Paulo Haddad
Membro do conselho consultivo no Instituto F�rum do Futuro. Economista, com especializa��o em Planejamento Econ�mico no Instituto de Estudos Sociais de Haia (Holanda), professor em�rito da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento. Presidente da Phorum Consultoria e Pesquisas em Economia e diretor da AERI – An�lise Econ�mica Regional e Internacional
A sociedade brasileira vem sofrendo, nas duas �ltimas d�cadas, sobrecargas de estresses emocionais que se agravam ano a ano. Podemos destacar tr�s dessas sobrecargas que s�o mais resilientes e que se espraiam entre as fam�lias brasileiras. Uma sobrecarga de natureza distributiva: as pol�ticas econ�micas, ao enfatizar as quest�es do equil�brio macroecon�mico como objetivo dominante, n�o est�o apresentando um equacionamento efetivo para as desigualdades sociais e regionais do desenvolvimento, para a escalada dos patamares da pobreza extrema e da mis�ria social, para a degrada��o do patrim�nio natural pelo uso predat�rio dos nossos ecossistemas.
Da� o estresse de milh�es de fam�lias brasileiras com a perda da qualidade de vida, do retorno � fome e das incertezas sobre o futuro de sua mobilidade social. Uma sobrecarga de natureza recessiva: de 1980 aos dias atuais, o Brasil vem se tornando um pa�s de baixo crescimento econ�mico, apesar dos eventuais espasmos de crescimento com o fim do imposto inflacion�rio, com o Plano Real ou com o ciclo dos pre�os das commodities na pr�-crise de 2008 na economia mundial.
Embora o processo de ajuste do desequil�brio das contas do setor p�blico consolidado seja uma condi��o necess�ria e indispens�vel para o pa�s voltar a crescer, ele n�o �, contudo, suficiente. O crescimento econ�mico n�o � um subproduto cronol�gico de um ajuste macroecon�mico qualquer. Um pa�s somente cresce de forma sustentada quando consegue, no bojo de um ciclo de expans�o econ�mica, criar um campo amplo e diversificado de oportunidades para os cidad�os realizarem os seus projetos de vida.
O Brasil � hoje um pa�s de economia com baixo crescimento e com uma sociedade dividida pelas desigualdades e assimetrias nas condi��es de vida de sua popula��o. (...) Poder�amos esperar que venha a ocorrer algum tipping point em busca de um projeto nacional de grande transforma��o da sociedade e da economia do Brasil? H� algumas express�es em outros idiomas que, quando traduzidas para a l�ngua portuguesa, perdem for�a. Por isso, � prefer�vel mant�-las no original. Um exemplo � tipping point, express�o que significa um ponto cr�tico no processo de evolu��o de um fen�meno, um ponto de ruptura ou um evento que conduz a um desenvolvimento irrevers�vel ou at� mesmo a um retrocesso inevit�vel.
O termo tem sua origem nos estudos da epidemiologia e � utilizado quando uma doen�a infecciosa atinge um ponto para al�m de qualquer habilidade local no sentido de controlar seu espraiamento mais amplo. �, muitas vezes, considerado como um ponto de inflex�o, em geral provocado por algum evento menos significativo e aparentemente inesperado. Nesse sentido, h� desastres ambientais que ocorrem como tipping points (rompimento de barragens) e outros que ocorrem de forma lenta e silenciosa, mas irrevers�vel (a savaniza��o da Amaz�nia). (...)
A economia brasileira j� est� acumulando um longo per�odo de quase estagna��o ou de recess�o econ�mica, com concentra��o da renda e da riqueza nacional e desastres ambientais. Nesse contexto, j� se somam mais de 20 milh�es de brasileiros desempregados, subempregados e desalentados, acumulando uma avalanche de insatisfa��es, de frustra��es e de infelicidade. Nessa avalanche, agregam-se os que est�o perdendo o valor de sua renda real, os que est�o inconformados com a crescente perda de qualidade dos servi�os p�blicos essenciais e os que contestam os impactos concentradores de renda e de riqueza da atual pol�tica de austeridade fiscal e que padecem, portanto, do sequenciamento, da intensidade e da imprevisibilidade das sobrecargas emocionais estressantes. Podemos esperar que, nesse contexto de nossa hist�ria, algum tipping point de rupturas e de dissensos cr�ticos venha a acontecer? Creio que ainda n�o.
Desde a elabora��o da Constitui��o de 1988, as lideran�as pol�ticas, empresariais e comunit�rias t�m procurado construir uma ordem econ�mica e social, politicamente negociada, que acomode os conflitos de interesse entre segmentos produtivos, grupos sociais, regi�es, estados e munic�pios. Esse esfor�o pol�tico-institucional tem levado o pa�s a “um status de homeostase econ�mica”.
A homeostase pode ser definida como a habilidade de manter o meio interno em um equil�brio quase constante, independentemente das altera��es que ocorram no ambiente externo. Para preservar a homeostase, o meio interno deve manter certos valores sem altera��es. (...) Com as pol�ticas sociais compensat�rias (Bolsa-Fam�lia, Lei Org�nica de Assist�ncia Social, Previd�ncia Social, Aux�lios Emergenciais), o governo federal consegue mitigar a profunda crise social que assola o pa�s e beneficiar milh�es de brasileiros mais pobres. Com a reprograma��o or�ament�ria realizada de forma ad hoc, o governo consegue mitigar crises setoriais e regionais localizadas atrav�s de cortes de contingenciamentos e de realoca��es das despesas p�blicas. (...) E la nave va!
O atual status de homeostase, que pode se prolongar por muito do tempo, nos d� uma certa ilus�o de que n�o vivemos uma crise social nem uma crise ambiental. Na verdade, leva a maioria dos brasileiros a uma postura de conformismo latente, a uma ilus�o de que basta atingir o equil�brio fiscal que o crescimento vir� por acr�scimo, a imaginar que a estabilidade monet�ria poder� reconfigurar o estado de �nimo da sociedade brasileira (...)
Resumindo: o Brasil vive, atualmente, uma fase de homeostase econ�mica, ou seja, h� uma tend�ncia autorreguladora do organismo econ�mico que permite manter pelo menos o estado de equil�brio interno de seus grupos de interesse de maior vocalidade pol�tica (os rentistas, os movimentos sociais, etc.), ou porque est�o usufruindo das supertaxas de juros reais ou porque est�o conformados com as benesses distributivas. O que nos leva a perguntar: quem de fato quer mudar o Brasil?
No seu �ltimo livro, Mariana Mazzucato, experiente consultora internacional de gest�o p�blica e consultora econ�mica do Papa Francisco, mostra os problemas enfrentados por um pa�s como o Brasil, os quais exigem que os governantes saiam de sua �rea de conforto de homeostase; que renovem suas ideias e confrontem os problemas estruturais, complexos e resistentes a solu��es simples, com inova��es sociais, organizacionais e pol�ticas; que assumam os riscos presentes em todas as inova��es; que tenham uma vis�o de longo prazo e a certeza do que � preciso fazer e ser� feito pelo interesse p�blico, a n�o ser que venham a fazer mais do mesmo e pior. n