Fernando Henrique Cardoso escolheu rememorar seu percurso intelectual em comemora��o de seus 90 anos de idade. Significa que parte da trajet�ria pol�tica do ex-presidente ficou fora do mais recente livro dele que chega hoje ao mercado? N�o, imposs�vel, s�o caminhos com mais encruzilhadas do que separa��es, como mostra a leitura de Um Intelectual na Pol�tica - Mem�rias, lan�ado pela editora Companhia das Letras.
"Caminhei nesse caminho t�o universit�rio quanto pol�tico", diz FHC em entrevista ao Estad�o. Fazem parte da obra, de quase 300 p�ginas, a inf�ncia e mocidade numa fam�lia repleta de militares e pol�ticos, a forma��o como soci�logo na USP, o contato com a nata da intelectualidade mundial, o ex�lio no Chile, a luta pela redemocratiza��o do Pa�s, e claro, o "mergulho" na pol�tica.
O texto leve alterna estilos, inspirado em Machado de Assis e "� la (Joaquim) Nabuco". O ex-presidente relembra mestres, conta casos saborosos e analisa obras de pensadores importantes na concep��o do Pa�s. Algumas reflex�es foram publicadas na colabora��o que FHC mant�m com o Estad�o.
FHC completa 90 anos em 18 de junho. Diz que segue procurando ler e entender. "Pensar n�o � coisa f�cil." Em plena pandemia da covid-19, isolado, se mostra otimista. "� importante sempre manter a expectativa de um futuro melhor. Mesmo que ele n�o venha, voc� ter� a expectativa."
Sobre a conjuntura pol�tica, diz que Jair Bolsonaro tem de obedecer �s regras da democracia e que ainda n�o desistiu de uma alternativa � polariza��o do atual presidente com Lula, mas que estaria disposto a conversar com o petista.
O senhor diz neste seu novo livro que a pol�tica, em sua fam�lia, vem do ber�o. No entanto, a leitura dele deixa claro o quanto o senhor hesitou em se afastar da vida acad�mica e intelectual para "mergulhar" na pol�tica. Hoje, prestes a completar 90 anos, se considera mais intelectual do que pol�tico?
Eu estou fora da pol�tica. Hoje, eu procuro pensar, ler, entender. Pensar n�o � uma coisa f�cil. Sou presidente de honra do PSDB, mas � s� de honra. No dia a dia, n�o tenho liga��o com a pol�tica, mas com as ideias e a literatura. Eu tenho uma forma��o. O livro � focado nela muito mais do que na minha atividade pol�tica.
� poss�vel pelo livro perceber que o senhor acompanhou atentamente a hist�ria brasileira. Ali�s, nele, o senhor deixa claro sua veia de historiador...
Meu bisav� foi governador no Imp�rio, meu tio-av� foi ministro da Guerra na Revolu��o de 1932. Falar disso para mim � natural, n�o � pedantismo meu. Reuni�o na minha casa sempre foi para falar dos acontecimentos, isso embrenha a gente. Embora eu seja soci�logo de forma��o, sempre me referi � hist�ria, sempre procurei ter uma vis�o estrutural com algum assentamento na hist�ria, na vida. H� soci�logos que s�o totalmente abstratos e s�o bons. No meu caso, sempre fa�o refer�ncia a alguma coisa.
O senhor mant�m essa curiosidade de pesquisador, que fica t�o aparente no livro?
Creio que sim. Me surpreendo at� hoje e procuro entender.
Com qual sentimento o senhor chega �s portas dos 90 anos, com o Pa�s e o mundo em momento t�o dif�cil?
� um mau momento, n�o �? Porque estamos limitados pela pandemia, mas eu espero que ela acabe, j� vi muita coisa come�ar e acabar. Pode ser que eu acabe. Espero n�o morrer antes do fim da pandemia. � importante sempre manter uma expectativa de um futuro melhor. Mesmo que ele n�o venha, voc� ter� a expectativa. Eu mantenho. Mas esse sou eu, cada um � de um jeito.
Em algum momento se arrependeu de ter deixado a vida acad�mica pela pol�tica?
Eu tinha que me dedicar �s duas coisas, devido � minha forma��o. Voc� me perguntou se sou mais acad�mico ou pol�tico, eu fico na d�vida (risos). Neste momento, n�o tenho alternativa, eu escrevo, eu falo. Neste momento, n�o d� para querer ser alguma coisa na vida p�blica, tamb�m porque j� fui. N�o gosto muito de repeti��o, ainda que tenha sido reeleito presidente. Gosto de variar um pouco, cada um tem um jeito. Muitas vezes voc� � feito pelo caminho. Caminhei nesse caminho t�o universit�rio quanto pol�tico.
A leitura d� uma ideia de que sua entrada na pol�tica se deu naturalmente, quase um acaso...
Ouvi muitas vezes dizerem que eu desde pequeno sonhava em ser presidente. N�o � verdade isso, eu queria ser papa, n�o presidente, se pudesse, porque era cat�lico. Foi um acaso at� certo ponto. H� pessoas que n�o tiveram o mesmo passado que eu tive e foram presidentes, tem um que agora � presidente e n�o tem a mesma hist�ria. O importante � n�o estar com ideia fixa. Voc� acha que alguma vez na vida eu quis ser professor da Sorbonne? N�o, isso vai acontecendo, mas � claro que n�o � por acaso, voc� tem de se preparar. Sempre li muito, meu pai lia muito. � necess�rio ler muito para ser presidente? Tem quantos presidentes que n�o leram nada e foram bons presidentes? Ningu�m � modelo de nada, cada um � um. N�o adianta ter obsess�o por ser, tem gente muito melhor do que eu que n�o ganhou. E da�?
