
Uma das falas mais criticadas de Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018 foi um discurso que ele havia feito um ano antes em um evento no Rio de Janeiro. "Eu fui num quilombo", disse Bolsonaro. "O afrodescendente mais leve l� pesava sete arrobas. Eu acho que nem para procriador ele serve mais."
A palestra, para cerca de 300 pessoas, aconteceu no Clube Hebraica, um espa�o tradicional da comunidade judaica no Rio — a entidade n�o demonstrou apoio expl�cito ao candidato em 2018, mas o espa�o dado a ele revoltou parte da comunidade, indignada com o racismo apontado nas falas do ent�o deputado.
Embora n�o tenha havido apoio institucional oficial das principais representa��es judaicas, a tentativa do bolsonarismo de se aproximar do judaismo foi ganhando evid�ncia ao longo do mandato. Al�m da afinidade de Bolsonaro com o governo de Benjamin Netanyahu em Israel, se tornou bastante comum o uso de s�mbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos.
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Tudo isso gerou incomodo e rejei��o na comunidade, segundo l�deres ouvidos pela BBC News Brasil. A preocupa��o, dizem eles, � que se fa�a uma associa��o do bolsonarismo com os judeus, sendo que parte da comunidade inclusive se op�e firmemente a Bolsonaro.
"� importante lembrar que para cada convidado dentro do clube, existiam 2 do lado de fora protestando contra a presen�a do Bolsonaro no local", afirma Daniel Annenberg, l�der judaico e vereador em S�o Paulo.
Neste ano, foi refor�ada uma articula��o de diversos l�deres e entidades tanto de direita quanto de esquerda para tentar desfazer essa imagem, demonstrar apoio � democracia e lembrar que a comunidade judaica � plural.
A Confedera��o Israelita do Brasil (Conib), principal representante pol�tica da comunidade judaica brasileira, lan�ou um manifesto em conjunto com 14 outras entidades em defesa da democracia e destacando que "a comunidade judaica brasileira n�o tem candidatos oficiais". "H� judeus de direita, de esquerda e de centro", diz a carta, e as entidades "buscam interlocu��o permanente com todos os segmentos dispostos a dialogar de forma democr�tica, respeitosa e construtiva.""Acreditamos nas institui��es democr�ticas", diz a Conib, e "recha�amos, guiados pelas normas democr�ticas, a discrimina��o, a demoniza��o ou a persegui��o de grupos religiosos, pol�ticos ou nacionais."
Diversos l�deres — e pelo menos tr�s rabinos — assinaram a carta pela democracia criada em resposta �s amea�as �s urnas e ao Supremo Tribunal Federal, feitas por Bolsonaro. A Carta �s Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democr�tico de Direito foi lida na Faculdade de Direito da USP em 11 de agosto e teve mais de um milh�o de assinaturas.
Nesta quarta-feira, o grupo Judias e Judeus pela Democracia — SP lan�ar� um manifesto em apoio a candidatura de Luiz In�cio Lula da Silva (PT), que conta com mais de mil assinaturas.

Se, em respeito � pluralidade, a Conib n�o cita diretamente de onde v�m as amea�as � democracia, ativistas, l�deres e pesquisadores judaicos n�o hesitaram em condenar Bolsonaro diretamente.
Alguns v�o al�m: acusam o governo Bolsonaro de antissemitismo, que seria "camuflado" pela proximidade com Israel. Eles dizem que, por isso, qualquer apoio a ele � incompat�vel com a comunidade judaica.
Um relat�rio lan�ado em 16 agosto pelo brasileiro Jean Goldenbaum, professor da Universidade de Hanover, na Alemanha, aponta para dezenas "semelhan�as" e "c�pias fi�is da propaganda nazifascista" feitas por "propagandistas bolsonaristas" e registra um aumento de epis�dios de antissemitismo — 104 no total — registrados nos �ltimos dois anos. O documento foi feito em conjunto com os pesquisadores Nathaniel Braia, Leana Naiman Bergel Friedman e Charles Schaffer Argelazi.
Alguns dos epis�dios de antissemitismo citados pelo relat�rio que estariam diretamente ligados a Bolsonaro chamaram bastante aten��o nos �ltimos anos.
Em janeiro de 2020, por exemplo, o ent�o Secret�rio da Cultura Roberto Alvim fez um v�deo cheio de refer�ncias a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Algumas horas depois, o secret�rio perdeu o cargo.
O relat�rio tamb�m, entre outros epis�dios, uma mensagem da Secretaria Especial de Comunica��o Social da Presid�ncia da Rep�blica (Secom), com uma constru��o pr�xima � de um slogan do nazismo, que dizia "o trabalho, a uni�o e a verdade libertar�o o Brasil". A express�o "o trabalho liberta" � conhecida por ter sido inscrita na entrada do campo de concentra��o de Auschwitz, na Pol�nia. Cerca de 1,3 milh�o de pessoas, principalmente judeus, foram assassinados pelos nazistas no local.
O relat�rio tamb�m cita o fato da fam�lia Bolsonaro ter convidado e recebido no Planalto a l�der do partido de ultradireita alem�o AFD, Beatrix von Storch, ligada ao neonazismo alem�o.

