Entrar com um processo de repara��o econ�mica pelos danos sofridos durante a ditadura ou depor na Comiss�o da Verdade, que investiga viola��es aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, � uma dolorida volta ao passado. Reunir documentos, puxar pela mem�ria, relatar fatos, datas e nomes s�o provid�ncias necess�rias, mas penosas. Pensando nas pessoas que tomaram essas iniciativas e em outras v�timas da viol�ncia do Estado, a Comiss�o de Anistia do Minist�rio da Justi�a lan�ou o projeto Cl�nicas do Testemunho, que prestar� durante dois anos atendimento psicol�gico a ex-presos e perseguidos pol�ticos e suas fam�lias.
Quatro projetos-piloto come�ar�o os atendimentos - dois em S�o Paulo, um no Rio de Janeiro e um em Porto Alegre, com investimentos federais de R$ 2,4 milh�es. Um quinto projeto, em Recife, � patrocinado pelo governo de Pernambuco, ao custo de R$ 600 mil. O primeiro passo � a chamada p�blica de ades�o volunt�ria ao projeto, que come�ou esta semana e vai at� 6 de abril. Em outra frente, o projeto capacitar� profissionais de sa�de mental para o atendimento a v�timas do abuso estatal.
"A ideia surgiu a partir dos dez anos de atua��o da Comiss�o de Anistia e dos milhares de testemunhos colhidos voluntariamente. Esse processo hist�rico e pol�tico de dar voz aos que foram calados arbitrariamente, por si s�, � terap�utico. Para muitos, significa a liberta��o do peso da imposi��o do sil�ncio e do esquecimento. Sentimos que era preciso um passo adiante. O dever de repara��o, como se sabe, � imprescrit�vel. E cabe ao Estado, outrora criminoso, manter um servi�o de apoio psicol�gico aos que ele mesmo prejudicou", diz o presidente da Comiss�o de Anistia, Paulo Abr�o.
Entre 1991 e 2010, o Grupo Tortura Nunca Mais ofereceu atendimento psicol�gico a v�timas de torturas durante a ditadura, em um projeto financiado por organismos internacionais. A psic�loga Vera Vital Brasil fez parte da primeira equipe de terapeutas do Tortura Nunca Mais e agora coordena o projeto-piloto no Rio de Janeiro, que atendimentos em grupo e individuais. "A Comiss�o de Anistia percebeu o quanto as pessoas precisam de atendimento psicoter�pico. As marcas da tortura n�o se extinguem quando cessa a tortura. A viol�ncia da tortura � irrepar�vel. O que se pode conseguir � ter al�vio ps�quico, entender o processo de outra maneira", diz Vera, ela mesma ex-presa pol�tica. No projeto do Rio tamb�m est� previsto o acompanhamento de pessoas que decidem depor na Comiss�o da Verdade.
Presa entre 1970 e 1974 e torturada nas depend�ncias da repress�o em S�o Paulo e no Rio, Ana Miranda procurou o atendimento do Tortura Nunca Mais em 2001, quando, depois de muita insist�ncia de amigos e parentes, decidiu entrar com o processo de repara��o econ�mica. Ana teve que se submeter at� mesmo a um exame para provar a inexist�ncia de um rim, perdido em consequ�ncia das torturas.
"Nessa �poca fiquei deprimida, tive crises de alergia. A viol�ncia foi deles e eu tinha que correr atr�s de provar o que tinha sofrido. Fui me tratar na cl�nica do Tortura Nunca Mais. Os terapeutas t�m um olhar diferenciado que ajuda muito. O sofrimento n�o passa, mas voc� consegue dar outro significado. As Cl�nicas do Testemunho t�m esse sentido", diz Ana que, depois da pris�o, concluiu o curso de Farm�cia na UFRJ.
Repara��o
Um dos projetos de S�o Paulo ser� coordenado pelo psicanalista Mois�s Rodrigues da Silva J�nior, diretor do grupo Projetos Terap�uticos. Mois�s optou por atendimentos apenas em grupo. "A gente acredita na pot�ncia que um grupo comporta, o suporte de um coletivo � fundamental. Atendemos pessoas que t�m hist�rias de viol�ncia, mas quem sofreu a viol�ncia foi a sociedade, os grupos s�o articuladores potentes entre o indiv�duo e o social", diz Mois�s.
Em Porto Alegre, a psicanalista B�rbara Conte, respons�vel pelo projeto-piloto da Cl�nica do Testemunho, tem planos de atender at� 70 pessoas nos pr�ximos dois anos no que ela chama de "escutas psicanal�ticas". "� a possibilidade de falar de algo que ficou engasgado. Quanto maior a viol�ncia, mais a pessoa se fecha. Quando se fala em repara��o, n�o � esquecer, mas abrir a possibilidade de dar um novo destino a uma experi�ncia traum�tica", diz B�rbara, que atender� pessoas que sofreram diretamente viola��es por parte do Estado e parentes de at� segundo grau, al�m de capacitar profissionais para tratar dessas v�timas.