A senhora citou recentemente que o momento exige que os homens de bem tenham a ousadia dos canalhas... O que quis dizer?
Essa frase n�o � minha. Citei o (Benjamin) Disraeli. Meu pai gosta de repetir essa frase e saiu como minha. Acho que n�s nos conformamos... Talvez a palavra nem seja conformar. As pessoas saem �s ruas, e come�a a ter muito assalto. Em vez de tomar provid�ncias e reivindicar mais seguran�a, a pessoa se tranca dentro de casa, p�e mais alarme. E deixa a rua para o assalto acontecer. A vida n�o pode ser desse jeito, porque sen�o o mal vence o bem. A frase do Disraeli � importante por isso. As pessoas de bem t�m que reagir e agir no sentido de mudar a situa��o, e n�o de abandonar coisas como se n�o tivessem a ver com elas. Os assaltantes, traficantes, acabam tendo uma aud�cia muito maior porque sabem que as pessoas n�o v�o reagir. Ent�o, � preciso que quem seja de bem tenha a aud�cia para tamb�m reagir.
A frase, num contexto de crise, se encaixa neste momento?
Desde sempre, temos situa��es que s�o como essa em que as pessoas achavam assim: j� que est�o ocorrendo problemas com pol�ticos, a gente n�o se mete em pol�tica. Ent�o, j� que a rua est� perigosa, n�o vou sair. Se a escola est� ruim, ponho meu filho numa escola particular e n�o tomo conhecimento. No que disser respeito ao outro e � sua vida, voc� tem que agir.
� uma quest�o cultural?
O brasileiro est� aprendendo a se incomodar e a se desincomodar h� relativamente pouco tempo. Tivemos grandes manifesta��es na d�cada de 1960, a famosa passeata dos 100 mil. Tivemos em 2013, com novas manifesta��es. Mas, em geral, o cidad�o brasileiro vem sendo individualista, n�o pensa na sociedade, n�o quer participar.
No Congresso eles tamb�m pensam mais em si?
A percep��o, em geral, � de que pensa-se muito pouco no que o povo realmente precisa. O momento, no Brasil, n�o � de dizer o que o Estado est� fazendo por meio de seu legislador, de seu pol�tico, de seu juiz. O momento � de perguntar o que n�s, cidad�os, queremos ter e o que fazer para ter isso.
A popula��o reclama dos poderes constitu�dos. H� uma acomoda��o em geral ou s� do cidad�o?
A acomoda��o � geral. H� uma certa acomoda��o inc�moda. Porque n�o sei se h� verdadeiramente a certeza de que o povo n�o sabe muito bem pensar de maneira coletiva o que � melhor para o pa�s. N�o tivemos muito esse aprendizado. Cidadania e democracia se apreendem. Segundo, a ideia de solidariedade � que me faz pensar num pa�s como um todo. Na hora em que eles falam, querem que os poderes constitu�dos, Executivo e Legislativo, ou�am. N�o sei se ouvem e se d�o a resposta adequada.
E o Judici�rio?
O Judici�rio tem que fazer o que a Constitui��o determina. N�o est� no nosso alvitre decidir o que a popula��o quer. Muitas vezes, a gente vota contra a gente mesmo. J� votei contra mim, mas fico ao lado da Constitui��o. Sen�o, n�o se tem uma seguran�a jur�dica. Muitas vezes, o Supremo � contra o majorit�rio para garantir uma seguran�a de direito.
A insatisfa��o hoje � maior?
Do que j� foi na d�cada de 1980, por exemplo, com certeza. O slogan de campanha, da Nova Rep�blica, era isso: n�o queremos mais o pa�s do jeito que est�. Para isso, a alternativa oferecida, negociada naquela ocasi�o, foi de uma nova Constitui��o. Mesmo o Tancredo tendo morrido, Sarney se manteve porque o povo j� estava com a Constituinte.
A crise pol�tica e econ�mica leva a uma grande insatisfa��o. H� algum risco institucional?
