
Por que o uso de bilh�es do or�amento federal por deputados e senadores em gastos como obras, compra de equipamentos e procedimentos de sa�de com pouca transpar�ncia acabou ficando conhecido como Or�amento Secreto?
A novidade, que come�ou em 2020, segundo ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), veio acompanhada de ind�cios de corrup��o em gastos para aquisi��o de tratores, constru��o de escolas e exames m�dicos.
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Por isso, o Or�amento Secreto virou arma de campanha dos advers�rios do presidente na elei��o. Ao ser questionado no Jornal Nacional sobre a rela��o com o Congresso e o esc�ndalo do Mensal�o em seu primeiro governo (2003 a 2006), o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT) respondeu:
"Voc� acha que o mensal�o, que tanto se falou, � mais grave do que o Or�amento Secreto? Deixa eu lhe falar uma coisa, a vida pol�tica estabelecida em regime democr�tico � a conviv�ncia democr�tica na diversidade. Nenhum presidente da Rep�blica num regime presidencialista governa se n�o estabelecer rela��o com o Congresso Nacional", disse Lula a Renata Vasconcellos, apresentadora do jornal da TV Globo.Bolsonaro tem reagido �s cr�ticas dizendo que o Or�amento Secreto � uma inven��o do Congresso.
"Or�amento Secreto: eu vetei, o Parlamento derrubou o veto. � lei. O seu partido, Lula, votou para derrubar o veto no tocante ao Or�amento Secreto. N�o tenho nada a ver com isso", disse o presidente ao responder � candidata Simone Tebet (MDB), durante debate da TV Bandeirantes com os principais concorrentes ao Pal�cio do Planalto.
E, durante debate entre os presidenci�veis na TV Globo, na noite desta quinta-feira (29/9), Bolsonaro voltou a reafirmar que n�o tem responsabilidade sobre o chamado Or�amento Secreto.
J� o candidato do partido Novo, Felipe D'Avila, descreveu o or�amento e o "mensal�o" como "mecanismos perversos" e defendeu um "governo �tico" no pa�s.
Nessa reportagem, a BBC News Brasil explica esse tema em quatro pontos: a origem do Or�amento Secreto; o papel de Bolsonaro na sua cria��o; as cr�ticas e os ind�cios de corrup��o envolvendo esses recursos; e como, segundo analistas, � poss�vel ou n�o compar�-lo ao Mensal�o. Confira a seguir.
1. Como tudo come�ou
Todo ano o Congresso aprova uma lei com a previs�o de gastos do governo federal no ano seguinte, a chamada Lei Or�ament�ria Anual (LOA).
Essa lei estabelece, por exemplo, qual ser� a verba de cada minist�rio. Parte dessas despesas � obrigat�ria, como o sal�rio dos servidores, e outra parte � discricion�ria, ou seja, o governo vai decidir em quais programas ou obras vai aplicar os recursos.
Al�m disso, uma parte do or�amento fica na m�o do Congresso. Isso n�o � novidade. H� muitos anos existem as chamadas emendas parlamentares, por meio das quais deputados e senadores destinam recursos federais para investimentos em sua base eleitoral.
O que mudou a partir do Or�amento de 2020?
Antes, o grosso dos recursos controlados pelo Congresso era usado por meio das emendas individuais. Nesse caso, os valores s�o distribu�dos igualmente entre os parlamentares e h� total transpar�ncia sobre qual deputado ou senador usou cada recurso e para qual finalidade.
Em 2022, por exemplo, o valor total das emendas individuais � R$ 9 bilh�es, sendo R$ 17,6 milh�es para cada parlamentar.
No entanto, em 2019, durante a elabora��o da Lei Or�ament�ria de 2020, o Congresso decidiu ampliar em grande volume um outro tipo de emenda parlamentar, as chamadas emendas de relator-geral.
Essas emendas j� existiam, mas eram usadas apenas para ajustes de pequena monta no Or�amento. Em 2019, por�m, o Congresso decidiu alocar R$ 30 bilh�es para as emendas de relator-geral, retirando uma fatia grande do or�amento que era gerida pelos minist�rios e passando para o Parlamento.
Relator � o parlamentar respons�vel por fazer a vers�o final da proposta de Lei Or�ament�ria que � votada pelo Congresso, ap�s o governo enviar uma proposta inicial. Essa vers�o final � elaborada em negocia��o com o Pal�cio do Planalto e as lideran�as dos partidos que atuam no Parlamento.

