
"O que vemos no Brasil � o esgotamento de um l�der no poder, n�o o fim das bases, das ideias e dos valores que o levaram ao Pal�cio do Planalto", diz.
Para ele, o atual descontentamento com Bolsonaro tem a ver com a eros�o do padr�o de vida da sociedade e com a forma desastrosa com que o presidente lidou com a pandemia do novo coronav�rus, permitindo que muitas vidas fossem perdidas. "Em 2018, os brasileiros estavam fartos de pol�ticos e partidos tradicionais, ap�s um per�odo de turbul�ncias. Hoje, est�o fartos de Bolsonaro", enfatiza. Ele n�o descarta, por�m, a recupera��o do chefe do Executivo at� o fim das disputas pela Presid�ncia da Rep�blica.
O professor reconhece que a imagem do pa�s no exterior est� p�ssima. E h� raz�es de sobra para isso. "Em um momento em que os valores que o Brasil sempre encarnou no imagin�rio do resto do mundo eram mais necess�rios do que nunca, a lideran�a do pa�s tem projetado mensagens e valores muito preocupantes: antivacina��o, negacionismo das mudan�as clim�ticas, populismo, ataque � diversidade e �s institui��es democr�ticas", frisa.
Alonso acredita que uma poss�vel volta do ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva ao poder resultar� na retomada de pol�ticas importantes, como o combate � pobreza, al�m de quest�es clim�ticas. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.
O Brasil vai viver a mais polarizada de suas elei��es presidenciais. Como v� esse processo e por que chegamos a tal grau de radicaliza��o?
Os processos eleitorais devem ser sempre uma fonte de otimismo e celebra��o: � o momento em que os cidad�os elegem seus l�deres, express�o m�xima da soberania popular. � verdade que estamos testemunhando uma crescente radicaliza��o nas campanhas, n�o somente no Brasil, mas em todo o mundo, e isto � preocupante, porque uma elei��o deve ser o momento em que a comunidade nacional se junta e expressa suas prefer�ncias, em vez de aprofundar a divis�o. Ent�o, eu recomendaria que n�s nos coloquemos acima dos barulhos di�rios e nos concentremos na beleza do debate, de confronto de opini�es e respeitando os resultados das urnas.
A quest�o n�o � tanto a polariza��o, que reflete as crescentes diverg�ncias sociais, econ�micas e ideol�gicas em nossos pa�ses, mas a seguran�a de que o sistema resista a essas diverg�ncias e elas n�o afetem a robustez das nossas institui��es e do processo eleitoral. � verdade que temos testemunhado importantes desafios em recentes anos em alguns pa�ses, incluindo o desafio dos resultados ou a relut�ncia em facilitar uma suave transi��o do poder. Mas, no fim das contas, a ordem constitucional democr�tica prevaleceu. Estou esperan�oso de que n�s veremos o mesmo com os resultados das elei��es no Brasil, n�o importa o barulho que vejamos ao longo da campanha.
O senhor disse que o processo de polariza��o n�o � exclusividade do Brasil. � poss�vel voltar a tempos de normalidade?
Para come�ar, vivemos isso nos Estados Unidos, que t�m sido um farol da estabilidade democr�tica. N�s tamb�m vemos isso em outros pa�ses, inclusive na Europa, onde certos l�deres usam o endosso da vit�ria nas elei��es para atacar as institui��es democr�ticas, as liberdades civis e a imprensa livre, al�m de estimular a divis�o de poder. � poss�vel voltarmos ao que chamamos de "tempos de normalidade"? N�o e sim. N�o, porque existe o que eu chamaria de tempos normais: todos os per�odos t�m os seus desafios e as suas especificidades. N�o h� volta ao passado. Ent�o, temos de repensar as pol�ticas e os contratos sociais que mant�m a popula��o unida em uma era com diferentes desafios do que t�nhamos antes. Mas, ao mesmo tempo, sim.
