O desempenho acima do esperado no primeiro turno da elei��o de 2022 do presidente Jair Bolsonaro na campanha de reelei��o e de v�rios candidatos do bolsonarismo para o Congresso demonstrou resson�ncia do pensamento conservador em camadas bem distintas da sociedade.
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Bolsonaro, candidato do PL, obteve 43,2% dos votos v�lidos ou 51 milh�es de votos, um resultado que foi significativamente acima do estimado por pesquisas de opini�o durante a corrida eleitoral.
Apesar de den�ncias de corrup��o, de n�meros ruins na economia e de uma criticada gest�o da pandemia, o atual presidente mostrou resili�ncia pol�tica e eleitoral e vai agora para o segundo turno com Luiz In�cio Lula da Silva (PT).Os pesquisadores Fabio Baldaia e Tiago Medeiros Ara�jo, do Instituto Federal da Bahia, desenvolvem — ao lado dos tamb�m pesquisadores Sinval Silva de Ara�jo e Rodrigo Ornelas — estudos sobre como os valores do pensamento bolsonarista se enraizaram com bastante apelo em amplos setores do pa�s.
Eles afirmam que o bolsonarismo t�m conseguido dialogar com novas camadas populares — de evang�licos a trabalhadores de aplicativos — e com o "Brasil profundo" do interior do pa�s com uma efici�ncia maior do que a esquerda em sua mensagem.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista com os pesquisadores:
BBC News Brasil - O que os resultados do domingo falam sobre o perfil pol�tico do brasileiro? Sem desconsiderar os mais de 57 milh�es de votos que Lula recebeu, � poss�vel falar de uma "ess�ncia conservadora" em parte significativa da popula��o brasileira?
F�bio Baldaia - A hip�tese que a gente trabalha � de que existem elementos de longa dura��o na forma de ser brasileira que explicam a ascens�o e a resili�ncia pol�tica de Bolsonaro mesmo ap�s a pandemia e uma gest�o n�o exitosa da economia nesse per�odo. Eu n�o diria que h� uma ess�ncia conservadora no brasileiro, mas sim elementos daquilo que a gente chama de "Brasil profundo" que podem ser traduzidos como uma ideia de conservadorismo.
S�o elementos relacionados � manuten��o da ordem, � fam�lia, a uma certa vis�o da seguran�a p�blica que ainda est�o no Brasil com bastante for�a, por isso a ida de Bolsonaro para o segundo turno e a elei��o de muitas figuras apoiadas por ele para o Congresso.
Tiago Medeiros - H� sem d�vida esse apre�o pelo lugar da fam�lia como garantidora e mantenedora da estabilidade no mundo. E h� a ideia, tamb�m associada diretamente � fam�lia, de que a propriedade � algo conquistado pelo indiv�duo e deve ser garantido ao indiv�duo. Ent�o toda interven��o estatal pode representar algum tipo de amea�a a isso.
BBC News Brasil - E como Bolsonaro conseguiu ser a figura que encampa esses elementos?
Baldaia - Nos setores de expans�o do agroneg�cio no Centro-Oeste e no Norte, especialmente em regi�es de desmatamento e de garimpo, existe uma ideia de que o desbravamento � regrado pelo Estado, de que o Estado atrapalha e voc� deve agir com malandragem, desviando das regras para produzir. � um pouco essa a figura de Bolsonaro.
Qual foi o discurso dele na pandemia? "A gente deve encarar a pandemia de peito aberto. Vai trabalhar e enfrentar o que acontecer". E � tamb�m o discurso de conservadorismo na seguran�a p�blica, de que deve dar a autonomia operacional ao policial para poder fazer aquilo que est� ao alcance das m�os, matar quando julgar necess�rio. Exalta a liberdade, a autonomia individual, mas n�o � o liberalismo � francesa, � inglesa. � de resolver as coisas. � uma ideia de simplismo que a gente est� desenvolvendo nos nossos textos. Bolsonaro representa sempre uma resposta simples a problemas que s�o complexos.
E ele d� coes�o ao conservadorismo brasileiro ao dizer que os intelectuais, a elite universit�ria e a imprensa, na verdade, dificultam as coisas, atrapalham. Bolsonaro representa aquele cara que bate na mesa de maneira agressiva para resolver. Passa por isso o discurso do imbroch�vel no primeiro turno.
BBC News Brasil - Em setores vulner�veis economicamente no Brasil, muitas vezes a fam�lia acaba sendo um dos poucos elementos de apoio. A direita e o bolsonarismo praticamente monopolizam o discurso sobre o tema. Por que a esquerda tem dificuldade de articular um discurso pr�prio sobre fam�lia?