Diferentemente das emendas individuais, em que cada congressista escolhe com autonomia para onde vai o dinheiro, no caso das emendas do relator � esse parlamentar que centraliza as demandas dos parlamentares e envia para os minist�rios executarem os gastos, numa negocia��o que passa pelos principais caciques do Congresso, em especial os presidentes da C�mara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
No or�amento de 2022, o relator � o deputado Hugo Leal, do PSD do Rio de Janeiro.
� por isso que Lula tem chamado Bolsonaro de "bobo da corte", inferindo que ele j� n�o tem poder sobre o Or�amento e quem manda nos gastos � o Congresso.
2. Qual o papel de Bolsonaro nessa hist�ria?
O presidente tem dito que vetou a amplia��o de recursos para as emendas de relator quando sancionou a Lei Or�ament�ria de 2020. Isso realmente ocorreu. No entanto, quando h� um veto do presidente, o Parlamento pode depois derrubar esse veto em uma nova vota��o.
Diante desse risco, o governo aceitou negociar com os parlamentares e o acordo final foi a divis�o dos recursos. Com isso, em mar�o de 2020, o Congresso manteve o veto de Bolsonaro, mas o Pal�cio do Planalto enviou tr�s projetos de lei mantendo cerca de metade dos R$ 30 bilh�es sob controle do relator do Or�amento.
Segundo parlamentares, esse acordo foi feito nos bastidores com o ent�o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que hoje comanda outra pasta, a Secretaria-Geral da Presid�ncia da Rep�blica.
Publicamente, Bolsonaro negava ter negociado com o Congresso, o que irritou muitos parlamentares.
"N�s vamos manter o veto 52 (o veto aos R$ 30 bilh�es para emendas de relator), s� que nos tr�s PLNs (projetos de lei), o senhor Presidente da Rep�blica, em v�rios dispositivos, est� mandando para c� aquilo que ele vetou. Ele fala uma coisa publicamente, e manda para o Congresso Nacional aquilo que ele condena", discursou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no dia da vota��o.
Depois disso, os bilh�es em emendas do relator n�o sa�ram mais do Or�amento federal. Neste ano, s�o R$ 16,5 bilh�es. Para 2023, o pr�prio governo sugere R$ 19,4 bilh�es. O valor est� na proposta de Lei de Diretrizes Or�ament�rias (LDO) para o pr�ximo ano enviada por Bolsonaro ao Congresso no dia 31 de agosto.
O contexto pol�tico por tr�s do Or�amento Federal
E o que explica o Congresso ter conseguido controlar uma fatia t�o grande do or�amento? Bolsonaro se elegeu em 2018 com um discurso avesso � pol�tica tradicional. Ele atacava os partidos do chamado Centr�o e dizia que n�o faria indica��es pol�ticas para os minist�rios.
No primeiro ano do seu governo, ele manteve uma postura agressiva em rela��o ao Congresso, mas a partir de 2020 isso come�ou a mudar. Naquele ano, Bolsonaro se viu acuado por dezenas de pedidos de impeachment e pelo avan�o das investiga��es sobre o suposto esquema de rachadinha (desvio de recursos) que teria sido operado no antigo gabinete de deputado estadual do hoje senador Fl�vio Bolsonaro.
A situa��o ficou especialmente delicada para a fam�lia presidencial em junho de 2020, quando o ex-assessor de Fl�vio, Fabr�cio Queiroz, foi preso. Ele � acusado de ser o operador do suposto esquema de rachadinha, em que funcion�rios fantasmas do gabinete do filho do presidente, ent�o deputado estadual no Rio de Janeiro, devolviam parte de seus sal�rios.
Foi nesse contexto que Bolsonaro passou de cr�tico a aliado do Centr�o, um grupo de partidos que costuma apoiar qualquer governo, desde que tenha acesso a verbas e cargos federais.
O presidente precisava de apoio no Congresso para evitar um processo de impeachment e aprovar suas propostas, e o Or�amento Secreto se tornou um elemento fundamental dessa equa��o.

Recursos das emendas de relator teriam sido usados em troca de votos para eleger o deputado Arthur Lira, do PP de Alagoas, como presidente da C�mara, em fevereiro de 2021. Em entrevista ao site The Intercept Brasil, o deputado Delegado Waldir, do Uni�o Brasil de Goi�s, disse que recebeu a promessa de R$ 10 milh�es, mas que depois p�de usar apenas uma pequena parte por ter rompido com o governo.
Lira n�o comentou as den�ncias na �poca e, procurado pela BBC News Brasil, n�o quis se manifestar agora.