Eu espero que n�s possamos recuperar alguma "normalidade" no sentido de reduzir decib�is da raiva, da polariza��o e da divis�o que n�s vemos na atual arena pol�tica. No entanto, isso requer pol�ticas ousadas e a transforma��o de nossas economias, dos nossos sistemas de produ��o, dos nossos padr�es de consumo... Essa transi��o n�o ser� f�cil. Para entregar inclus�o e sustentabilidade, para reconstruir a cola que une nossas sociedades, aqueles que est�o no topo precisar�o fazer sacrif�cios, e os que est�o na base da pir�mide dever�o fazer o exerc�cio da paci�ncia.
Muito desse processo de radicaliza��o se deu por conta do crescimento da extrema direita. Esse processo � irrevers�vel? Por qu�?
Temos testemunhado o crescimento da extrema direita no Brasil e em muitos pa�ses da Am�rica Latina, assim como na Europa. Na Espanha, onde muitos pensavam que n�s est�vamos imunes a esse movimento, um partido pol�tico como o Vox emergiu no cen�rio pol�tico. O que devemos notar � que tamb�m vimos o avan�o da extrema esquerda, e isso polarizou o espectro pol�tico, dando como resposta a ascens�o da extrema direita. N�o acredito que nenhum processo seja irrevers�vel. O curso da hist�ria � marcado por oscila��es desse tipo.
A quest�o-chave � quanto dano essa radicaliza��o causar� em nossos pa�ses, como vimos no crescimento da extrema direita na Europa nos anos de 1930 e na Am�rica Latina durante os anos de 1960 e 1970, por meio de golpes militares. O que est� claro � que o melhor caminho para reverter essa tend�ncia � n�o focar nos efeitos, mas atacar as causas profundas que nutrem a extrema direita: medo, decep��o, insatisfa��o, desafeto...
Como o senhor avalia o governo de Jair Bolsonaro?
A avalia��o final de qualquer governo deve ser baseada em fatos: contribuiu para melhorar a vida das pessoas? � verdade que a pandemia e seus efeitos disruptivos na economia mundial tiveram um impacto tremendo na habilidade dos governos para navegar nos anos recentes, mas j� podemos determinar quais fizeram um trabalho melhor. O Brasil viu uma eros�o no padr�o de vida: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu, o desemprego est� em n�veis semelhantes de quando o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo (tendo aumentado consideravelmente durante a metade do mandato), a infla��o est� alta...
E, mais preocupante, a revers�o da tend�ncia de queda da pobreza que v�nhamos vendo, resultado das mudan�as de pol�ticas. N�s todos tamb�m vimos as respostas iniciais de Bolsonaro � COVID-19, com pol�ticas err�ticas, que resultaram em perdas desnecess�rias de muitas vidas. Foi um per�odo dif�cil para muitos pa�ses? Sim. Tem sido agravado no Brasil pelas pol�ticas do atual governo? Sim. Al�m disso, Bolsonaro falhou na execu��o de v�rias reformas estruturais que ele havia prometido. Mais: estamos vendo um decl�nio das liberdades civis, um ataque aos Poderes constitucionais, o questionamento do Judici�rio... E o que dizer de sua pol�tica de preserva��o ambiental? Ent�o, temo que n�o seja um balan�o positivo o que ser� deixado nesses �ltimos quatro anos.
O fato de as pesquisas eleitorais mostrarem uma enorme rejei��o ao governo Bolsonaro indica um arrependimento dos brasileiros por terem aberto as portas � extrema direita ou n�o?
Eu n�o qualificaria isso como uma rejei��o � extrema direita em si, mas, sim, uma rejei��o ao pr�prio Bolsonaro e � incapacidade de seu governo de entregar. N�o esque�amos que ele venceu por mais de 10 pontos percentuais sobre (Fernando) Haddad no segundo turno das elei��es de 2018, e ele chegou perto dos 50% do total de votos no primeiro turno. Os brasileiros estavam fartos do estado de pol�ticos e partidos tradicionais, ap�s um per�odo de turbul�ncias.