Reflexo da sociedade
� dif�cil medir o tamanho exato do apoio (ou da oposi��o) a Bolsonaro na comunidade judaica brasileira, explica � BBC News Brasil Michel Gherman, coordenador do n�cleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Embora as pesquisas de inten��o de voto incluam religi�o e etnia entre os fatores registrados dos eleitores, n�o h� uma separa��o espec�fica de como vota a comunidade judaica. E apesar da import�ncia simb�lica e institucional da comunidade, explica Gherman, estatisticamente � um grupo pequeno cuja representa��o n�o � diferenciada nas pesquisas.
E apesar do esfor�o para desassoci�-la de Bolsonaro, ainda h� nomes muito conhecidos da comunidade judaica que apoiam abertamente o presidente.
Entre eles, o empres�rio Meyer Joseph Nigri, fundador da construtora Tecnisa. Nigri � um dos empres�rios bolsonaristas que participavam do grupo que defendia "a contagem paralela de votos nas elei��es" e passaram a ser alvo de investiga��o da Pol�cia Federal sobre atos antidemocr�ticos.
Para Gherman, o apoio entre a comunidade n�o � diferente do resto da sociedade brasileira quando feito um recorte por renda, escolaridade e regi�o do pa�s. "H� tantos empres�rios apoiando dentro da comunidade quanto na sociedade como um todo."
Entre os brasileiros que votaram em tr�nsito em Tel Aviv, capital de Israel, em 2018, por exemplo, 77% dos 506 votos v�lidos foram para Bolsonaro — uma porcentagem semelhante � dos votos para o ent�o deputado no exterior como um todo, onde ele teve 71% dos votos v�lidos. No geral, Bolsonaro foi eleito presidente no segundo turno em 2018 com 55% dos votos v�lidos.

Para Gherman, no entanto, existe um "peso simb�lico" de qualquer defesa de Bolsonaro feita por um l�der judaico. "Tem um peso muito grande. Porque a sociedade vai pensar, como pode ser verdade que o governo � antissemita se ele tem apoio de um l�der da comunidade judaica?"
Gherman escreveu um texto na 41ª edi��o revista Serrote em que tamb�m diz que "o antissemitismo de Bolsonaro � um crime perfeito". Ele argumenta que o discurso pr�-Israel do bolsonarismo esconde refer�ncias "conspiracionistas e antissemitas" que cria a ideia de um "judeu imagin�rio" e visa apagar os judeus reais.
O rabino Michel Schlesinger, bacharel em direito pela USP e membro Congrega��o Israelita Paulista, afirma que, embora n�o haja medi��o de diminui��o ou aumento do apoio a Bolsonaro por pesquisas, ele v� um grande n�mero de grupos e entidades que passaram a se manifestar em defesa de certos valores — se n�o em oposi��o direta ao presidente.
Ele diz que n�o acredita que um l�der religioso deva levar as pessoas a votarem num determinado candidato. No entanto, "quando declaramos determinados valores, estamos automaticamente excluindo alguns (candidatos) e nos aproximando de outros."
"A gente � pol�tico quando fala, mas tamb�m � pol�tico quando cala", afirma o rabino, que assinou a carta pela democracia.
"Existem certas atitudes que s�o incompat�veis com valores do juda�smo. O voto judaico tem que procurar a democracia, a sustentabilidade, a defesa dos direitos humanos, da liberdade religiosa e dos direitos das minorias", diz o rabino.
A carta da Conib evita citar diretamente quais grupos est�o envolvidos nos pontos que apresenta. Se op�e � persegui��o religiosa, por exemplo, sem citar diretamente postagem da primeira-dama Michelle Bolsonaro que foi acusada de preconceito contra religi�es de matriz africana. Tamb�m n�o cita os ataques �s urnas sem provas feitos por Bolsonaro ao defender as institui��es democr�ticas ou o combate �s fake news.
A carta, lembra Daniel Bialski, vice-presidente da Conib, tamb�m "faz quest�o" de citar "atitudes da esquerda" sem citar especificamente quais seriam os pol�ticos que tiveram essas atitudes.
"Existem certos grupos que t�m feito compara��es esdr�xulas entre as a��es do governo na pandemia e o Holocausto, o que � um absurdo e um desrespeito", afirma Bialski, que tamb�m critica parte da esquerda em rela��o � sua posi��o sobre Israel. "Se tornou muito comum em setores da esquerda atacar Israel", diz o l�der. Bialski defende a pluralidade em nome da Conib, mas pessoalmente � advogado e defende diversos nomes ligados a Bolsonaro, incluindo a primeira-dama Michelle. Ele tamb�m � presidente do clube Hebraica em S�o Paulo.
A carta da Conib afirma a import�ncia dos v�nculos afetivos, culturais e religiosos dos judeus brasileiros com "a terra de seus antepassados, hoje um pa�s democr�tico, aberto, soberano, desenvolvido e plural."
"Qualquer tentativa de deslegitima��o do estado de Israel deve ser recha�ada de forma clara e imediata", afirma a entidade.
Enquanto as entidades preferem falar em valores, alguns l�deres que anteriormente defendiam Bolsonaro de forma aberta t�m preferido n�o se pronunciar em defesa do presidente.
Luiz Mairovitch, presidente do Clube Hebraica que convidou Bolsonaro em 2017 para a palestra que acabou gerando as falas sobre os quilombolas, afirma que n�o gostaria de se posicionar em rela��o a nenhum candidato.
"Estas elei��es est�o muito acaloradas", diz ele � BBC News Brasil por mensagem de celular, afirmando que deseja paz e uni�o de for�as para o Brasil. "Nosso momento atual � de polariza��o, da divis�o de dois extremos, uma era de idolatria, que na minha opini�o acaba sendo uma triste realidade para o Brasil", afirma ele, dizendo que precisamos "unir for�as para somar e reivindicar o que realmente importa.
"Afinal, acredito que o que todos n�s almejamos para as atuais e futuras gera��es � um Brasil rico em educa��o, com seguran�a, sa�de de qualidade, com uma boa economia."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62810752
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