Ricardo dos Reis
Especialista em educa��o musical pela UFMG
Houve um tempo em que, de fato, comemorava-se o Natal. Vinham sentar-se � mesa posta os filhinhos, os quais, agora crescidos para a vida, tamb�m deram � luz outros filhinhos. Gorrinho na cabe�a e bal�ezinhos pelas m�os, a crian�ada encantava os av�s. Antes da primeira garfada, os mais velhos, como de costume, fechavam os olhos em ora��o ao Menino Jesus, pedindo-Lhe b�n��os para o mundo. Os netinhos, na plenitude bela da maldade inocente, de olhos entreabertos, com um olho nos av�s e o outro avidamente no peru, tamb�m pediam, mas pediam em sil�ncio que a ora��o, j� um tanto longa, n�o se fizesse ladainha. As coxas do peru, apontadas para o c�u, pareciam pressentir as primeiras dentadas.
O tempo l� fora revezava-se em estrelas, pingos de chuva e (por que n�o?) bolinhas de neve, tornando-se c�mplice do harmonioso e aconchegante clima no interior de cora��es e casas. O tilintar de ta�as, entre hurras, vivas e sorrisos, servia de inspira��o a lindas cantigas. Os sinos badalavam e os galos, terreiro afora, em cacarejos dissonantes, formavam uma orquestra em sintonia com o gorjear sinf�nico dos p�ssaros.
Os av�s, um ano mais felizes, traziam no terno olhar toda a sensa��o de estar sendo, uma vez mais, cumprida a miss�o. Era o cora��o, ali, ch�o f�rtil, de onde brotava a felicidade. Tudo eram flores: o olhar dos av�s, dos netos o sorriso, o gesto complacente dos tios, as ta�as de champanhe, a mesa ainda farta, gorros e bal�es espalhados pela casa, tudo isso, enfim, vivido de forma serena, com respeito m�tuo e sensibilidade plena. Era como se, nesses remotos tempos, o Menino Jesus deixasse a manjedoura e se fizesse corpo pelos lares, aben�oando todos.
S�o novos tempos hoje. N�o se veem mais os papais-no�is de outrora. Crian�as felizes, que at� ent�o buscavam presentes em sapatos postos atr�s da porta, ansiosas, aos trope�os, procuram-nos hoje pelos shoppings. Perus e frangos, temperados e assados, hoje mais escassos, refletem o sil�ncio triste dos av�s, cuja sabedoria parece esvair-se a cada ano.
Tempos caros, meu caro. Pres�pios e presentes artesanais cada vez mais raros. Carret�is de cera, argila, barro. A� est�, viva, a tecnologia. Dif�ceis tempos: d�cimo terceiro atrasado, pais e filhos sem emprego, talvez, at� embriagados. Menos ruas, casas e pra�as iluminadas. Novos tempos. Tempos de reflex�o profunda. Por que ainda um mundo de desigualdades tantas? Ainda assim, com o que nos resta, haveremos de nos sentar � mesa. Vamos, sim, refletir e nos reeducar. Vamos, sim, renascer e reinventar no�is. De novo, ent�o, ser� Natal.