
O depoimento pessoal de Dilma Rousseff, que 30 anos depois de sofrer tortura em Juiz de Fora seria eleita presidente do Brasil, � apenas uma parte num conjunto de 916 pe�as de horror que estavam at� agora esquecidas na �ltima sala do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), no Edif�cio Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Nesse teatro de barb�rie e agonias, n�o h� protagonistas. S�o hist�rias de centenas de militantes pol�ticos de Minas torturados na frente de seus beb�s, homens casados que se tornaram est�reis por levar choque nos �rg�os genitais e mulheres que seriam violadas no anonimato das celas pelos seus algozes.
Uma das t�cnicas mais s�dicas de tortura era a da “latinha”. “A primeira coisa que eles faziam era arrancar a roupa da gente e deixar completamente nua. Depois, colocavam descal�a em cima de duas latinhas abertas, como a de salsicha, com as bordas afundando no p�. A gente tinha de aguentar at� n�o poder mais. Se ca�sse ou descesse, era espancada por eles. Era um tipo de crueldade abaixo do n�vel humano. Era bestial”, revela o trecho de uma das v�timas, que permanece aqui no anonimato.
Outro “m�todo” relatado nas pris�es mineiras n�o envolvia o emprego da viol�ncia f�sica. Na verdade, nem precisava. Seu teor era psicol�gico. Era usada principalmente com m�es ou gr�vidas. Tratava-se de colocar uma crian�a engatinhando em cima de uma mesa para for�ar a “confiss�o” da torturada. Caso ela n�o falasse, o torturador avisava que a crian�a poderia cair. “Manusearam meu corpo, torceram o bico dos meus seios e enfiaram a m�o em mim. Um dia, eu estava arrebentada depois de ter sido torturada das 19h at� as 5h da manh� quando fui estuprada pelo sargento Leo, da PM”, conta Gilse Westin Cosenza, hoje aos 68 anos, a primeira da lista de 53 pessoas indenizadas pela comiss�o mineira, em 2002.
Quando foi presa, aos 25 anos, Gilse era vice-presidente do Diret�rio Central dos Estudantes (DCE) da PUC Minas. Ela foi levada para a cadeia com o marido, o vice-presidente do DCE da UFMG, o estudante de economia Abel Rodrigues Avelar. Os dois pertenciam � organiza��o A��o Popular (AP). De todas as sess�es de humilha��o sofridas pela ent�o estudante do curso de servi�o social, para Gilse a pior envolveu a filha Juliana, aos 4 meses. “A passagem mais barra pesada, de tudo o que relatei � comiss�o de Minas, envolveu minha filha, que hoje est� bem, tem 43 anos, � analista de sistemas e trabalha no TRE, no Rio de Janeiro. Na �poca, eles quase me enlouqueceram dizendo que iriam peg�-la, que eles iriam encontr�-la onde ela estivesse e que eu deveria falar o que eles queriam ouvir. Com todas as minhas for�as, eu desejei ficar louca antes”, desabafa a militante, que 15 dias antes de ser presa havia entregado o beb� � irm� Gilda, casada com Henrique Sousa Filho, o cartunista Henfil, que ela chama de Henriquinho.
Ao reencontrar a filha, Juliana estava perto de completar 2 anos. S� ent�o aprendeu a falar mam�e e papai, conhecendo os pr�prios pais. No longo per�odo em que permaneceu presa, Gilse n�o apenas n�o enlouqueceu, como tamb�m nunca desistiu de lutar pela volta da democracia no Brasil. “Sou privilegiada. Muitos ficaram afetados psicologicamente pela tortura e nunca conseguiram se reerguer. Em cada uma das fam�lias brasileiras que viveram na nossa �poca, � rara aquela que n�o tem uma pessoa morta, torturada, banida do pa�s ou que tenha perdido o emprego durante o regime militar”, compara. Ela promete: “Os torturadores ainda est�o impunes. Jurei que enquanto estiver viva n�o vou parar de lutar por um pa�s justo para nossos filhos”.
Exemplo de vida
Quando flagra uma manifesta��o na pra�a principal de Te�filo Otoni, o ex-militante da causa oper�ria Tim Garrocho, com a autoridade que lhe concedem seus 82 anos, n�o consegue se segurar. Aproxima-se dos manifestantes, puxa um deles no canto, pelo bra�o, e diz ao p� do ouvido: “Voc� pode at� n�o saber disso, mas ajudei voc�s a estarem hoje reunidos aqui na pra�a”. Celebridade no Vale do Mucuri, Tim � exemplo de vida para os tr�s filhos leg�timos (ganhados antes de ficar preso em 12 locais diferentes), tr�s filhos adotivos, cerca de 20 netos e cinco bisnetos. Segundo Tim, o oper�rio que mais apanhou em Minas foi o Porf�rio Francisco de Souza. “Eu o vi entrando na pris�o, ainda forte, e no final, irreconhec�vel”, afirma.
Porf�rio, militante do extinto Partido Comunista Brasileiro (PCB), morreu em 2004 em Montes Claros, aos 84 anos. “Al�m de choques el�tricos e ter levado no pau de arara, ele sofreu com agulhadas nos dedos, entre as unhas. Chegaram at� a arrancar as unhas dele na sede do antigo Dops, em BH, em 1969, logo depois do AI-5”, conta o aposentado e ex-soldado da Pol�cia Militar Aran Francisco de Matos, de 65, sobrinho do ex-militante.
“Aquela cambada n�o respeitava ningu�m. Em Governador Valadares, quebraram meu bra�o esquerdo e me chutaram at� eu vomitar sangue”, revela, sem esconder a raiva, Tim Garrocho, ex-l�der sindical, que antes de ser preso chegou a ter tr�s mandatos de vereador. “Depois do golpe, n�o pude crescer politicamente. Eles me liquidaram, minha esposa ficou adoentada e eu tive de vender muita coisa para me sustentar. Hoje n�o tenho nem aposentadoria, pois n�o consegui comprovar meus direitos pol�ticos”, afirma. Com a terceira mat�ria sobre a tortura de Dilma nas m�os, Tim Garrocho, que acompanha desde a primeira, d� sua opini�o. “Se a presidente tem mem�ria de elefante, a minha � de 100 elefantes. Meu torturador era Klinger Sobreira de Almeida, que na �poca era tenente em Valadares. Antes de bater, ele tirava o rel�gio, para n�o se machucar. N�o me esque�o disso.” (Colaborou Luiz Ribeiro)