N�o. O Brasil amadureceu politicamente. O cidad�o, desde os jovens at� os mais idosos, tem ci�ncia muito clara do que representa o regime democr�tico. N�o h� risco institucional. As institui��es est�o funcionando, a insatisfa��o demonstrada em geral nas ruas � basicamente com pol�ticas p�blicas que podem ser mudadas pelas pr�prias institui��es. A maior busca hoje no Brasil � pela efetiva��o de direitos sociais. Muito diferente da minha gera��o, que, na d�cada de 1980, lutava por direitos pol�ticos. A gente queria votar. N�o podia votar nem para o DA da Faculdade de Direito, nem em faculdade nenhuma. Por que h� uma insatisfa��o? Porque a Constitui��o � de 1988 e estamos em 2015.
Essa insatisfa��o da popula��o est� muito ligada �s den�ncias graves de corrup��o. Bilh�es de reais s�o desviados, e o governo fala em aumentar impostos. Este � um momento peculiar?
� um sintoma de amadurecimento democr�tico, porque, se as pessoas vissem isso e n�o reagissem, seria muito mais preocupante. Significaria que chegamos a uma insensibilidade social em rela��o ao Estado, como se n�o tivesse nada a ver com a gente. Acho o contr�rio. Isso � um sintoma positivo de o cidad�o dizer: vamos moralizar, vamos cumprir a Constitui��o.
H� risco de impeachment?
N�o sei.
O fato de essas den�ncias estarem vindo � tona � um avan�o da nossa sociedade?
Com toda certeza. O Minist�rio P�blico faz a sua parte, a Pol�cia Federal tem autonomia e cumpre os seus deveres, o Judici�rio est� julgando. Isso � avan�o institucional.
A demonstra��o de avan�o come�ou no julgamento do mensal�o?
Come�ou muito antes. Na realidade, talvez tenha havido uma divulga��o do julgamento no STF da AP 470, mas verdadeiramente a lei de improbidade administrativa fez com que o Minist�rio P�blico, como previsto e estruturado na Constitui��o, desse ensejo a que promotores pudessem investigar nos quase 6 mil munic�pios do Brasil. Ent�o, quando se trata de uma a��o que chegou ao afastamento de um prefeito do interior, n�o tem repercuss�o a n�o ser para aquela comunidade. Mas, desde essa ocasi�o, desde o fim da d�cada de 1980, e principalmente na d�cada de 1990, o MP se tornou muito atuante e levou ao Judici�rio as quest�es que n�o eram levadas.
H� quem critique at� de forma dura a atua��o do MP. Concorda?
O Minist�rio P�blico atua de maneira extremamente correta, muito cioso em seus pareceres. Um dos pontos altos da Constitui��o de 1988 foi justamente a concep��o e a estrutura do MP, que foi, em grande parte, cal�ada pelas ideias do ministro Sep�lveda Pertence. Come�ou com a comiss�o dos not�veis, que fez o primeiro esbo�o de Constitui��o, e ele cuidou desse tema. Portanto, o Rodrigo Janot, que � o procurador-geral, vem exatamente na mesma esteira do que foram a atua��o e os ensinamentos de Sep�lveda.
A Justi�a deveria ser mais c�lere?
Deveria ser muito mais r�pida, mas a sociedade tamb�m precisa discutir isso. Talvez o erro seja da comunidade jur�dica e do Judici�rio, de falar com mais clareza as coisas, porque esse juridiqu�s nosso n�o � nem compreendido pelas pessoas. � muito chato mesmo. O que as pessoas precisam compreender � o seguinte: sou ju�za e me submeto ao que a lei determina. Se a lei d� ao cidad�o o direito de recorrer quantas vezes ele quiser, n�o posso fechar o protocolo do Judici�rio.
O juridiqu�s atrapalha e falta tamb�m mais proximidade, n�o?
O juiz n�o � autista para n�o saber em que mundo vive. Pelo contr�rio. A gente sabe. Gosto de ir ao supermercado, sei quanto custa minha conta. Vou ao Mercado Central de BH, reclamo do pre�o. Mas, na hora de julgar, n�o posso olhar sen�o para o que est� no processo e qual lei se aplica. Posso tentar, o mais poss�vel, explicar o resultado, explicar o porqu�. Sempre terei algu�m que vai ficar contra mim, porque quem perde a a��o n�o vai acreditar que n�o tinha o direito. Ele n�o � convencido pelo juiz.