Para o especialista em contas p�blicas Leonardo Ribeiro, consultor do Senado, o chamado Or�amento Secreto foi criado pelo Congresso em rea��o � decis�o inicial de Bolsonaro de n�o aceitar indica��es pol�ticas para minist�rios que gerenciam gastos importantes em todo o pa�s.
Na avalia��o de Ribeiro, como a classe pol�tica perdeu a gest�o de parte do or�amento federal por meio do controle dos minist�rios, lideran�as do Congresso decidiram ent�o trazer esse or�amento para dentro do Parlamento.
Ele lembra que no sistema brasileiro, conhecido como presidencialismo de coaliz�o, o presidente costuma formar sua base no Congresso negociando acesso a cargos e verbas federais. Ao romper com essa l�gica no in�cio do seu governo, Bolsonaro acabou provocando essa rea��o do Congresso, acredita o especialista.
Depois, por�m, o presidente acabou aceitando indica��es pol�ticas para diversos cargos de primeiro e segundo escal�o. O senador Ciro Nogueira, por exemplo, do PP do Piau�, comanda uma das pastas mais importantes, a Casa Civil.
Para Ribeiro, o governo que quiser reduzir o or�amento alocado nas emendas de relator, necessariamente ter� que nomear ministros indicados por partidos.
"O pr�ximo presidente possivelmente vai ter que trazer mais pol�ticos pra Esplanada (de Minist�rios) se tentar diminuir esse or�amento, porque o Congresso, necessariamente, vai participar da gest�o, ou via emendas ou via minist�rios. Tentar sair dessas dessa equa��o n�o funciona no Brasil. A gente teria que ter um outro sistema pol�tico, um outro arranjo institucional", analisa Ribeiro.
3. As cr�ticas e ind�cios de corrup��o
As principais cr�ticas �s emendas do relator s�o a falta de transpar�ncia e de planejamento nos uso desses recursos. Segundo especialistas, isso acaba dificultando a fiscaliza��o e, como consequ�ncia, facilitando esquemas de corrup��o.
O Or�amento Secreto n�o tem nem tr�s anos de dura��o e j� houve uma s�rie de den�ncias reveladas pela imprensa brasileira, em especial pelo jornal O Estado de S. Paulo, primeiro ve�culo a destrinchar o funcionamento das emendas de relator.
Em reportagem de maio de 2021, por exemplo, o jornal revelou que ao menos R$ 271,8 milh�es foram usados para aquisi��o de tratores, retroescavadeiras e equipamentos agr�colas, em geral por valores bem acima dos previstos na tabela de refer�ncia para compras do governo, num ind�cio de compras superfaturadas.
As m�quinas s�o destinadas a prefeituras para auxiliar nas obras em estradas nas �reas rurais e vias urbanas e nos projetos de cooperativas da agricultura familiar.
J� uma reportagem da revista Piau� mostrou como munic�pios do Maranh�o inflaram artificialmente os n�meros de atendimento pelo SUS para receber uma fatia maior das emendas do relator. No final de agosto, a Justi�a Federal do Maranh�o bloqueou parte desse repasse de verbas.
Ap�s o Or�amento Secreto ser questionado no Supremo Tribunal Federal, a Corte determinou que o Congresso desse total transpar�ncia �s emendas do relator. Em resposta, a Comiss�o Mista de Or�amento criou um portal em que os pedidos passaram a ser registrados. Mas, para especialistas em transpar�ncia, a ferramenta ainda � insuficiente.
Um dos problemas apontados � que � poss�vel inserir como autor do pedido n�o apenas nomes de parlamentares, mas tamb�m pessoas, entidades e �rg�os de fora do Congresso. A organiza��o Contas Abertas fez um levantamento dos dados dispon�veis e encontrou uma s�rie de inconsist�ncias.
"Dentre os R$ 12,3 bilh�es das indica��es dos 'autores', cerca de R$ 4 bilh�es, ou seja um ter�o das indica��es, s�o atribu�das a 'usu�rios externos'. Dentre os usu�rios externos, existe um classificado simplesmente como 'assinante', que indicou R$ 23,6 milh�es em emendas de relator", exemplificou o economista Gil Castello Branco, diretor da organiza��o Contas Abertas, em resposta por escrito � reportagem.
Outro problema, acrescenta Castello Branco, � que esses dados continuam fora dos sistemas que permitem fiscalizar melhor os gastos do governo federal, como Siga Brasil e Portal da Transpar�ncia.
