Num antol�gico ensaio sobre o romance, o escritor tcheco Milan Kundera enaltece a import�ncia da obra de Cervantes para toda a literatura contempor�nea: “Uma cortina m�gica, tecida de lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina. O mundo se abriu diante do cavaleiro errante em toda nudez c�mica de sua prosa”. � a inven��o do romance, “a marca de identidade de uma arte”.
Segundo Kundera, assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, quando o mundo corre em nossa dire��o no momento em que nascemos, j� est� maquiado, mascarado, pr�-interpretado. “E os conformistas n�o ser�o os �nicos a ser enganados; os seres rebeldes, �vidos de se opor a tudo e a todos, n�o se d�o conta do quanto tamb�m est�o sendo obedientes, n�o se revoltar�o a n�o ser contra o que interpretado (pr�-interpretado) como digno de revolta”.
Ao fazer um paralelo entre a pintura e a literatura, Kundera destaca o quadro c�lebre de Delacroix, A liberdade guiando o povo, que retrata “uma mulher jovem numa barricada, o rosto severo, os seios nus inspirando medo; ao seu lado, um revolucion�rio maltrapilho com uma pistola na m�o”. Kundera n�o gosta da pintura, mas reconhece a obra de arte. Adverte, por�m, que um romance que glorifique semelhantes posturas convencionais, s�mbolos t�o gastos, se excluiria da hist�ria da literatura. De fato, foi o que aconteceu com a maioria dos autores do realismo socialista.
A Opera��o Lava-Jato se desenrola como um grande romance, pois rasga a cortina de um mundo pol�tico maquiado, mascarado e pr�-interpretado. Entretanto, nada pode contra a cegueira manique�sta, causada por um conjunto de ideias que se tornaram anacr�nicas ap�s a queda do Muro de Berlim, a dissolu��o da Uni�o Sovi�tica e o fim da Guerra Fria. Instaladas no poder, levam a economia � bancarrota e bloqueiam a renova��o pol�tica, al�m de resultar numa crise �tica sem precedentes.A cortina da pol�tica brasileira pode ser bem traduzida pelas palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Lu�s Roberto Barroso, numa conversa informal com estudantes de p�s-gradua��o em economia, gravadas sem que ele soubesse pelo sistema de tev� da Corte: “Quando, anteontem, o jornal exibia que o PMDB desembarcou do governo e mostrava as pessoas que erguiam as m�os, eu olhei e, meu Deus do c�u, essa � a nossa alternativa de poder. Eu n�o vou fulanizar, mas quem viu a foto sabe do que estou falando”.
“O problema da pol�tica neste momento, eu diria, � a falta de alternativa. N�o tem para onde correr. Isso � um desastre. Numa sociedade democr�tica, a pol�tica � um g�nero de primeira necessidade. A pol�tica morreu. Talvez eu tenha exagerado, mas ela est� gravemente enferma. � preciso mudar”, disparou o ministro. Como rasgar essa cortina? Essa � a quest�o que est� posta. Gostem ou n�o os pol�ticos, para a sociedade, quem est� rasgando a cortina � a Opera��o Lava-Jato.
Ideias anacr�nicas
Na raiz do impasse nacional, h� duas concep��es que tecem a crise tr�plice: de um lado, a ideia de que o Estado � o tutor e provedor da sociedade; de outro, a de que os fins justificam os meios, ainda mais se os objetivos s�o, digamos, (pseudo) revolucion�rios. O fracasso do governo Dilma Rousseff pode ser atribu�do a esses dois aspectos, basta fazer uma retrospectiva dos erros cometidos na condu��o da economia e agora mesmo, no fragor da batalha, das a��es em curso para reorganizar a base do governo contra o impeachment.
A presidente Dilma Rousseff mobiliza correligion�rios e aliados, montou um palanque no Pal�cio do Planalto para atacar a Opera��o Lava-Jato e defender seu mandato. Recorre ao passado e compara a situa��o atual �s crises que levaram o presidente Get�lio Vargas ao suic�dio, em 1954, e os militares ao golpe de Estado que destituiu Jo�o Goulart, em 1964. Mascara, por�m, a realidade e tenta fechar a cortina de seu mundo maquiado e pr�-interpretado. Ser� mesmo essa a alternativa que nos resta?
Fala-se muito em defesa do Estado democr�tico e das garantias e direitos individuais, embora os militares (protagonistas das rupturas de 1889, 1930 e 1964) estejam quietos no seu canto. A economia est� se desmanchando. A democracia brasileira foi bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas institui��es. Quem pode impedir que a cortina seja remendada pelo Executivo? O Congresso Nacional, se tamb�m purgar seus pecados e cortar na pr�pria carne; ou o Supremo Tribunal Federal, se levar adiante a Opera��o Lava-Jato e iluminar o palco da renova��o pol�tica.