Quando o Conselheiro de Seguran�a Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e o Assessor Especial do presidente americano Joe Biden, Juan Gonz�lez, entraram no gabinete de Jair Bolsonaro, no Pal�cio do Planalto, no �ltimo dia 5, n�o esperavam uma conversa de melhores amigos. Mas o que encontraram foi descrito � BBC News Brasil como "nonsense" e "tenso" por oficiais americanos.
Do encontro sobraram n�o s� uma foto de um aperto de m�o de Sullivan, de m�scara, e Bolsonaro, sem m�scara e oficialmente n�o vacinado, mas tamb�m uma preocupa��o dos americanos com a sa�de da democracia brasileira, diante das alega��es sem provas do presidente brasileiro de fraude eleitoral nas urnas eletr�nicas.
Originalmente, a agenda dos enviados de Biden ao Brasil n�o teria a democracia brasileira como destaque principal.A pauta deles inclu�a oferecer ao pa�s o status de parceiro global da Otan (Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte), condi��o que dar� acesso ao Brasil � compra de equipamentos de guerra de �ltima linha, al�m de sess�es de treinamento militares com os americanos em bases nos EUA.
Por outro lado, a miss�o americana pretendia pressionar o Brasil a estabelecer — e cumprir — metas de redu��o de desmatamento ambiciosas e dissuadir o Brasil de usar equipamentos da gigante chinesa de telecomunica��es Huawei em sua rede 5G — um dos argumentos dos americanos foi, inclusive, o de que a empresa poderia n�o entregar os materiais contratados pelo governo Bolsonaro por crise de mat�rias-primas.
A conversa, no entanto, saiu do script normal com insinua��es de Bolsonaro de que o pleito americano de 2020 havia sido roubado — o que faria de Joe Biden um presidente ileg�timo.
A administra��o Biden sempre esteve ciente de que Bolsonaro defendia publicamente as falsas alega��es de Trump sobre as elei��es. O republicano fazia m�ltiplas acusa��es ao sistema eleitoral dos EUA, questionando tanto aos votos de papel quanto �queles depositados em urna eletr�nica, mesmo antes do dia da vota��o. Bolsonaro foi o �ltimo l�der do G-20 a reconhecer a vit�ria de Biden.
O que os americanos n�o esperavam � que Bolsonaro dissesse tais coisas diante de Sullivan e Gonzalez, ambos altos representantes do governo a servi�os dos democratas h� anos.
Segundo autoridades com conhecimento dos fatos, ambos ouviram o suficiente para deixar o encontro preocupados com a democracia no Brasil. Sullivan foi �s redes sociais enunciar que a "gest�o Biden defende um hemisf�rio seguro e democr�tico".

J� Juan Gonzalez fez uma coletiva de imprensa sobre a viagem para Brasil e Argentina na qual falou, na maior parte do tempo, da democracia brasileira. "Fomos muito diretos em expressar nossa confian�a na capacidade de as institui��es brasileiras conduzirem uma elei��o livre e limpa e enfatizamos a import�ncia de n�o ser minada a confian�a no processo de elei��es, especialmente porque n�o h� ind�cio de fraude nas elei��es passadas", disse Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.
A Cartilha Trump
Dentro do governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, tem ganhado for�a a percep��o de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha que Trump adotou ao tentar se perpetuar no poder: denunciar fraudes sem prova, antes mesmo do pleito ocorrer, e criar descren�a em parte do eleitorado sobre o processo eleitoral, a ponto de levar a cenas como a invas�o do Capit�lio por apoiadores, em 6 de janeiro.
A diplomacia de Biden n�o deixou de notar, por exemplo, o interesse do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, nas elei��es de 2022, no Brasil.
O pr�prio Gonzalez foi expl�cito sobre o assunto. "Fomos sinceros sobre nossa posi��o, especialmente em vista dos paralelos em rela��o � tentativa de invalidar as elei��es antes do tempo, algo que, � �bvio, tem um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos."
Em Washington, a percep��o � de que a imagem de Bolsonaro sofreu um abalo significativo como um poss�vel interlocutor ap�s a visita.
