
Dada como abolida ap�s o fim do regime militar – que mantinha um departamento espec�fico para avaliar toda a produ��o cultural brasileira e dizer o que a popula��o podia ou n�o ver, ler e ouvir – a censura voltou ao debate. O motivo s�o projetos de lei e regulamenta��o de normas j� existentes que tentam estabelecer no pa�s algum tipo de controle e puni��o para manifesta��es art�sticas consideradas “impr�prias” e, principalmente, as campanhas que t�m sido feitas por parlamentares das bancadas evang�licas e movimentos conservadores contra obras de arte e pe�as de teatro, levando inclusive � suspens�o da exibi��o e ao confisco de algumas delas Brasil afora.
O temor � que haja uma ca�a �s bruxas e uma repercuss�o negativa sobre a produ��o cultural – como aconteceu ap�s o golpe de 64 – e foi respons�vel pela destrui��o de filmes, confisco de livros em bibliotecas p�blicas, LPs riscados e proibi��o de mostras de arte e pe�as de teatro. E tamb�m corte de verbas, controle seletivo em editais, isolamento do Brasil das discuss�es art�sticas, imigra��o de artistas de renome e descr�dito de institui��es p�blicas no circuito internacional.
A professora da escola de Belas Artes da UFMG, Yacy-Ara Froner , aponta ainda para o risco de volta de pr�ticas como as engendradas pelo Partido Nazista da Alemanha, nos anos 1930, que passou a perseguir o que considerava ser uma “arte degenerada”, que nada mais era do que produ��es feitas por movimentos vanguardistas modernos e que tinham entre seus representantes artistas como Picasso. “Arte Degenerada” foi o t�tulo de uma mostra montada pelos nazistas em Munique, em 1937, em que as obras modernistas eram acompanhadas de faixas e r�tulos ridicularizando as pe�as expostas, inflamando e produzindo �dio na opini�o p�blica.
Para ela, essa onda est� atrelada a um contexto nacional maior. “Muitas vezes, o mentor ou o grupo que organiza os atos ou as cr�ticas p�blicas nem ao menos visitou a exposi��o sobre a qual emite opini�es. Tampouco, conhece o lugar art�stico de onde a obra fala”. E quando tem acesso, segunda ela, as observa a partir de um olhar tendencioso, procurando nelas a evid�ncia de “supostos” crimes contra a moral e os bons costumes”.
Aten��o
Na avalia��o da professora, que se diz extremamente preocupada com esses acontecimentos, o foco moralista de cr�tica � cultura e � liberdade de express�o art�stica tem v�rios objetivos, entre eles desviar a aten��o dos problemas reais que o pa�s enfrenta e criar uma bandeira “moralizante” para arrebatar seguidores e futuramente convert�-los em eleitores. Yacy-Ara defende a edu��o e discuss�o ampla com segmentos religiosos sobre obras art�sticas para reverter o preconceito.
“Temos que unir aqueles que querem preservar a liberdade de express�o art�stica em a��es coletivas e educar aqueles que n�o entendem as obras art�sticas apresentadas para que esses indiv�duos n�o sejam massa de manobra de pol�ticos e pessoas inescrupulosas”. Para ela, essa onda deve ser encarada com seriedade, pois o cerceamento da liberdade de express�o art�stica � uma das marcas do totalitarismo.
Tamb�m temeroso a respeito do crescimento de uma “onda persecut�ria” o Conselho Estadual de Pol�tica Cultural de Minas Gerais divulgou na sexta-feira uma carta expressando sua preocupa��o com as recentes manifesta��es contr�rias a exposi��es art�sticas realizadas em alguns munic�pios do Brasil, em particular, em Belo Horizonte, no Pal�cio das Artes, onde ficar�o expostas at� dia 19 de novembro as telas de Moraleida.
“Trata-se de uma afronta � liberdade de express�o e �s artes de maneira geral. H� uma clara distor��o do sentido da manifesta��o art�stica quando nela se v� indu��o a pr�ticas criminosas ou moralmente reprov�veis. Veementemente assinalamos uma tentativa de retorno da censura e intimida��o de artistas, expositores e apreciadores da arte. Nesse contexto, o Conselho repudia a manipula��o escancarada da realidade, com interesses escusos a cria��o de uma onda persecut�ria, que confunde e acirra animosidades desnecess�rias.”, diz a carta assinada pelo conselho, que re�ne representantes de diversos segmentos culturais.
‘Arte degenerada’
Sombras do passado com ecos no presente
» O painel Guevara vivo ou Morto, do artista Cla�dio Tozzi, exposto no IV Sal�o Nacional de Arte Contempor�nea de Bras�lia, em 1967, foi parcialmente destru�do a machadadas por um grupo radical de extrema direita.
» A mostra dos artistas selecionados para a representa��o brasileira � 4º Bienal de Paris, no MAM-RJ, em 1969, foi suspensa por causa da inclus�o de uma foto de Evandro Teixeira que mostrava o tombo de moto de um oficial da For�a A�rea Brasileira. A repercuss�o internacional foi t�o grande que artistas do Brasil e do mundo inteiro se uniram para boicotar a Bienal de S�o Paulo realizada no mesmo ano.
