Gabriel Schulman
Doutor em direito, especialista em direito da medicina, advogado e professor da Escola de Direito e Ci�ncias Sociais da Universidade Positivo
As respostas em bio�tica nunca s�o simples. Para ilustrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) examina a constitucionalidade da vacina��o compuls�ria, isto �, impor a todos a vacina. Este artigo, no entanto, n�o examina tal possibilidade. A reflex�o proposta parte de um cen�rio hipot�tico em que se admita a recusa. O questionamento central �: caso a imuniza��o n�o seja imperativa, podem ser estabelecidas restri��es a quem recus�-la?. O ponto de partida ent�o � a vacina��o obrigat�ria, em que a recusa � permitida, contudo, "penaliza-se" quem n�o se vacinar.
A tem�tica, como tantas outras que entrela�am sa�de e direito, desafia o sentido e o alcance desses termos. O significado de sa�de � complexo. Concebe-se como bem-estar f�sico, mental e social e, igualmente, associa-se, como ensina Canguilhem, � aus�ncia de doen�as, � normalidade, ou ao equil�brio (homeostase). Sob a �tica jur�dica, muitas vezes a sa�de � tomada como direito ao acesso (ou n�o), de modo mais ou menos amplo, a certos tratamentos.
Uma das perspectivas mais instigantes, por�m, versa sobre a sa�de como dever, que se desdobra em temas como as interna��es for�adas e a vacina��o compuls�ria. Entre tantas concep��es, considero particularmente bonita a defini��o de sa�de como sendo o que nos faz iguais. Afinal, embora o acesso, em nosso pa�s, seja diretamente influenciado pela renda, os v�rus n�o distinguem idade, posi��o pol�tica ou riqueza. Essa vis�o justifica mitigar liberdades individuais em aten��o � prote��o da coletividade.
Como diz o c�lebre ensinamento de Bernard Shaw, em Man and superman, "liberty means responsibility" (liberdade significa responsabilidade), sobretudo pelo cuidado com o outro. Ao mesmo tempo em que a maioria de n�s espera ansiosa pela vacina, alguns adiantam a oposi��o a us�-la. Se, � primeira vista, quem se vacinar est� protegido, e "azar de quem n�o quer", na sa�de nada � simples porque devem ser levadas em conta muta��es, custos de tratamento (suportados por todos), escassez de recursos da sa�de e o cabimento de um direito a correr certos riscos, cuja razoabilidade � enfrentada, por exemplo, quando se exige de todos cinto de seguran�a e capacete.
Quem n�o se vacina se beneficia do esfor�o alheio e dos riscos das rea��es adversas; al�m disso, a erradica��o depende da imunidade coletiva. Na It�lia, a Lei Lorenzin estabelece a vacina��o das crian�as como pressuposto de acesso ao ensino b�sico. No Brasil, o acesso ao Bolsa-Fam�lia exige vacina��o das crian�as e frequ�ncia escolar.
Recente projeto de lei, em tr�mite na C�mara dos Deputados, define que a recusa em se imunizar exigir� o custeio do tratamento segundo "tabela que ser� elaborada e publicada pelo Sistema �nico de Sa�de". A premissa do projeto de custear as despesas que se gera esbarra em duas grandes barreiras. Em primeiro, n�o "punimos" outros gastos gerados ao SUS por h�bitos como fumar, poluir, comer mal ou n�o fazer exerc�cios f�sicos regularmente. Em segundo, a repercuss�o de n�o se vacinar n�o se restringe ao custo do tratamento, eis que engloba estrutura dos hospitais, sobrecarga do sistema, despesas para controles sanit�rios, al�m da consequ�ncia mais �bvia, que consiste na difus�o do v�rus.
Independentemente do conceito de sa�de adotado, o momento delicado demanda uma postura de solidariedade e senso de coletividade. � preciso cuidar de n�s, mas tamb�m cuidar dos outros. A prote��o das liberdades individuais, em um ambiente democr�tico, pressup�e deveres e, como explica Stuart Mill em On liberty, deve levar-se em conta os efeitos na esfera alheia.
Portanto, a imposi��o de restri��es razo�veis a quem n�o se vacina � medida constitucional, tal como a restri��o a quem dirige sem cinto ou excede a velocidade, j� que exp�e a si e aos demais.