"Acho que o governo Biden, especialmente depois dessa reuni�o em Bras�lia, v� Bolsonaro como uma figura err�tica, ou pelo menos como algu�m que age de uma forma muito exc�ntrica e dif�cil de prever. Ele diz coisas que parecem ir contra seu pr�prio interesse nacional. Por que ele iria querer brigar com o novo governo dos EUA dizendo que a elei��o (americana) foi fraudada? D� pra entender o porqu� Trump faz isso, j� que ele quer disputar a presid�ncia de novo e fazer disso um tema, mas para um l�der estrangeiro dizer esse tipo de coisa �, no m�nimo, estranho", afirma Melvyn Levitsky, ex-secret�rio executivo do Departamento de Estado e embaixador no Brasil entre 1994-1998.
Militares longe do golpe
Levitsky, que hoje � professor de pol�ticas internacionais da Universidade de Michigan, afirma que nessa situa��o, os americanos v�o jogar (quase) parados, sem qualquer a��o que possa soar como interfer�ncia nas elei��es brasileiras.

E isso tamb�m porque a diplomacia americana n�o v� como prov�vel a possibilidade de que as For�as Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista de Bolsonaro. Reservadamente, autoridades dos EUA citaram as a��es recentes do ex-comandante do Ex�rcito, o general Edson Pujol, e de seu atual l�der, o general Paulo S�rgio de Oliveira, como sinais de anteparos ao presidente no uso pol�tico das for�as armadas. Em discurso no dia do soldado, Oliveira afirmou que o Ex�rcito quer ser respeitado "nacional e internacionalmente" e tem "compromisso com os valores mais nobres da P�tria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento".
"Eu conhecia muito bem os militares brasileiros. E embora fa�a algum tempo que n�o fale com eles, meu senso � de que os militares estavam muito subordinados ao governo civil e eu n�o acho que isso mudou. N�o acho que os militares queiram entrar de vez na pol�tica. Seria devastador para eles fazer isso. E se isso acontecesse, seria devastador para as rela��es entre Brasil e Estados Unidos tamb�m", afirma Levitsky.
� essa percep��o que explica, em parte, porque os americanos n�o viram problemas em oferecer ao Brasil uma posi��o como parceiro global na Otan que fortalece diretamente o Ex�rcito brasileiro. Se avaliasse haver tend�ncia golpista nas for�as, esse n�o teria sido um caminho para Biden, asseguram os diplomatas. Al�m disso, nem todos os parceiros globais da Otan s�o pa�ses de democracia perfeita — a Turquia, por exemplo, � tido como um deles.
Por fim, para os militares brasileiros a possibilidade de acessar contratos de vendas de armamento de ponta e participar em treinamentos com os americanos � algo de que eles provavelmente n�o estariam dispostos a abrir m�o em troca da tentativa de um golpe ao lado de Bolsonaro. � o que argumenta Ryan Berg, cientista-pol�tico especialista em regimes autorit�rios na Am�rica Latina do Centro de Estrat�gias e Estudos Internacionais (CSIS, na sigla em ingl�s).
"A vis�o do governo dos EUA � que, embora os movimentos de Bolsonaro sejam muito preocupantes, com desfile de tanques pelas ruas de Bras�lia e atos para desacreditar as elei��es, ainda assim o Congresso rejeitou o voto impresso e isso, para o governo dos Estados Unidos, indica que as institui��es do Brasil s�o mais fortes do que algumas pessoas gostam de dizer. O governo dos EUA tem muita confian�a que os militares brasileiros n�o ficariam do lado do Bolsonaro se ele tentasse cometer algum tipo de autogolpe, como vimos com Trump, na invas�o do Capit�lio em 6 de janeiro", afirma Ryan Berg.
O futuro das rela��es EUA-Brasil

� consenso entre diplomatas e especialistas internacionais americanos que os EUA n�o podem e nem querem virar as costas para o Brasil. Primeiro porque o pa�s, com suas florestas tropicais, � visto como chave para avan�ar no combate ao aquecimento global, pauta priorit�ria do governo Biden.