Hoje, eles est�o fartos de Bolsonaro, e ele est� atr�s de Lula (nas pesquisas) entre 10 e 20 pontos, dependendo do instituto. Mas eu n�o qualificaria isso como uma rejei��o da extrema direita e de suas ideias. Sempre haver� possibilidade de Bolsonaro renascer. O que vemos no Brasil � o esgotamento de um l�der no poder, n�o o fim das bases, das ideias e dos valores que o levaram ao Planalto.
Uma derrota de Bolsonaro significa o fim da extrema direita no Brasil ou veremos se repetir o que ocorre nos EUA, onde Donald Trump continua forte e controlando o Partido Republicano?
Como eu disse, n�o acho que a potencial perda da elei��o significar� o fim da extrema direita no Brasil. Pode levar ao fim da vida pol�tica de Bolsonaro (ou n�o, pois pol�ticos podem ter muitas vidas e retornarem), mas a extrema direita continuar� forte enquanto n�o enfrentarmos as quest�es que a alimentam: desigualdade, inseguran�a, corrup��o... Por�m, o caso � muito diferente do de Trump, porque o ex-presidente capturou o aparato pol�tico do Partido Republicano, e isso � o que deu a ele for�a e oxig�nio para uma potencial volta ao poder. Eu n�o vejo Bolsonaro sendo capaz de capitanear uma m�quina semelhante se ele perder as elei��es.
As pesquisas indicam uma poss�vel vit�ria de Luiz In�cio Lula da Silva. O que ser� a volta da esquerda ao poder no maior pa�s da Am�rica Latina?
Se o ex-presidente Lula retornar ao poder, ser� diferente de seus mandatos anteriores. Ele � um l�der experiente, que aprendeu muito com sua experi�ncia no governo e passou por uma jornada pessoal traum�tica no per�odo em que esteve na pris�o. � forte, s�bio e est� mais resiliente. Ser�o 20 anos depois da primeira vez em que chegou ao Planalto, e o mundo tamb�m ser� muito diferente. N�s estamos na era do p�s-pandemia, n�o do 11 de Setembro de 2001. Quando Lula chegou ao poder em 2003, ele veio como um heterodoxo, um ex-sindicalista que preocupava um continente profundamente dividido pela onda bolivariana liderada por Hugo Ch�vez.
Hoje, n�s sabemos que ele pode governar com responsabilidade e senso comum, com resultados positivos em termos de avan�o do crescimento inclusivo e sustent�vel, de combate � pobreza e � desigualdade. A esquerda, hoje, na Am�rica Latina est� mais madura e razo�vel, est� pronta para promover reformas radicais, mas sem defender uma ruptura das institui��es ou aprofundamento das divis�es sociais. N�s vemos isso com Boric, no Chile; com Fern�ndez, na Argentina; com Arce, na Bol�via.
Acho que um potencial governo Lula vai seguir nessa linha e pode se tornar uma refer�ncia para uma nova esquerda na Am�rica Latina, cujos discurso e agenda est�o mais sintonizados com as expectativas da popula��o do que 20 anos atr�s, quando o neoliberalismo ainda n�o tinha sofrido o impacto da crise financeira de 2008: redu��o da pobreza e da desigualdade, mudan�as clim�ticas, educa��o e oportunidades. Lula j� puxou essa agenda no passado, e eu estou certo de que ele a recuperaria de forma muito natural e razo�vel para o Brasil.
Mesmo com todas as incertezas na pol�tica e com a economia flertando com a recess�o, o Brasil e os principais pa�ses da Am�rica Latina est�o recebendo volumes expressivos de recursos estrangeiros. O que est� acontecendo?
Estamos vendo uma recupera��o natural ap�s o choque causado pela pandemia, ap�s uma grave interrup��o nas cadeias de valor globais e a necessidade de aumentar a oferta global em resposta � reativa��o da demanda agregada. No entanto, devemos olhar para o quadro maior, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Quantitativamente, a Cepal j� alertou que as multinacionais estrangeiras desaceleraram seus investimentos na regi�o e, se olharmos os dados dos �ltimos meses, o investimento estrangeiro direto (IED) em pa�ses como o Brasil ainda � 2/3 do n�vel pr�-pandemia e menos da metade do que era h� uma d�cada.
