A descriminaliza��o do aborto at� a 12ª semana de gesta��o voltar� ao centro do debate hoje no Supremo Tribunal Federal (STF), em audi�ncia p�blica. Com o t�rmino das discuss�es, os ministros da Suprema Corte devem analisar o caso. Em alguns meses, a ministra Rosa Weber, relatora do projeto, pode solicitar ao presidente do STF que coloque o tema em pauta para vota��o em plen�rio.
Ao todo, 26 entidades ser�o ouvidas para discutir o assunto. Pela manh�, ser�o 13 associa��es religiosas e, � tarde, representantes de institui��es jur�dicas ter�o a vez de falar. Na �ltima sexta-feira, alguns grupos criticaram o uso do Judici�rio para decidir sobre a descriminaliza��o, uma vez que o Congresso j� votou sobre o caso. Para o representante da Associa��o Nacional Pr�-Vida e Pr�-Fam�lia, Hermes Rodrigues Nery, os promotores do aborto entenderam que, n�o passando pelo Legislativo, era preciso judicializar a quest�o. “Aproveitaram que a jurisprud�ncia foi sutilmente aberta em um passado recente, para legalizar o aborto em um processo jur�dico”, argumentou.
Ele faz refer�ncia � decis�o da Suprema Corte, em 2012, de descriminalizar o procedimento para casos de anencefalia. Antes disso, segundo o artigo 128 do C�digo Penal, apenas mulheres estupradas e que tinham risco de vida com a gravidez poderiam ter o direito legal (leia O que diz a lei). Dessa vez, a expectativa � de fim da criminaliza��o at� a 12ª semana. Na pr�tica, mulheres que fizerem o procedimento n�o poderiam ser presas ou processadas por isso.
Levantamento feito pelo Portal Catarinas mostrou que, apenas em 2017, 18 estados registraram 331 processos contra mulheres pela pr�tica de aborto. Entre 2015 e 2017, foram 924 processos nessas 18 unidades da Federa��o. O estado com o maior n�mero de processos nos �ltimos tr�s anos � S�o Paulo, com 250 a��es judiciais, seguido por Paran� (165), Minas Gerais (104), Rio de Janeiro (97) e Rio Grande do Sul (55).
Segundo a advogada, ativista e membro da Rede Feminista de Juristas Ana L�cia Keunecke, o STF tem compet�ncia para discutir o aborto, pois o pa�s assinou tratados internacionais que conferem autonomia aos direitos reprodutivos da mulher, como � o caso da Conven��o Bel�m-Par�, em 1996, segundo a qual entende-se por viol�ncia contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no g�nero, que cause morte, dano ou sofrimento f�sico, sexual ou psicol�gico � mulher, tanto na esfera p�blica quanto na privada. A conven��o tamb�m afirma que os Estados Partes tomar�o “todas as medidas apropriadas, inclusive de car�ter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exerc�cio e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condi��es com o homem”.
“Se pegarmos todos esses tratados, vemos que j� existe legisla��o que diz que a mulher � aut�noma para escolher pelo seu corpo”, afirmou Ana L�cia. “Cada vez que uma mulher morre em decorr�ncia de abortamento, a gente tem um efeito cascata bem severo, em toda a popula��o. Sendo que j� existe lei que garante autonomia da mulher em processos reprodutivos. � lei. � sem�ntica”, avaliou.

Atraso
Toda a movimenta��o para a descriminaliza��o do aborto come�ou entre os anos de 1960 e 1970, na Europa. “S�o quase 58 anos at� hoje. Esse � o n�mero de anos que o Brasil est� atrasado. E nossas condi��es s�o piores, porque temos um atendimento m�dico incapaz. Tamb�m n�o se supre os m�todos contraceptivos”, afirmou a antrop�loga e presidente da Associa��o Brasileira de Antropologia (ABA), Lia Zanotta Machado.
Neste ano, alguns pa�ses tamb�m discutiram o assunto. Na Argentina, o projeto de lei que pede a descriminaliza��o do aborto at� a 12ª semana de gesta��o foi aprovado na C�mara dos Deputados. Segue agora para o Senado. A Irlanda, com fortes ra�zes cat�licas, fez um referendo para a libera��o do procedimento at� a 12ª semana e at� a 24ª por motivos de sa�de. Dos 2,1 milh�es de votantes, 66,4% votaram a favor de revogar a oitava emenda da Constitui��o da Irlanda, que proibia a interrup��o volunt�ria da gesta��o.
“Isso � uma coisa que independe da religi�o. V�rios pa�ses com cultura religiosa conseguem o aborto. Inglaterra, Estados Unidos, Fran�a. Religi�o n�o impede a descriminaliza��o. Mas, aqui no Brasil, h� um conservadorismo pol�tico, uma manipula��o do religioso no poder pol�tico com as bancadas evang�licas”, avaliou a antrop�loga. De acordo com levantamento realizado pelo Centro de Direitos Reprodutivos, divulgado pelo Minist�rio da Sa�de, entre as d�cadas de 1950 e 1980, quase todos os pa�ses desenvolvidos tiveram a legisla��o acerca da interrup��o volunt�ria da gesta��o alterada (confira no quadro acima).
O que diz a lei
» Art. 128 do C�digo Penal: N�o se pune o aborto praticado por m�dico
» Aborto necess�rio se n�o h� outro meio de salvar a vida da gestante
» Se a gravidez resulta de estupro e o aborto � precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal
Mudando a hist�ria
Em 2017, Rebeca Mendes tentou mudar a hist�ria do aborto no Brasil. Ao descobrir a terceira gravidez, a estudante de direito solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de fazer o procedimento de forma legal e segura. A Corte negou o pedido, mas abriu precedentes. A revolu��o come�ou ali, em agosto do ano passado. Quase um ano depois, a Suprema Corte retoma a discuss�o em audi�ncias p�blicas.
O pedido de abortamento foi feito em parceria com o Instituto Anis, que solicitou � ministra Rosa Weber a autoriza��o para Rebeca fazer o aborto. “Quando eu vi que estava gr�vida, come�amos (junto ao pai da crian�a) a pesquisar v�rias formas de interromper a gravidez. Mas todas que apareciam n�o davam seguran�a nenhuma. E eu n�o queria morrer”, contou Rebeca.
O caminho da estudante, no entanto, se cruzou com o da Anis, ap�s uma mensagem. Ao saber que eles procuravam por uma sa�da, um amigo do pai da crian�a, ligado a entidades feministas, recomendou o grupo. “Mandei uma mensagem no WhatsApp e a D�bora Diniz (do Anis) me respondeu. Foi assim que tudo come�ou”, lembrou.
Em novembro de 2017, Rosa Weber negou o pedido. Rebeca se desesperou, porque sempre cuidou de dois filhos, sem a ajuda paterna. “Deixei de fazer muita coisa, porque eu tinha dois pequenos. Agora, eles cresceram e comecei a cuidar de mim, a trabalhar e a estudar. Se eu tivesse outro filho, regrediria cinco anos. � inaceit�vel abrir m�o de tudo”, completou.
Ao conseguir ajuda para realizar o procedimento na Col�mbia, a estudante abriu as portas para que o assunto, novamente, fosse discutido. “Quando voltei para o Brasil, muitas mulheres entraram em contato comigo, para falarem sobre uma gravidez indesejada. Eu vi que minha hist�ria tinha acabado, mas o debate, n�o”, disse. O assunto voltou, e cabe, agora, ao Judici�rio decidir. “Minha mensagem para os ministros � que, se negarem a descriminaliza��o, t�m de saber que ter�o o sangue das mulheres, principalmente das pobres, nas m�os”, sentenciou.