Falando na sua forma��o, o livro traz o momento em que o senhor iniciou a leitura de Marx e j� naquele momento se deu conta de que o fil�sofo socialista n�o forneceria a �nica chave para explicar a sociedade brasileira. Qual seria a ferramenta ideal para entender o Pa�s de hoje?
O Brasil mudou muito. Eu nasci h� quase 90 anos. Eu me lembro da Segunda Grande Guerra, que me alcan�ou por causa da minha fam�lia e tal, eu a segui com muito interesse. Depois, veio a redemocratiza��o, outro fato forte aqui. Hoje, o Brasil j� est� com seu roteiro definido, � um pa�s que tem um crescimento econ�mico, capitalista, ningu�m discute mais hoje o que se discutia no meu tempo, que era qual o caminho a seguir. Esse caminho est� dado at� certo ponto. Encontramos mais espa�o no mundo. A chave � viver de acordo com seu tempo. Nesse livro, eu me refiro ao passado, a meus professores, falo um pouco da minha fam�lia. Mas estou preocupado com o que vai acontecer. O Brasil est� integrado ao mundo, o nosso compasso hoje � outro. Voc� precisa viver o seu momento, n�o adianta ficar pensando s� no que foi ou no que vai ser.
O livro mostra que o senhor conviveu com a nata da intelectualidade mundial, Jean-Paul Sartre, Alain Touraine e tantos outros, que, como o senhor, eram do pensamento...
Quando voc� est� vivendo isso, voc� n�o sente. Quando o Sartre veio ao Brasil foi uma grande como��o. Eu tenho uma grande lacuna na minha vida, eu n�o gosto de futebol. Uma desvantagem grande. Eu ia ainda menino ao est�dio do Pacaembu com meus tios que eram cariocas, e eu sentia medo porque, nos jogos entre paulistas e cariocas, eles torciam para o Rio... Me faltou essa dimens�o de uma participa��o mais ativa. Eu remava no Tiet�, mas nunca fui muito ligado esse lado da vida, que � bom. Hoje fa�o gin�stica para n�o ficar encarquilhado.
O senhor ainda acredita ser poss�vel criar uma frente partid�ria para as elei��es ou as diverg�ncias antigas entres os democratas, como o livro aponta em determinado momento, ainda persistem?
Eu acho necess�rio. A democracia n�o � dada para sempre, � preciso estar o tempo todo lutando por ela. � importante que exista uma uni�o de for�as para mant�-la, ainda que eu n�o ache que ela esteja a perigo no Brasil. Pode haver impulsos autorit�rios, mas n�o vejo que haja condi��es pol�ticas para permitir um fechamento do regime, porque n�o h� no mundo. Eu nunca fui sect�rio. Se for poss�vel ter mais gente junta, acho que seria melhor. Se as oposi��es puderem se unir, melhor. � mais f�cil vencer quando se est� junto. Dentro das regras do jogo, � preciso manter as regras.
O senhor demonstra preocupa��o com o tema da juventude e com os partidos pol�ticos. H� um distanciamento entre ambos?
Acho que h�. Os mais jovens olham com desconfian�a o sistema pol�tico porque n�o experimentaram a falta de liberdade. A despeito da fraqueza aparente deles, os partidos s�o importantes. A pol�tica parece ser uma coisa dos outros, n�o nossa, no Brasil. Mas � curioso, apesar disso, que os brasileiros gostem de elei��o. � dia de alegria, de festa, e � assim porque tem partido, mandato. Seria bom se valorizassem um pouco mais a vida pol�tica. Mas os partidos s�o fechados tamb�m, t�m dono.
H� um cap�tulo sobre a rela��o entre o nosso mundo digital e conectado com a polariza��o. � uma preocupa��o?
Sim, vivi momentos de muita polariza��o no Brasil, do n�s contra eles. � perigoso e existe hoje no Brasil por parte de quem manda.
No aspecto pol�tico do livro, fica a sensa��o de que o senhor se ressente de n�o ter conseguido manter di�logo com o Lula, a Dilma e o PT. Ainda � poss�vel?
Sim, d� para conversar com o Lula porque n�o sinto nele um sentimento de ser contra as regras. � bom manter contato. O distanciamento faz voc� imaginar o outro como inimigo. Eu nunca vi o Bolsonaro, nunca o vi. Eu n�o concordo com ele e isso � expl�cito, mas n�o quer dizer que eu queira mat�-lo, elimin�-lo, nada disso. E ele vai ter que seguir a regra, ele pode ter o impulso que tiver, mas vai ter de seguir a regra. Enquanto tivermos uma regra que prevale�a, tudo bem, uns pensam de um jeito, outros, de outro. Melhor que n�o haja um sentimento de antagonismo. Sei que � um pouco ut�pico, mas � preciso haver regras, freios, a regra, a lei. Voc� n�o pode dizer tudo o que voc� pensa, voc� n�o vive sozinho, voc� vive com outro, que n�o � necessariamente seu inimigo.
� poss�vel surgir uma mensagem alternativa � polariza��o?
Acho que precisa ter um caminho que n�o seja nem um nem o outro. Eu posso dizer isso ao Lula, mas n�o ao Bolsonaro porque n�o tenho contato. Eu n�o quero elimin�-los da vida pol�tica, mas posso ser favor�vel � exist�ncia de alternativas. Na vida pol�tica, ou voc� fala e, portanto, existe, ou n�o fala e n�o existe. N�o � como na academia em que voc� faz um artigo, bota seu nome l� e pronto. Na pol�tica tem de convencer os outros.
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