
Do gabinete no quinto andar do Supremo Tribunal Federal, a ministra C�rmen L�cia enxerga muito mais do que o Pal�cio do Planalto e parte do Congresso Nacional. Dali, onde despacha h� mais de 14 anos, a jurista sentencia: “Somos uma sociedade machista e preconceituosa”. Da vis�o panor�mica da Pra�a dos Tr�s Poderes e com a larga experi�ncia na mais alta corte do pa�s, da qual j� foi presidente e primeira mulher a quebrar o r�gido protocolo e usar cal�as e n�o saia nas sess�es, ela adverte que os homens p�blicos devem dar exemplo e n�o, em hip�tese alguma, estimular o preconceito. “Quem est� num cargo p�blico tem de ter cuidado muito maior com o que diz”, ensina.
Em entrevista ao Estado de Minas, C�rmen L�cia tamb�m recomenda zelo das autoridades no combate � intoler�ncia: “Vejo que coment�rios e brincadeiras demonstram preconceito”. Confessa que nem ela, que ocupa importante espa�o de poder institucionalizado, est� liberta do machismo. A ministra acredita que o Dia Internacional da Mulher, comemorado hoje, � momento de reflex�o para entendermos por que ainda estamos nesta situa��o de extrema viol�ncia e o que cada um pode fazer para mudar a realidade. Com a Constitui��o sempre � disposi��o e a imagem do Menino Jesus na mesa principal do gabinete, C�rmen falou ainda sobre censura, partidos pol�ticos e democracia.
As brasileiras t�m motivo para comemorar este 8 de mar�o?
N�o. Pode representar um �timo momento para as mulheres terem um espa�o de reflex�o. Entender por que a situa��o est� como est�, e o que � preciso fazer para superar esse estado de tanta virul�ncia, de tanto preconceito, de tanta crueldade contra as mulheres. � preciso a gente valer-se desses momentos. No turbilh�o da vida, �s vezes a gente n�o para pensar, para trocar com outras pessoas o que elas pensam. � certo que, sem um pensamento amadurecido, refletido, cr�tico sobre isso n�o teremos uma supera��o. At� porque, a gente acaba agindo ao sabor dos acontecimentos que se sucedem com uma rapidez muito impressionante.
Como a senhora classifica o momento exacerbado que vivemos, com tanta dificuldade de relacionamento entre os poderes?
As dificuldades v�m talvez do temperamento das pessoas que est�o nos cargos. Talvez elas tenham que atentar cada vez mais ao que afirma a Constitui��o sobre a impessoalidade como princ�pio da administra��o p�blica. O artigo 37 disp�e que a administra��o p�blica tem como princ�pios a impessoalidade, a legalidade, a publicidade, a moralidade. A impessoalidade significa que agir como servidor, como agente p�blico, imp�e o dever de n�o trazer sua personalidade em primeiro plano sobre o interesse p�blico. Vejo um momento em que � preciso ficar atento a isso, n�o deixar que isso se desfigure.
Tem sido assim hoje?
No caso dos poderes, a Constitui��o tamb�m � expressa quando diz que s�o independentes, mas t�m de ser harm�nicos; porque isso � que leva a uma sociedade justa, equilibrada e solid�ria. Est� no pre�mbulo da Constitui��o; n�o � sugest�o, nem proposta. � a lei prim�ria do Brasil. Tudo que for contra isso precisa ser cerceado. Vejo sempre com preocupa��o todo descumprimento de Constitui��o. Mas vejo com muito mais quando se acirram situa��es �s quais precisamos ficar atentos para impedir qualquer coisa que v� al�m, que n�o possa ser refeito.
O Brasil est� fechando os olhos para a Constitui��o? E os governantes?
O Brasil, n�o. Governantes e governados n�o podem deixar de cumprir a Constitui��o. A qualquer excesso, o pr�prio direito responde.
Quando um agente p�blico ofende uma profissional de imprensa, mulher, n�o est� afrontando a Constitui��o?
A Constitui��o, n�o. Ele estaria afrontando, se fosse o caso, outras leis, e a pessoa que se sentiu ofendida tem de tomar provid�ncia. � o que eu disse: � preciso tomar em conta o comportamento que n�s todos, agentes p�blicos, precisamos cuidadosamente observar, porque � dever jur�dico e dever da pr�pria civilidade.
O comportamento de Jair Bolsonaro se enquadra no que a senhora diz?
N�o vou dirigir a um ponto espec�fico. Primeiro porque, sobre quest�o entre os poderes, fala pelo Supremo o presidente, que j� se manifestou nos casos em que ele tem que se manifestar. O presidente fala pela institui��o, e as institui��es � que precisam estar afinadas e harm�nicas. Em segundo lugar, porque nossa preocupa��o maior tem de estar voltada para todas as pessoas. Um comportamento que sobressaia � que tem de ser respondido. Tudo que � contra a imprensa n�o vale em uma democracia. Sem imprensa livre n�o h� possibilidade de termos uma democracia forte. A imprensa � que d� voz e vez nos momentos em que as pessoas n�o t�m voz e vez. No Brasil, voc�s s�o exemplares. Para mim, se h� profissionais que admiro � jornalista e comandante de voo (risos).
A senhora critica os partidos mais pragm�ticos do que program�ticos.
O partido pol�tico tem que ter programas para seguir, se adequar a eles, realizando um conjunto de ideias, valores e propostas do interesse do povo. No entanto o que gente v� � a presen�a de 36 partidos, 33 com representa��o no Congresso, 21 com representa��o no Senado, 76 pedidos de novos partidos no TSE. A pergunta �: h� programas realmente muito diferentes?. Alguns s�o id�nticos.
No seu voto sobre a censura, a senhora falou “cala a boca j� morreu”. O que sentiu quando tentaram censurar Machado de Assis, Euclides da Cunha?
Acho t�o fora de qualquer prop�sito, porque a Constitui��o � taxativa: n�o se admitir� censura em qualquer caso. Machado de Assis � universal. Honra n�s, brasileiros, mas honra o pensamento humano. Sou incapaz at� de entender a causa, mas sou capaz de entender as consequ�ncias se n�o tivesse imediatamente havido a rea��o, desde a Academia Brasileira de Letras, a todos os lugares. Censura � inconstitucional. Censura n�o vale. O ser humano tem a garantia da dignidade e a liberdade de pensamento. A liberdade de express�o de pensamento tem de ser garantida exatamente em benef�cio da manifesta��o de todas as formas de liberdades, mais ainda de express�o.
Acredita que a democracia est� em risco?
Nunca acredito nisso. A democracia � um compromisso da sociedade brasileira. Eu que sou, na minha fun��o, uma das respons�veis pelo cumprimento da Constitui��o – todo brasileiro o � – repito e acredito no que disse Ulysses Guimar�es: essa Constitui��o viver� enquanto viver a democracia no Brasil. Descumprir a Constitui��o � trair o Brasil. Trair a Constitui��o � trair a democracia. A Constitui��o est� em vigor e ser� aplicada permanentemente. Tenho certeza de que o Poder Judici�rio tem dado demonstra��o de que n�s n�o deixamos de fazer cumprir a Constitui��o e de dar resposta a qualquer descumprimento.