repara��o pode incluir trabalhos comunit�rios e uma indeniza��o financeira �s v�timas, al�m de demonstra��es de remorso e arrependimento por parte do ofensor.
“Tem bem menos reincid�ncia, porque, comparado com mandar todo mundo para o pres�dio, a pessoa entende melhor o impacto (de seu ato) e j� vai reparar o dano fazendo esse acordo com a pr�pria v�tima ou a fam�lia da v�tima”, diz Joana.
Segundo ela, como o ofensor n�o � preso, “tem condi��es de alugar um lugar para morar, de ter um emprego. Ent�o, isso para mim � reabilita��o”, afirma.
V�rios pa�ses t�m incorporado pr�ticas desse tipo em seus sistemas de Justi�a, normalmente para lidar com crimes de menor gravidade — e desde que todas as partes do processo concordem.
No Brasil, hoje pelo menos dez Estados t�m tribunais com n�cleos de Justi�a Restaurativa onde atuam facilitadores formados pelo CDHEP.
“Nossa ideia realmente � parar o encarceramento em massa que estamos vendo aqui no Brasil”, diz Joana.
Para Mariana, no sistema de Justi�a atual, que enfoca a puni��o, muitos infratores jamais t�m de lidar com o impacto de suas a��es nas v�timas.
Ela conta que, ao trabalhar com Justi�a Restaurativa em pres�dios de S�o Paulo, conheceu muitos detentos que nunca tinham refletido sobre as consequ�ncias de seus atos.
“Claro, porque � um sistema de tanta reprodu��o da viol�ncia, que ele mesmo entra no lugar de v�tima. Primeiro ele precisa ser reconhecido como v�tima para depois ele entrar nesse processo de ‘olha, eu cometi um erro que n�o � aceit�vel e eu preciso reparar ele’. E a� alguns desses homens pediam para conversar com as suas v�timas”.

� poss�vel aplicar as t�cnicas que Joana e Mariana usam na Justi�a Restaurativa para falar sobre pol�tica e reconciliar parentes que brigaram por causa desse tema?
“� poss�vel”, diz Joana.
“O que me ajuda muito � lembrar que cada pessoa tem sua hist�ria, suas experi�ncias e o direito de pensar e acreditar o que ela acredita, desde que n�o fa�a mal para a outra pessoa”.
“Por que eu preciso convencer o outro que eu estou certa? Por que eu n�o posso tentar dialogar com o outro fazendo perguntas?”, questiona.
Para Mariana, para que as pessoas saibam travar conversas dif�ceis, elas precisam aprender a nomear sentimentos.
Segundo ela, por�m, nas escolas, “a gente n�o tem nenhum tipo de letramento mais sentimental, de lidar com as coisas, de identificar — muito pelo contr�rio”.
Mariana defende a constru��o de uma cultura de di�logo, o que envolve transformar institui��es p�blicas como hospitais e escolas em espa�os de di�logo.
“Vai na unidade b�sica de sa�de ser atendido para ver se � um espa�o democr�tico. Voc� n�o vai falar nada”, critica.
O que o Brasil tem a aprender com a Col�mbia
O Brasil n�o vive uma guerra civil, mas a hist�ria mostra que esse � um caminho poss�vel quando uma sociedade se fragmenta. Foi o que aconteceu na Col�mbia, onde d�cadas de conflitos entre guerrilhas e for�as do governo provocaram cerca de 800 mil mortes, segundo a Comiss�o da Verdade da Col�mbia.
O conflito ficou mais pr�ximo de um desfecho em 2016, quando a principal guerrilha colombiana, as Farc (For�as Armadas Revolucion�rias da Col�mbia), assinou um acordo de paz com o governo do pa�s.
Negociado ao longo de quatro anos, o pacto mostrou que inimigos eram capazes de se sentar � mesa e chegar a um entendimento, mesmo depois de tantas mortes e tanta dor.
O Brasil teria algo a aprender com esse processo?
Sergio Jaramillo foi o chefe da delega��o do governo colombiano que negociou o acordo de paz com as Farc. Ele cita ao podcast Brasil Partido tr�s elementos que foram essenciais para o sucesso das negocia��es.
O primeiro foi definir regras para as tratativas de paz que atendessem todos os lados, algo que ajudou a aproximar as partes.

O segundo ponto foi estimular as partes, incluindo os militares colombianos, a reconhecer os impactos de suas a��es e a lidar com as v�timas desses atos.
Jaramillo diz que essa diretriz n�o � v�lida s� para crimes de guerra: quando algu�m reconhece seus erros, quem foi prejudicado por esse erro tamb�m se sente reconhecido.
Por outro lado, quando uma parte se recusa a reconhecer as dores e necessidades da outra, o distanciamento entre elas tende a crescer at� ficar intranspon�vel.
O �ltimo ponto foi criar espa�os de encontro entre grupos que normalmente n�o conversam uns com os outros.
Nas �reas da Col�mbia mais afetadas pela guerra civil, sentavam-se � mesma mesa fazendeiros, sindicalistas e l�deres religiosos — grupos com posi��es pol�ticas diversas e muitas vezes antag�nicas —, para debater formas de lidar com o conflito.
Os encontros foram batizados de Di�logos Improv�veis.
A premissa era: n�o dava para encerrar o conflito por uma decis�o de governo. As autoridades podiam ser facilitadoras, mas os diferentes segmentos da sociedade colombiana � que tinham de se entender.
Apesar das dificuldades, Jaramillo diz que lentamente a paz vai criando ra�zes na Col�mbia.
N�o por m�rito das autoridades, mas porque “as pessoas nos territ�rios resolveram abrir espa�os de di�logo, n�o se render �s adversidades e tocar a paz adiante”.