
O Poder Judici�rio tem de ter cuidado para n�o assumir a posi��o que o Estado delegou ao Poder Legislativo. E � preocupado em marcar posi��o contra o “ativismo judicial negativo” – quando o juiz sai de sua miss�o prec�pua, ignorando ou reescrevendo a Constitui��o para adequ�-la a uma percep��o de qualquer ordem – que o novo presidente do Tribunal de Justi�a de Minas Gerais, Nelson Missias vai comandar o Poder Judici�rio no estado pelos pr�ximos dois anos. “Administrarei esse tribunal durante os 730 dias do meu mandato com a Constitui��o sobre a minha mesa, e ali est�”, afirma apontando para a Carta.
Com forma��o human�stica, doutorando pela Universidade Aut�noma de Lisboa, Nelson Missias assinala a cultura de litigiosidade no pa�s. S�o atualmente 5.870.820 processos em andamento na Justi�a de Minas, o que, em termos populacionais, equivale a quase um processo para cada tr�s habitantes no estado. “Queremos uma justi�a c�lere e cidad�. E vamos trabalhar para a desjudicializa��o”, diz, lembrando que v�rias fun��es que eram restritas ao Judici�rio, como separa��es, invent�rios, j� s�o resolvidas extrajudicialmente. “Temos pretens�o de buscar algumas outras alternativas para minimizar esse fluxo enorme de demandas judiciais”, afirma Nelson Missias, lembrando que, em m�dia, a cada m�s, chegam � Justi�a mineira 220 mil novos feitos para julgamento.
Em meio � crise fiscal do estado, Nelson Missias chama de “p�gina triste do Judici�rio” o fato de cerca de R$ 6 bilh�es dos dep�sitos judiciais terem sido usados pelo governo de Minas para honrar compromissos do estado. “Lamentavelmente ocorreu. Mas existe um princ�pio na administra��o p�blica que � o da continuidade administrativa, e me cabe dar continuidade sem olhar para o retrovisor. Tenho de tentar sanear essa situa��o de agora em diante. Falta �s vezes dinheiro para cobrir os alvar�s. Mas nessa hora temos de entrar para tentar resolver”.
O sr. est� assumindo a presid�ncia do Tribunal de Justi�a num momento de profunda crise fiscal do estado. Que diagn�stico tem do Poder Judici�rio em Minas Gerais?
O TJMG, como em muitos lugares do pa�s, padece de alguns males. Um deles � a falta de estrutura f�sica para funcionamento, temos car�ncia de pessoal – somos hoje 1.033 entre desembargadores e ju�zes e precisamos abrir concurso para preencher 120 vagas. Esse � o reflexo das dificuldades or�ament�rias e financeiras em que vive o Poder Judici�rio, num contexto de uma lament�vel cultura de litigiosidade no pa�s. E � necess�rio mudarmos essa cultura.
" A minha vis�o de Judici�rio � cl�ssica, a concep��o dos freios e contrapesos. Entendo que o poder do voto popular � algo muito caro numa sociedade em que vige o estado de direito"
Qual � o acervo hoje da Justi�a estadual?
H� atualmente 5.870.820 processos em andamento. Para se ter uma ideia da cultura de litigiosidade, se pensarmos em termos populacionais, isso equivaleria quase a um processo para cada 3 habitantes em Minas. Ao mesmo tempo, o nosso tribunal � o quarto do pa�s em maior produtividade: segundo os dados do Conselho Nacional de Justi�a, cada magistrado julgou em m�dia 1.881 processos em 2016, segundo o anu�rio de 2017: isso significa, uma m�dia de sete processos por dia �til no ano. Considerando o m�s de maio deste ano, por exemplo, foram distribu�dos 224.618 novos processos e baixados 250.609. Ao todo, foram em maio 198.724 senten�as e ac�rd�os e 76.642 decis�es terminativas. Agora, em raz�o das nossas dificuldades de falta de pessoal, n�o conseguimos entregar � sociedade da forma como merece e precisa a presta��o jurisdicional no tempo em que deveria ser. Queremos uma justi�a mais c�lere e cidad�. Mas o Judici�rio mineiro, por sorte nossa, ou privil�gio at�, � composto por ju�zes com muita disposi��o para criar alternativas para minimizar esse problema, com a justi�a restaurativa, a concilia��o e os juizados especiais. Outra vertente que queremos trabalhar � a desjudicializa��o. Hoje, o extrajudicial j� assumiu algumas fun��es que eram restritas do Poder Judici�rio, como separa��es, invent�rios, uma s�rie de atividades. E temos pretens�o de buscar algumas outras alternativas para minimizar esse fluxo enorme de demandas judiciais.
