"A nossa democracia s� vai se completar o dia que o poder militar obedecer o poder civil", afirma a professora Helo�sa Starling, uma das assessoras da Comiss�o Nacional da Verdade (CNV), quando perguntada sobre a import�ncia das For�as Armadas abrirem para consulta externa os documentos considerados secretos durante a ditadura militar (1964-1985).
Mesmo sem os documentos secretos, a CNV, criada em maio de 2012 e que funcionar� at� dezembro deste ano, j� conseguiu um fato in�dito. Com base no relat�rio coordenado por Helo�sa, com a participa��o de 18 pesquisadores do Projeto Rep�blica, da UFMG, as For�as Armadas consentiram em apurar as den�ncias de torturas cometidas em sete unidades militares, entre elas o 12° Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte.
Al�m dessa pesquisa, o grupo comandado por Helo�sa � respons�vel por outros estudos que subsidiam a CNV. Na �ltima segunda-feira, o resultado parcial da pesquisa sobre os centros clandestinos de tortura foi apresentado e, segundo a professora, mais detalhes sobre eles ser�o revelados. "Aquilo que parecia existir s� na Casa da Morte, em Petr�polis, fazia parte de uma pol�tica", afirma, em refer�ncia ao centro de tortura e morte instalado em Petr�polis, que funcionou de 1971 a 1974 e onde pelo menos 13 pessoas foram mortas.
Helo�sa � doutora em ci�ncia pol�tica e autora do livro Senhores das Gerais - os novos inconfidentes e o golpe militar de 1964 (Vozes, 1986), que foi a tese de mestrado dela, quando orientada por Ren� Armand Dreifuss. Em entrevista ao Estado de Minas ela conta como � realizado o trabalho para a CNV.

O que significa as For�as Armadas aceitarem apurar as den�ncias de tortura em suas unidades?
Significa que a CNV apresentou uma pesquisa t�o bem fundamentada, que os militares tiveram que reconhecer e investigar. Isso n�o � pouca coisa. Como diria o presidente Lula: "Nunca antes na hist�ria desse pa�s".
� a maior realiza��o da CNV?
� uma das grandes realiza��es da CNV. Mas a comiss�o fez outras coisas que s�o muito importantes. A quantidade de documentos que a comiss�o est� colocando no arquivo nacional vai fazer a festa das pr�ximas gera��es de historiadores e de jornalistas. Ningu�m vai conseguir trabalhar essa grande quantidade de documentos em um per�odo curto. Outra coisa importante � a natureza dos documentos. Foi por causa da CNV que o Estado de Minas fez uma reportagem maravilhosa sobre o Relat�rio Figueiredo (publicada em 19 de abril do ano passado).
Militares e representantes da direita dizem que a comiss�o � da "meia verdade", pois n�o investiga mortes atribu�das aos movimentos de esquerda e nem os justi�amentos. � papel da CNV analisar isso?
Essa � uma conversa que voc� tem que ter com a CNV, com os sete membros da CNV. Eu, como assessora, dar uma opini�o nisso fica ruim. Mas � uma pergunta que voc� pode me fazer depois que acabar a CNV.
As pesquisas v�o ser aprofundadas a ponto de dar nome aos "cachorros", como eram chamados os que mudavam de lado e colaboravam com as for�as armadas?
Quem vai dar os nomes � a CNV. Se ela quiser. Mas n�s vamos aprofundar e, provavelmente, vamos ter resultados que, ap�s terminar a CNV, ser�o divulgados, sim. A pesquisa da UFMG contempla essa quest�o, est� investigando e, depois da comiss�o, vai divulgar o resultado.
A Comiss�o da Verdade da C�mara Municipal de S�o Paulo concluiu que o ex-presidente JK foi assassinado. Uma conclus�o como essa, que foi criticada e acusada de n�o ser bem fundamentada, n�o � perigosa?