Segundo, porque a China tenta ganhar espa�o na Am�rica Latina a passos largos, e os americanos n�o est�o dispostos a ceder, ao principal rival, espa�o de influ�ncia na segunda maior democracia do continente — ainda mais com a disputa do 5G a pleno vapor.
E terceiro, porque, em que pesem as a��es de Bolsonaro sobre a democracia brasileira ou sobre o meio ambiente, seu governo promoveu um alinhamento ideol�gico com os Estados Unidos no continente, adotando tom duro contra Venezuela e Cuba, algo bastante valorizado no Departamento de Estado.
No entanto, dada a percep��o de que "Bolsonaro n�o � um l�der plenamente confi�vel", como afirma Levitsky, os pr�ximos movimentos na rela��o depender�o de seu governo. E a diplomacia americana diz que n�o vai se furtar da possibilidade de se engajar com outros atores pol�ticos, em diferentes n�veis de poder e sem a intermedia��o do Executivo federal, para fazer avan�ar sua agenda.
Foi exatamente o que fez, h� um m�s, o Enviado Clim�tico de Biden, John Kerry. Diante de promessas n�o cumpridas e do mal-estar que representava a presen�a do ent�o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que os americanos veem como envolvido em um poss�vel esquema de tr�fico ilegal de madeira amaz�nica para os EUA, Kerry driblou Bras�lia e se reuniu por uma hora e meia com os governadores do F�rum de Governadores, que inclui quase todos os Estados.
Na semana seguinte, Jake Sullivan n�o esteve apenas no Pal�cio do Planalto, mas fez tamb�m uma reuni�o com governadores do Cons�rcio da Amaz�nia Legal.
"H� uma percep��o dos EUA de que o governo federal infelizmente n�o vai avan�ar muito na quest�o do desmatamento. Ent�o falar com os governadores n�o chega a ser uma exclus�o do governo federal, mas uma forma de jogar nas duas vias", afirmou � BBC News Brasil o governador do Maranh�o, Fl�vio Dino (PSB), que esteve no encontro com Kerry.
Depois de tr�s meses sem encontros com a equipe de Kerry, na �ltima semana, t�cnicos do Minist�rio do Meio Ambiente e representantes do Itamaraty retomaram conversas com os americanos. Isso acontece a menos de tr�s meses da Confer�ncia do Clima, em Glasgow, na Esc�cia, encarada pelos americanos como a �ltima grande oportunidade para que o governo Bolsonaro mostre algum avan�o na agenda ambiental.
Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por meio de um porta-voz, que "esperamos ver progressos adicionais � medida que o Brasil avan�a para combater o desmatamento ilegal e reduzir suas emiss�es de gases do efeito estufa, em linha com os compromissos assumidos pelo presidente Bolsonaro na C�pula dos L�deres sobre o Clima realizada em abril".
O Itamaraty defende que as metas de redu��o de desmatamento (que deve ser zerado at� 2030) e de emiss�es (zero at� 2050) s�o as mais ambiciosas entre os pa�ses em desenvolvimento. Reservadamente, no entanto, diplomatas envolvidos nas negocia��es com os americanos reconhecem "dificuldades internas do governo" para entregar redu��es expressivas no desmatamento ainda em 2021. Dados do INPE mostram que o acumulado de desmatamento entre janeiro e julho deste ano � o maior desde 2016.
Para o embaixador Levitsky, at� a elei��o do pr�ximo ano, EUA e Brasil devem levar uma rela��o "em banho-maria". De um lado, os americanos n�o demonstram grandes expectativas de novos compromissos de Bolsonaro, a quem veem majoritariamente voltado � agenda eleitoral dom�stica.
Por outro, preferem ver quem assumir� o pa�s pelos quatro anos seguintes para tentar implementar qualquer a��o fora das rela��es rotineiras. E j� avisaram a Bolsonaro que reconhecer�o como presidente quem quer que a Justi�a Eleitoral aponte como vencedor do pleito em outubro de 2022.
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