O estado de Minas Gerais vive um momento fiscal cr�tico, muito agravado inclusive pela queda de arrecada��o. Nesse contexto, as formas de remunera��o da magistratura est�o sob maior crivo e cr�tica: aux�lio-moradia dentre v�rios outros penduricalhos. Como explicar isso para a sociedade, presidente?
Em primeiro lugar � preciso dizer que o Poder Judici�rio � muito herm�tico, muito fechado. E isso talvez nos dificulte o relacionamento com a sociedade para mostrar a realidade que n�o � bem essa. Quando um juiz presta um concurso, ele o faz atra�do pela seguran�a que ter� inclusive na inatividade. E h� nessa atividade predicamentos que se destinam mais ao cidad�o: um juiz inamov�vel, livre de press�es, que tem o predicamento da irredutibilidade dos vencimentos e a vitaliciedade. Tudo isso permite que se tenha juiz imparcial e n�o um juiz de ocasi�o. Ele n�o pode ter outra atividade sen�o a de um professor. � uma fun��o t�o importante, esta de equilibrar o fraco e o forte, atendendo-os igualmente, de conter os excessos, os desvios. O legislador constitucional trouxe a previs�o da recomposi��o monet�ria anual � magistratura. Fala-se em aux�lio-moradia, que nada mais � do que uma forma obl�qua de recomposi��o monet�ria dos subs�dios. Se pegarmos desde a implanta��o do subs�dio at� hoje, mesmo com esses valores, estamos muito aqu�m do �ndice inflacion�rio.Mas o que falta mesmo � uma pol�tica de subs�dios mais adequada para a magistratura, ao inv�s desses penduricalhos.
Quando pegamos o �ltimo relat�rio do CNJ, de 2017, a m�dia dos vencimentos dos magistrados da Justi�a estadual em Minas em 2016 foi de R$ 64.993,00, quase o dobro do teto previsto para o ministro do STF. Como se explica isso?
H� muita alegoria. Essa m�dia inclui o 13o sal�rio, inclui o juiz que �s vezes se aposenta e tem f�rias-pr�mio. Esta � a seguran�a que ele constr�i ao longo da vida, assim como o trabalhador comum tem o seu fundo de garantia, o que o juiz tem quando da aposentadoria s�o as f�rias pr�mio. S�o direitos que acumula ao longo da carreira.
"Temos de tomar muito cuidado para n�o assumir o papel do legislador. O Judici�rio tem de ter cuidado para n�o assumir a posi��o que o Estado delegou a outro poder"
Em certo momento do governo de Fernando Pimentel (PT) foram utilizados dep�sitos judiciais para honrar compromissos financeiros do estado da ordem de R$ 6 bilh�es. Que risco corre um cidad�o de ganhar uma causa e n�o conseguir sacar o seu dep�sito judicial?
Essa � uma p�gina triste do Poder Judici�rio. Os dep�sitos judiciais n�o pertencem ao Poder Judici�rio. Pertencem ao cidad�o que litiga e nele confia. Lamentavelmente ocorreu. Existe um princ�pio na administra��o p�blica que � o da continuidade administrativa, e me cabe dar continuidade sem olhar para o retrovisor. Tenho de tentar sanear essa situa��o de agora em diante. Falta �s vezes dinheiro para cobrir os alvar�s. Mas nessa hora temos de entrar para tentar resolver.
Atualmente temos visto no Brasil dois fen�menos, por um lado uma intensa judicializa��o das mais diversas situa��es. E sobretudo e mais complicada, a judicializa��o da pol�tica. E nesse campo, temos um Judici�rio que recebe cr�ticas por atuar no sentido de submeter o poder pol�tico frequentemente, “legislando”. O Poder Judici�rio, em sua opini�o, est� extrapolando as suas fun��es?
