
Passados 50 anos de uma batalha sangrenta entre fazendeiros locais e �ndios cadiu�us do Sul do Mato Grosso, uma pergunta inquietante ressuscita com o rec�m-redescoberto Relat�rio Figueiredo, que apurou em 1968 chacinas de tribos e torturas em �ndios de todo o pa�s: o que aconteceu naquele conflito? Documento produzido pela Associa��o de Criadores do Sul do Mato Grosso, em 5 de janeiro de 1963, e anexado � extensa investiga��o feita pelo procurador Jader de Figueiredo para o Minist�rio do Interior relata pedido do mais famoso l�der da repress�o da ditadura de Get�lio Vargas, o ent�o senador Filinto M�ller, que rogava para que o general comandante da 9ª Regi�o Militar fosse informado do conflito armado. M�ller afirmou que trataria pessoalmente da situa��o com a dire��o do Servi�o de Prote��o ao �ndio (SPI), reportadamente suspeito, segundo Figueiredo em seu relat�rio, revelado pelo Estado de Minas.
Mat�rias publicadas sexta-feira e ontem no Estado de Minas revelaram a surpreendente hist�ria do documento que estava em caixas do Museu do �ndio, no Rio de Janeiro, desde 2008, e passou mais de 40 anos com o paradeiro desconhecido. Somente no fim do ano passado um pesquisador paulista se deu conta de que as mais de 7 mil p�ginas guardadas entre um grande volume de papelada eram, na verdade, o inqu�rito e o relat�rio de 62 p�ginas produzidos a pedido do ministro do Interior, Albuquerque Lima. O �nico registro que se tinha desse material, que denuncia ca�adas humanas de ind�genas feitas com metralhadoras e dinamites atiradas de avi�es, trabalho escravo de �ndios, torturas, prostitui��o e incont�veis crueldades contra tribos brasileiras, eram mat�rias publicadas em mar�o de 1968, quando o ministro concedeu entrevista que teve repercuss�o internacional.
Nas p�ginas amareladas pelo tempo, al�m das barbaridades recorrentes que indicam que o �ndio n�o era tratado como ser humano, uma preocupa��o constante do advogado que liderou as investiga��es � a usurpa��o indiscriminada de terras e riquezas ind�genas, feita, inclusive, pelo pr�prio SPI. “Abatem-se florestas, vendem-se gados, arrendam-se terras, exploram-se min�rios. Tudo � feito em verdadeira orgia predat�ria porfiando cada um em estabelecer novos recordes de rendas hauridas � custa da destrui��o das reservas do �ndio”, escreveu Figueiredo perplexo. “Basta citar a atitude do diretor major-aviador Luis Vinhas Neves”, ele prossegue, se referindo ao coordenador do SPI, que teria autorizado todas as inspetorias a vender madeira e gado, e a arrendar terras. “Ali�s, esse militar pode ser apontado como padr�o de p�ssimo administrador, dif�cil de ser imitado, mesmo pelos seus piores auxiliares e protegidos”, acrescenta o procurador.
Nova pe�a do quebra-cabe�a
Telegrama anexado ao inqu�rito e assinado pelo ent�o secret�rio do Conselho Nacional de Prote��o aos �ndios, Jos� Maria da Gama Malcher, endere�ado ao deputado Val�rio Caldas Magalh�es, que presidia uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito sobre abusos contra ind�genas, datado de 14 de maio de 1963, pode ser mais uma pe�a-chave no quebra-cabe�a que busca desvendar as crueldades cometidas na hist�ria recente do pa�s contra tribos brasileiras. Jos� Maria pede ao deputado que solicite � Presid�ncia da Rep�blica o Processo 22.755/61, que estava arquivado desde outubro de 1961 e que seria de interesse dos �ndios. “� curioso que o segundo volume do relat�rio, onde essa documenta��o poderia estar anexada, sumiu”, afirma o vice-presidente do Tortura Nunca Mais de S�o Paulo, Marcelo Zelic, que foi quem descobriu o paradeiro do Relat�rio Figueiredo. Dos 30 tomos originais que compunham o documento, 29 foram encontrados quase intactos.
A coordenadora do n�cleo da Comiss�o Nacional da Verdade respons�vel pela investiga��o de viola��es de direitos relacionados � luta pela terra, Maria Rita Kehl, sustenta que h� tempo h�bil para examinar todas as den�ncias contidas no inqu�rito e que o papel da comiss�o � procurar casos exemplares. Ela comemorou a recupera��o do relat�rio e o considerou um divisor de �guas nas pol�ticas indigenistas do pa�s, pois pouco depois o antigo SPI foi extinto e foi criada a Funda��o Nacional do �ndio (Funai).
Maria Rita informou que a comiss�o ainda aguarda a conclus�o do trabalho de digitaliza��o da papelada para ent�o come�ar a estud�-la. “N�o posso falar sobre o relat�rio porque ainda n�o o conhe�o, mas � um documento oficial importante. Posso adiantar que � imposs�vel pesquisar todas as acusa��es contidas nele.” J� Marcelo Zelic, que colabora com os trabalhos da comiss�o, defende que todas as den�ncias devem ser investigadas. “Se n�o temos tempo, vamos pedir a prorroga��o do prazo. Vamos pedir mais estrutura para a apura��o de todos esses casos, e n�o s� os exemplares. Investigar casos exemplares n�o vai resolver. Imagine dizer isso para a fam�lia de um desaparecido pol�tico”, provoca.