Medeiros - A minha hip�tese � de que a esquerda mundial, n�o s� no Brasil, mas no Ocidente, ainda est� presa a conceitos do Maio de 1968 na Fran�a. Foi quando o conservadorismo ficou associado a estruturas fixas e dominantes da sociedade ocidental, que deveriam ser combatidas por seu conte�do e sua simbologia, e a fam�lia era um desses n�cleos.
Baldaia - N�o sei se em algum momento houve o interesse de algum grande movimento de esquerda no mundo ocidental em oferecer um discurso sobre a fam�lia. O que apareceu foram pol�ticas muito justas no sentido de garantia de direitos civis, de inser��o na sociedade e de representatividade, por exemplo da popula��o LGBT, mas isso n�o apareceu como algo que alargasse o conceito de fam�lia.
Encaixar um discurso sobre a fam�lia � reconhecer que ela � um modo de organizar a sociedade mas que pode ser reconfigurada. N�o me parece que h� uma preocupa��o central [da esquerda] em apresentar as coisas dessa maneira, de que existem pessoas de maneiras distintas dentro da fam�lia, de arranjos diferentes, mas que isso n�o vai abalar o la�o de afeto, o la�o de orgulho, o la�o de perman�ncia da fam�lia.
A direita tamb�m trabalha bem o conceito porque trabalha com uma ideia fechada do n�cleo familiar.

BBC News Brasil - O bolsonarismo tem conseguido falar com algumas camadas sociais menos favorecidas de forma mais eficiente que a esquerda?
Baldaia - A gente viu uma grande coaliz�o pr�-Lula, de acad�micos, artistas, que deu at� uma impress�o de vit�ria no primeiro turno. Mas, pelos resultados da elei��o de domingo, percebeu-se que isso n�o se comunicava diretamente com a base das massas. A gente n�o tem 43% de elite no Brasil.
H� um distanciamento do discurso da esquerda com essa base social que envolve a religiosidade popular, que envolve o "se virar" na vida: o motoboy, a pessoa que roda Uber, o vendedor de hot dog ou a baiana do acaraj�, aquele que tem que se virar para pagar as contas.
Me parece que h� uma dificuldade de lidar com um novo de mercado de trabalho, com menos carteira assinada, com uma classe trabalhadora das plataformas, mais inst�vel, e o mundo de uma sociedade que n�o � cat�lica. O Brasil est� deixando de ser um pa�s cat�lico.
Acho que esse segundo turno deu um choque de realidade de que h� uma grande bolha, de que essa grande coaliza��o n�o est� necessariamente falando com as camadas populares e o interior do Brasil. Me parece prevalecer na esquerda a ideia de culpabilizar. Algo como "olha, eu estou levando a verdade para voc�s. Estou apresentando um discurso ilustrado. Voc�s n�o est�o aceitando, a culpa � de voc�s".
BBC News Brasil - Quais s�o as perspectivas para os pr�ximos anos do bolsonarismo depois do segundo turno?
Baldaia - A revers�o de 6 milh�es de votos, que foi a diferen�a entre Lula e Bolsonaro, � muito dif�cil de acontecer. Uma reviravolta � poss�vel, mas eu apostaria numa elei��o apertada de Lula e que ele vai ter que trabalhar com muitas concess�es no Parlamento para conseguir o m�nimo de governabilidade.
N�o penso que vai ser nem de longe um governo de esquerda. Vai ser um governo de composi��o, de retalhos, de recriar minist�rio para poder fazer a distribui��o de cargos. Ent�o vai ser um governo bem complicado, com risco de impeachment o tempo todo j� que ele n�o vai ter maioria no Senado e sim uma oposi��o numerosa. H� o risco de ter escolhas de ministro do Supremo barradas pelos senadores, o que representaria uma grave crise.
E socialmente o bolsonarismo estar� forte e vivo nos Estados e nos munic�pios. Enquanto constru��o ideol�gica, ele � muito poderoso e vai ser uma oposi��o muito forte, jogando no terreno dele: o bolsonarismo antissist�mico, como oposi��o, vai "jogar em casa".
Medeiros - N�s achamos que o bolsonarismo n�o � um fen�meno estritamente pol�tico, diferente do lulismo, e sim um fen�meno sociocultural. Bolsonaro aparece como aquele que empresta o nome para agregar uma s�rie de valores, representa��es e pr�ticas que estavam dispersos na cultura e que conseguiram a centralidade e unifica��o na figura dele.
Unificados em uma identidade com um certo orgulho, um certo vigor e agora at� com a mem�ria de ter estado no poder. V�o estar nas pr�ximas elei��es e no nosso cotidiano. Ou a gente aprende a lidar, a dialogar e a contornar as contradi��es desse fen�meno ou a gente vai ficar sempre sob esse rev�s polarizador e constante que s� tem ajudado a sepultar o pa�s.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63126644
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