� sim. Eu entendo que seria muito importante, talvez, que as informa��es que podem produzir m�dia e serem bomb�sticas, passem pelo crivo dos jornalistas da comiss�o e dos historiadores, que podem dizer que falta cruzar informa��es com alguns documentos. Dizer que determinada afirma��o n�o se sustenta. Ter auxiliares t�cnicos - historiadores, peritos e investigadores - � fundamental ou ent�o corre-se o risco de soltar uma informa��o que vai causar conseq��ncias para a pr�pria comiss�o. Na CNV, o Pedro Dallari (presidente da CNV) foi muito cuidadoso e muito exigente conosco e com todas as equipes no sentido da comprova��o e de cruzar os depoimentos com documentos. Na pesquisa que fiz devem haver mais centros, devem haver mais v�timas, pode ser que uma v�tima n�o tenha morrido l�. S�o erros que voc� corrige, mas a pesquisa n�o pode ser posta em risco.
A maior dificuldade � o acesso aos documentos do Ex�rcito?
Enquanto as For�as Armadas n�o abrirem seus arquivos - e os arquivos existem -, o trabalho do pesquisador � enorme, pois tem que trabalhar no vazio da pesquisa. Contar uma hist�ria sobre as quais as fontes oficiais est�o ocultas � dif�cil, pois tem que buscar fontes que n�o s�o convencionais, tem que avaliar se s�o veross�meis ou n�o, como cruzar as fontes para n�o ficar com uma vers�o s�. � muito dif�cil, pois se os arquivos militares forem abertos n�s vamos poder comprovar se o que estamos fazendo � correto ou n�o.
A senhora pode dar alguns exemplos do que est�o nesses arquivos?
Os prontu�rios das pessoas mortas. Quantas p�ginas a Marinha do Brasil, por exemplo, reuniu de documentos do Carlos Marighella. Isso � important�ssimo, pois nos permite entender quais foram os procedimentos de monitoramento dos opositores do governo e como as For�as Armadas pensavam. Quais s�o os c�digos que foram utilizados para mensagens que tratam dos opositores do governo? Quais s�o os relat�rios que foram feitos sobre os opositores do governo por elementos infiltrados? Quais os tipos de infiltrados que existiam? Existiam infiltrados que eram militares, mas tiveram outros que eram de esquerda e outros que entregaram por dinheiro. Nesses arquivos est�o os contratos, relat�rios e, al�m do que, nesses arquivos informam onde est�o os corpos. Quem morreu, em qual circunst�ncia e onde foi enterrado. E se n�o foi enterrado o que aconteceu. Esses arquivos s�o da maior import�ncia.
O golpe completou 50 anos e o assunto est� sendo discutido em todo o pa�s. N�o seria o momento ideal para que os arquivos sejam abertos?
Tem de ser. Como se diz aqui em Minas: tem de ser. A nossa democracia s� vai se completar o dia que o poder militar obedecer o poder civil. Aqui � a historiadora falando. Tem que abrir os arquivos e parar com essa conversa de que os arquivos n�o existem. Eles existem sim! E se foi destru�do eles t�m que mostrar o termo de destrui��o. E se n�o mostrarem um termo eles cometeram um crime.
Os documentos podem reabrir de vez o debate sobre a revis�o da lei da anistia?
Os documentos n�o. A medida que o pa�s saiba as atrocidades que foram cometidas o pa�s est� discutindo. Esse assunto entra na pauta. A presen�a desses documentos n�o altera, na minha opini�o, a correla��o de for�as. A import�ncia desses documentos para mim, como historiadora, n�o � se vai punir ou n�o. A import�ncia � que conta a hist�ria do pa�s e eu acho que pa�s tem o direito de conhecer a hist�ria. O pa�s precisa desses documentos para conhecer a hist�ria. Se vai punir ou n�o essa n�o � a discuss�o do historiador, mas da sociedade brasileira.
Quando ser� entregue o relat�rio final com a descri��o mais detalhada dos centros clandestinos de tortura e morte?
Come�amos a fazer pesquisa em que trabalhamos primeiro a quest�o da tortura. A primeira conclus�o foi de que a tortura como uma pr�tica de interrogat�rio nos quart�is come�a em 1964. E isso � uma descoberta. A pesquisa demonstrou que a tortura � uma estrat�gia usada pelo regime militar desde 1964 nos quart�is.