Do lado qualitativo, devemos olhar para onde est� indo esse investimento, pois h� uma depend�ncia excessiva dos recursos naturais e uma manifesta incapacidade de diversifica��o. Devemos tamb�m olhar para a sua origem e se esse investimento � vol�til ou n�o. O recente Panorama Econ�mico da Am�rica Latina, publicado pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE, Cepal, CAF e Uni�o Europeia sinaliza que uma recupera��o robusta e inclusiva exige maior integra��o produtiva e investimentos em setores estrat�gicos. � para l� que o investimento estrangeiro deve ir.
Como a Europa v� o Brasil hoje? H� uma cobran�a enorme em rela��o � quest�o ambiental, com amea�as de embargo a produtos brasileiros. At� que ponto as amea�as podem se tornar realidade?
Acho que a Europa est� em uma posi��o de "esperar para ver" em rela��o ao Brasil, ciente dos meses importantes que se avizinham e do ciclo pol�tico que o pa�s j� est� entrando, com a aproxima��o das elei��es. A rela��o passou por momentos mais dif�ceis, principalmente em 2019, com as fortes tens�es bilaterais entre Paris e Bras�lia, que adquiriram um tom muito pessoal entre os dois presidentes, Macron e Bolsonaro.
Mas, sem d�vida, o cen�rio global mudou, e a mudan�a de lideran�a em Washington tamb�m privou Bolsonaro de um forte aliado que alavancou em sua rela��o com Bruxelas (sede da UE). Ele podia desafiar a Europa em �reas como pol�tica ambiental e preserva��o da Amaz�nia, porque sentia que tinha o apoio do presidente Trump.
Agora, as coisas mudaram: Bolsonaro perdeu esse apoio, e a perspectiva de uma mudan�a de lideran�a no Brasil � percebida positivamente na maioria das capitais europeias. Ao mesmo tempo, a Europa tem que mostrar progressos em �reas como a ratifica��o do acordo UE-Mercosul, e n�o faz�-lo pode manchar ainda mais as rela��es bilaterais no futuro, independentemente de quem seja o pr�ximo presidente brasileiro.
Acredita na reconstru��o da imagem do Brasil no mundo?
Acredito que o Brasil pode recuperar sua posi��o no mundo, assim como a imagem de otimismo, frescor e alegria que sempre o caracterizou. L�deres v�m e v�o, mas o esp�rito de um pa�s e de seu povo � resiliente. Os �ltimos quatro anos tamb�m coincidiram com um per�odo dif�cil e obscuro para a humanidade, marcado pela pandemia.
Infelizmente, num momento em que os valores que o Brasil sempre encarnou no imagin�rio do resto do mundo eram mais necess�rios do que nunca, a lideran�a do pa�s tem projetado mensagens e valores muito preocupantes: antivacina��o, negacionismo das mudan�as clim�ticas, populismo, ataque � diversidade e �s institui��es democr�ticas...
O pa�s tem todos os elementos para recuperar sua imagem no mundo: pessoas talentosas, uma economia com for�a e potencial extraordin�rios, recursos naturais e dotes �nicos. Tem, ainda, alguns dos mais respeitados, profissionais e eficientes servi�os estrangeiros no mundo. E pouqu�ssimos pa�ses t�m uma marca global t�o facilmente reconhec�vel e percebida positivamente. S� precisa capitalizar todos esses pontos fortes.
Estamos diante de iminente guerra entre a R�ssia e a Ucr�nia. Que impactos isso pode ter sobre a economia mundial?
Estamos brincando com fogo, e as consequ�ncias de uma guerra na Ucr�nia s�o imprevis�veis. Quem sofreria mais? Obviamente, os ucranianos, que teriam uma guerra em seu solo, mas tamb�m a R�ssia, que enfrentaria os EUA e a Europa. No entanto, em �ltima an�lise, n�o se trata de quem sofre mais: em um conflito, todas as partes acabam perdendo, incluindo o resto do mundo. � claro que os efeitos na economia global seriam enormes, num momento em que est�vamos nos recuperando da pandemia. Mas eu me preocupo ainda mais com a seguran�a humana b�sica.