A senhora diz que seu rumo � seguir a Constitui��o. Mas isso n�o significa que concorde com tudo que est� escrito?
N�o. Eu j� votei contra mim.
A senhora sofre com isso?
N�o... A l� n�o pesa ao carneiro (risos). A quem tem voca��o, nada � pesado. Nem � pesado o cargo, nem � pesado o trabalho. Se tenho de ficar 18 horas, fico. O corpo �s vezes reclama - ningu�m pesa 40 quilos, a essa altura, impunemente. Mas sei que essa � a minha fun��o. Voc� nunca fica alegre quando tem de aplicar penas, por exemplo. Isso n�o alegra ningu�m. Porque s� precisa do direito penal quem errou na vida. Mas, em contrapresta��o, quando voc� garante a efetividade do direito a uma pessoa que est� para morrer, que precisou vir ao Judici�rio para ter um tratamento, uma cirurgia, tamb�m � muito compensador.
O pa�s vive um momento cr�tico, n�o?
O Brasil passa por um momento, mas n�o � a quest�o pol�tica. Me preocupa isso: o cidad�o quer o processo dele julgado em determinado tempo. Sou ju�za, preciso dar uma resposta a isso. E n�o tem milagre. Ent�o, a demanda � cada vez maior. Estamos chegando a quase 100 milh�es de processos, para um Judici�rio que tem 18 mil ju�zes, com mais de 20% dos cargos vagos. Tenho minhas preocupa��es, n�o preciso olhar para os outros poderes. O que tenho aqui como responsabilidade � cada vez maior.
Alguma vez a senhora sentiu preconceito no trabalho?
No Supremo, em rela��o aos colegas, n�o. Mas existe preconceito na comunidade jur�dica. Em 1982, quando fiz concurso para procuradora, um examinador da banca, professor de direito, me disse expressamente na prova oral: “Se a senhora for realmente muito melhor do que os outros, como dizem, vai passar. Mas, se for igual ao homem, preferimos homem como procurador”. Isso, numa prova oral, te desestabiliza facilmente. Hoje, ningu�m falaria isso. Agora, o preconceito continua? Continua, ele s� n�o se manifesta mais. Mudou para melhor? Mudou, porque ele agora precisa de muito mais motivos para afastar. O preconceito por ser ju�za diminuiu? N�o. Quem n�o gosta de mulher em cargo p�blico diz isso: “Perdi porque o juiz era uma mulher, e mulher � muito mais rigorosa”. Cansam de dizer isso.
Parte dos problemas da presidente Dilma tem a ver com o preconceito em rela��o � mulher?
A presidente pode e deve ter sofrido preconceito. � como nos disse expressamente a presidente do Chile, Michelle Bachelet, em um encontro de ju�zas de tribunais constitucionais na Argentina: “Sou a presidente da Rep�blica; a presidente do Senado � uma mulher (Isabela Allende); a presidente do Tribunal Constitucional do Chile � uma mulher (Marisol Pe�a); e a presidente do principal sindicato do Chile � uma mulher (B�rbara Figueroa). Vamos dizer que n�o h� preconceito? H�.” N�o � a circunst�ncia daquele momento que faz com que tenha acabado o preconceito.
Como acabar com isso?
� uma quest�o mais grave, porque � cultural. O princ�pio mais vezes repetido na Constitui��o � o da igualdade, porque o problema maior do Brasil s�o todas as formas de desigualdade. Desigualdade de g�nero; desigualdade pelo fato de a pessoa ser negra; desigualdade por ser ind�gena; desigualdade porque � pobre; desigualdade de toda natureza. Ent�o, a Constitui��o repete mais vezes exatamente porque precisa igualar. E a iguala��o � um processo, uma conquista. Mudamos, sim. Imagine que, h� 30 anos, cogitar uma mulher no STF levantava quest�es como: n�o h� possibilidade porque, inclusive, vai criar um constrangimento l�. Era isso que se dizia.