Para al�m das den�ncias de corrup��o, os especialistas consideram grave a falta de planejamento no uso desses recursos. A distribui��o � feita sem crit�rios objetivos e, embora alguns parlamentares de oposi��o tamb�m tenham tido acesso a parte das emendas de relator, o grosso do dinheiro costuma ir para a base governista.
Na pr�tica, cidades que t�m maior car�ncia para receber algum investimento em sa�de e educa��o, por exemplo, acabam sendo preteridas em favor de outras em que determinados parlamentares t�m mais votos, explicou � reportagem a procuradora do Minist�rio P�blico de Contas do Estado de S�o Paulo �lida Graziane.
"O Or�amento Secreto balcaniza, pulveriza o dinheiro p�blico, quebrando a racionalidade do planejamento de cada pol�tica p�blica, o que s� os minist�rios conseguem fazer em �mbito nacional, porque a� a concep��o da pol�tica p�blica ela � concentrada em quem tem capacidade de planejar o territ�rio inteiro do pa�s, n�o apenas atender � base eleitoral de um determinado parlamentar", disse Graziane.
"A opacidade e a falta de crit�rios t�cnicos realmente potencializam em muito o puro e simples desvio de recursos p�blicos, o enriquecimento il�cito, em �ltima inst�ncia, conjugado com estrat�gias de lavagem de dinheiro", refor�ou a procuradora de Contas.
Castello Branco tem a mesma leitura. "Os dados mostram que os recursos bilion�rios s�o distribu�dos sem qualquer crit�rio t�cnico ou par�metro socioecon�mico, o que distorce as pol�ticas p�blicas e amplia as desigualdades regionais e municipais", ressaltou.
A BBC News Brasil questionou a Secretaria de Comunica��o da Presid�ncia da Rep�blica e as assessorias de Rodrigo Pacheco e Arthur Lira sobre as cr�ticas �s emendas do relator, mas os tr�s optaram por n�o se manifestar.
Procurado, o presidente da Comiss�o Mista de Or�amento (CMO), deputado federal Celso Sabino (Uni�o-PA), disse que retornaria � reportagem, mas n�o o fez at� a publica��o.
4. Mensal�o x Or�amento Secreto
Tanto o Or�amento Secreto quanto o Mensal�o serviram para que o Pal�cio do Planalto constru�sse uma base de apoio no Congresso. Mas, segundo especialistas, h� diferen�as importantes entre eles.
No caso do Mensal�o, o Minist�rio P�blico concluiu em 2012 que foram desviados ao menos R$ 101 milh�es, por meio de fraudes envolvendo contratos de publicidade de �rg�os p�blicos. O STF condenou integrantes da c�pula do PT por entender que esses recursos serviram para o pagamento de "mesadas" a parlamentares da base do governo.
Para a procuradora de Contas �lida Graziane, o Or�amento Secreto se assemelha a outro esc�ndalo de corrup��o, revelado em 1993 e conhecido como An�es do Or�amento.
Naquele caso, parlamentares que comandavam a Comiss�o de Or�amento desviavam recursos de emendas em favor de entidades de assist�ncia social criadas por eles mesmos. Havia tamb�m emendas para obras superfaturadas em troca de propina paga por empreiteiras.
"O mensal�o em si n�o � t�o pr�ximo (do Or�amento Secreto) porque se adotava a estrat�gia de entregar (o comando de) entidades da administra��o indireta para algum n�vel de administra��o de parlamentares que indicavam (pessoas para esses cargos) e a� eles distribuiriam valores em espec�fico para os parlamentares. E, mesmo assim, aquilo que se desviou no �mbito do mensal�o, (era) proporcionalmente muito menor do que o Or�amento Secreto", nota Graziane.
J� o consultor do Senado Leonardo Ribeiro destaca outra diferen�a. Na sua avalia��o, embora haja problemas nas emendas do relator, elas foram criadas dentro dos mecanismos fiscais previstos na Constitui��o e nas leis or�ament�rias, que permitem ao Congresso dispor de emendas parlamentares. J� o Mensal�o, ressalta ele, era algo � margem da lei.
"Voc� pode at� criticar o RP9 (c�digo que identifica as emendas de relator no Or�amento), mas ele est� dentro de um processo regulado. Voc� pode at� aperfei�oar a regulamenta��o, e deve, no sentido de qualificar o Congresso e deixar essa dota��o mais eficiente. O Mensal�o n�o estava num arranjo regulado. Um pouco complicado comparar os dois", afirma Ribeiro.
- Este texto foi publicado em http://bbc.co.uk/portuguese/brasil-62792795
*Esta reportagem foi atualizada �s 7h30 hor�rio de Bras�lia em 30/9
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