Ap�s o AI-5, em dezembro de1968, passou a ser praticada com mais requinte de crueldade?
A tortura entra nas for�as armadas a partir de tr�s eventos internacionais: as guerras da Indochina, Vietn� e Arg�lia. � usada como t�cnica de interrogat�rio dentro dos quart�is. Quando se pensa em sadismo ou crueldade � como se voc� dissesse: "Ali tem meia d�zia de pessoas s�dicos e, por essa raz�o, eles est�o torturando". N�o. � uma t�cnica de interrogat�rio.
As t�cnicas de tortura usadas no Brasil durante a ditadura foram importadas?
A ideia de que a tortura � �til para extrair informa��es de opositores pol�ticos � importada. � testada, principalmente, na Guerra da Arg�lia pelo ex�rcito franc�s. Mas, ela tamb�m tem adapta��o nacional. Existem determinadas t�cnicas de tortura que s�o importadas do ex�rcito ingl�s, que foram usadas na Irlanda. Como uma c�mara, que chamavam de geladeira, onde a temperatura aumentava e diminu�a e voc� perdia a no��o do tempo, se era o dia ou noite. J� o pau de arara � uma opera��o brasileira.
A partir dessa pesquisa voc�s chegaram ao centros clandestinos de tortura?
Come�amos a identificar que havia uma diferen�a. Aquilo que parecia existir s� no caso da Casa da Morte, em Petrop�lis, fazia parte de uma pol�tica. Come�amos uma pesquisa para CNV sobre os centros clandestinos. � uma pesquisa que puxa a outra, que puxa a outra, igual a hist�ria das mil e uma noites.
E quando ela ser� conclu�da?
J� temos mais detalhes sobre a fazenda 31 de mar�o em S�o Paulo. Eu n�o sei nada sobre o s�tio (Ribeir�o das Neves), mas os meninos acham que d� para levantar. N�o tenho informa��o sobre o s�tio de Uberl�ndia. Uma vez divulgado o relat�rio parcial h� a expectativa de que as outras comiss�es da verdade nos ajudem. Ou ent�o os jornalistas. Se a comiss�o estadual da verdade pudesse nos ajudar seria uma beleza. A CNV, por mais que as equipes sejam boas, n�o vai dar conta de ver tudo no espa�o de tempo que ela tem.
E a pesquisa que mostra quais foram as unidades do ex�rcito em que foram praticadas tortura?
Vimos que havia um mecanismo de tortura e estrat�gia das for�as armadas que indicavam uma estrutura de intelig�ncia de repress�o mais complexa. O pr�ximo passo foi tentar entender os desaparecimentos. Fizemos mapeamento dos quart�is onde foi praticada tortura, de 1969 at� 1976. Porque nessa pesquisa n�o aparecem as delegacias de pol�cia? Porque quer�amos entender os quart�is. Por isso a delegacia de furtos e roubos n�o entrou. � l�gico que houve tortura l�. Mas a novidade � o quartel.
Quais foram as fontes principais?
Os depoimentos da Comiss�o Estadual de Direitos Humanos e da Comiss�o de Anistia. S� usamos depoimentos prestados ao estado. Na hora que o sujeito faz um testemunho para o estado brasileiro tem um peso muito grande, pois o estado reconheceu que ele falava a verdade, tanto que concedeu a indeniza��o. Se o estado reconhece que ele est� falando a verdade e paga a ele uma indeniza��o o estado reconhece que houve tortura nesses quart�is. Ent�o eles tem que ser investigados.
Qual o principal legado da CNV na sua opini�o?
Os documentos. A quantidade de documentos que a CNV est� colocando dentro do arquivo nacional e preparando as condi��es para que eles venham a tona. Esse � um grande legado. Contribuir para que um tema da hist�ria recente do pa�s seja discutido � uma coisa muito importante. Estimular que a sociedade saiba mais, se interesse sobre isso � muito importante. Talvez uma outra � quando a CNV contribui para que a discuss�o seja feita para um n�mero maior de pessoas. Cada vez que discutimos a ditadura n�s vamos ter que pensar na democracia.