» O ent�o ministro da Cultura e reitor da Universidade do Paran�, Fl�vio Suplicy de Lacerda, no per�odo de 1964 a 1966, manda arrancar da biblioteca da institui��o v�rias p�ginas de obras de escritores renomados como Emile Zola, E�a de Queir�s, Sartre, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Guerra Junqueiro por considerar seu conte�do impr�prio para a leitura. J� fora do cargo, foi homenageado com um busto no p�tio da reitoria, destru�do por estudantes durante uma manifesta��o em 1968,
» Em julho de 1968, durante a ap�s exibi��o da pe�a Roda Viva, de Chico Buarque, o Comando de Ca�a aos Comunistas (CCC) – com seus integrantes armados de peda�os de pau e soco ingl�s – invadiu o ent�o Teatro Galp�o, destruiu o cen�rio e agrediu os atores. A atriz Mar�lia P�ra foi obrigada a deixar o local seminua e passar por um corredor polon�s onde foi agredida com socos e pontap�s.
» A banda Blitz, no auge do sucesso, em 1982, lan�ou um, LP com 13 m�sicas, duas delas censuradas pelo regime militar. Como a proibi��o da veicula��o dessas m�sicas aconteceu depois que as c�pias dos discos j� tinham sido prensadas, a gravadora decidiu ent�o riscar as faixas. “Ela quer morar comigo na lua” foi censurada em fun��o de um �nico verso (� ela diz que eu ando bundando) e “Cruel cruel esquizofr�nico blues” vetada por causa do trocadilho com a palavra peru (S� porque ela pegou no peru do seu marido).
» Em setembro deste ano, a exposi��o “Queermuseu – cartografias da diferen�a na arte da brasileira” fechou as portas para a visita��o um m�s antes do prazo previsto – ap�s protestos do Movimento Brasil Livre (MBL) contra a mostra, que tinha como objetivo valorizar a diversidade sexual atrav�s de tem�ticas LGBT.
Resist�ncia com apelo � liberdade
O secret�rio adjunto de Cultura de Minas Gerais, Jo�o Miguel, tamb�m manifesta preocupa��o com os ataques �s exposi��es. O Pal�cio das Artes, administrado pela secretaria, resistiu �s press�es e manteve a exposi��o de Moraleida. “Movimentos que se organizam contra a exibi��o de obras de arte demonstram um total desconhecimento n�o somente da hist�ria, como tamb�m do poder transformador da cultura. Tens�o e conflito sempre foram ingredientes presentes no fazer art�stico, portanto a arte sempre causou inc�modo e questionamento, e isso � algo ben�fico”, afirma o secret�rio-adjunto.
Para Jo�o Miguel, qualquer tipo de censura deve ser totalmente combatido, mas � preciso discutir com transpar�ncia e seriedade a classifica��o indicativa para exposi��es, o que poderia evitar transtornos. A do Moraleida, por exemplo, n�o � recomendada para menores de 18 anos. “Isso, no entanto, n�o esvazia o necess�rio debate sobre o claro estabelecimento de classifica��o et�ria para mostras e exposi��es art�sticas. Neste momento em que pequenos grupos questionam exposi��es em algumas cidades do Brasil, n�o podemos nos calar. Minas tem sido exemplo na manuten��o da liberdade de express�o”. Para ele, a exposi��o de Moraleida acabou se configurando como um espa�o de resist�ncia.
A Ocupa��o Transarte, que acontece atualmente na Funarte, merece igualmente nosso olhar atento. “Da mesma forma devemos comunh�o �s manifesta��es das culturas urbanas que, diariamente sofrem atrocidades de toda sorte. N�o podemos aceitar que grupos incultos queiram inviabilizar esses espa�os de exposi��es de arte, que tamb�m funcionam como locais de reflex�o sobre tabus, paradigmas e dogmas sociais. Caso contr�rio, entraremos em um per�odo de absurdo retrocesso. A cultura de Minas Gerais � viva e jamais aceitar� voltar a tempos cinzentos. Resistimos pelo compromisso com aquilo que mais nos identifica como mineiros: a liberdade”, diz Jo�o Miguel, um dos organizadores em nome da Secretaria de Cultura de um ato contra a censura marcado para novembro na capital mineira. A inten��o � tentar trazer artistas, diretores de museus e produtores culturais para debater formas de combater a censura e o preconceito contra manifesta��es art�sticas.
“Me entristece muito a gente estar vivendo esse tempo de repress�o e repres�lia, principalmente contra a cultura e a produ��o intelectual”, disse o cantor e compositor Fl�vio Renegado, que defende a cultura como uma forma de resist�ncia e inclus�o social. Mas para ele, que veio da periferia, cuja produ��o cultural sempre foi marginalizada e v�tima de preconceitos, essa onda de censura n�o assusta tanto. “Esses agentes conservadores est�o se sentindo � vontade para se mostrar, mas eu at� prefiro, pois assim a gente consegue visualizar quem s�o nossos reais inimigos e como temos que nos contrapor. Mas a cultura � for�a de combate e embate e vamos continuar na linha de frente resistindo”.