Temos de ter cuidados com o protagonismo judicial. O protagonismo judicial deveria ser algo mais palp�vel de forma positiva: quando o Judici�rio cria alternativas para que a sociedade possa ter do Poder Judici�rio algo mais que o pr�prio poder com a sua car�ncia de estrutura, de pessoal, poderia dar. Assim como temos programas de humaniza��o das penas, as Associa��es de Prote��o e Assist�ncia a Condenados (Apacs). Isso � ativismo judicial positivo. N�s enxergamos a dimens�o social do magistrado, como o trabalho que se faz de justi�a restaurativa, como o Programa de Aten��o Integral ao Paciente Judici�rio Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ). Mas o ativismo judicial negativo � quando o juiz sai de sua miss�o prec�pua. � o ativismo judicial que para o estado de direito, em minha concep��o, n�o � positivo. Como julgador sempre tive como par�metros para decidir a minha consci�ncia e a Constitui��o do meu pa�s. Pois a lei infraconstitucional diz: o que afronta a Constitui��o, fico com a Constitui��o do meu pa�s. A minha vis�o de Judici�rio � cl�ssica, a concep��o dos freios e contrapesos. Entendo que o poder do voto popular � algo muito caro numa sociedade em que vige o estado de direito. O legislador constitucional, quando recebe a delega��o do povo para legislar, assim escolheu esse sistema de forma inteligente. E onde est� o povo come�am as necessidades reais. O juiz � int�rprete da lei, n�o legisla. Mas dentro desse aspecto, h� algo que chamamos no direito de muta��o constitucional. Devido a muta��es na pr�pria sociedade, faz-se muta��o na interpreta��o. � algo admiss�vel no direito moderno, em alguns lugares de forma contida e em outras de forma mais ampla. Mas em minha concep��o, temos de tomar muito cuidado para n�o assumir o papel do legislador. O Judici�rio tem de ter cuidado para n�o assumir a posi��o que o Estado delegou a outro poder.
Considerando o nosso aparato estatal – da pol�cia judici�ria ao sistema prisional – onde falha a ideia conceitual da Justi�a falha mais?
O sistema prisional � falho, no momento em que n�o tem estrutura adequada para receber o preso, trat�-lo com a dignidade que um ser humano merece, prepar�-lo para retomar o conv�vio social. O sistema carcer�rio oficial brasileiro est� falido. N�o existe dentro do sistema oficial uma f�rmula para que esse indiv�duo retorne para a sociedade melhor do que entrou. E a� vem o nosso trabalho, do Judici�rio e da sociedade. Como nas Apacs, o preso que l� entra custa quase um ter�o para o estado: R$ 1050,00. O preso convencional custa cerca de 2.700,00. E o preso convencional tem �ndice de reincid�ncia de aproximadamente 80%. J� no sistema Apac, onde o preso � tratado com dignidade, � de 15% e em geral n�o � reincid�ncia de crimes violentos. E a� vem a conven��o que a sociedade n�o consegue entender: se voc� trata como animal vai agir como animal.
Temos a terceira maior popula��o carcer�ria do mundo, num sistema superlotado – em m�dia dois presos por vaga, onde nasceram e se desenvolveram as organiza��es criminosas que l� recrutam. Qual � a sa�da para esse sistema prisional?
� a� que vem o problema, quando se substitui a pol�tica social pela pol�tica criminal algo ruim vai acontecer. O papel do Judici�rio � o que estamos cumprindo em Minas. Aqui h� mais de 3.500 presos no sistema Apac, que � um modelo para o mundo. Obviamente, n�o tenho esperan�a que o sistema convencional possa resolver alguma coisa. Est� saturado e embora seja papel do Executivo, n�o nosso, n�o podemos fechar os olhos para isso. Temos uma responsabilidade. E h� um equ�voco grande, que quando temos problemas sociais graves, �s vezes para jogar para a plateia e para m�dia v�m com legisla��o criminal ainda mais dura, que n�o resolve o problema. Est�o s� substituindo pol�tica social por penal. Ent�o esse estado e esse sistema precisa ser repensado.