
O governo do presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva, que come�a em 1º de janeiro, pode anular medidas diplom�ticas tomadas pela gest�o de Jair Bolsonaro que, nos �ltimos anos, facilitaram a deporta��o de brasileiros que atravessam a fronteira dos Estados Unidos com o M�xico irregularmente.
� o que dizem fontes especializadas em pol�tica externa ouvidas pela BBC News Brasil envolvidas na transi��o de governo e que devem assumir posi��es de relevo na nova gest�o.
Entre outubro de 2019 e novembro de 2022, 7.549 brasileiros que entraram nos EUA sem vistos foram deportados em 80 voos fretados pelos americanos com destino final no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais.
Os voos fretados, autorizados pelo Brasil em 2019, s�o alvos de in�meras den�ncias de maus-tratos e abusos cometidos contra os deportados, que costumam ter os p�s e as m�os algemados durante toda a viagem. At� mesmo um menor de idade brasileiro j� ficou preso a algemas em um desses voos, o que provocou protestos verbais do Itamaraty junto ao Departamento de Estado americano.
"Eu n�o estudei atentamente essas medidas, mas, evidentemente, o governo do presidente Lula, como fez no passado, vai revisar e, se necess�rio, modificar ou anular, cancelar, revogar as medidas que sejam contr�rias aos interesses dos cidad�os brasileiros. Como ser� feito isso � um detalhe que eu n�o tenho como responder agora", afirmou � BBC News Brasil o ex-chanceler Celso Amorim, que assessora o presidente eleito Lula no tema.
Auxiliares de Lula garantem que esse ser� um dos temas que o presidente eleito deve levar � mesa quando tiver sua primeira conversa de trabalho com o colega americano Joe Biden.
A revis�o dessas regras, no entanto, poder� criar um dos primeiros espinhos na rela��o at� agora positiva com o governo do democrata — j� que a quest�o migrat�ria � um dos assuntos mais delicados da pol�tica dom�stica dos EUA e um dos pontos fr�geis da gest�o Biden.
Trump 'cerrou os punhos'
O n�mero de brasileiros que se arriscam na travessia terrestre entre M�xico e EUA deu um salto nos �ltimos anos, em meio a uma crise de milh�es de migrantes que se avolumaram na fronteira americana sul neste mesmo per�odo.Ao todo, mais de 53,4 mil brasileiros foram localizados pelo servi�o migrat�rio na fronteira Sul dos EUA no ano fiscal de 2022 (encerrado em setembro passado) e 56,9 mil, em 2021, segundo o servi�o de Prote��o das Alf�ndegas e Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em ingl�s).
Estes s�o os n�meros mais altos da s�rie hist�rica desde 2007. De acordo com o soci�logo Gustavo Dias, que estuda as comunidades mineiras de onde saem boa parte dos jovens e adultos que decidem tentar entrar nos EUA sem visto e por via terrestre, a principal motiva��o desses migrantes � a busca por oportunidades de ascens�o econ�mica, que essas pessoas se desiludiram de alcan�ar no Brasil.
"O governo Bolsonaro talvez seja um caso �nico no mundo de uma gest�o que atua para dificultar a mobilidade de uma popula��o que ele ajuda a expulsar do pa�s", afirma Dias, em refer�ncia �s medidas de facilita��o de exporta��o.
Desde outubro de 2019, quando o republicano Donald Trump era ainda o presidente dos Estados Unidos, o Brasil passou a concordar com o envio de dois voos mensais - fretados pelos americanos - para repatriar brasileiros.
Excepcionalmente, os EUA chegaram a enviar at� tr�s voos em um mesmo m�s. Na pr�tica, isso resultou em uma devolu��o m�dia de 204 brasileiros a cada 30 dias desde ent�o.
Segundo relataram � BBC News Brasil tr�s diplomatas brasileiros com conhecimento das negocia��es, o aceite para o envio de voos americanos com brasileiros ao Brasil veio depois que a gest�o Trump "cerrou os punhos".

Considerado o maior aliado internacional de Bolsonaro, Trump comandou uma das pol�ticas mais duras contra imigrantes da hist�ria dos EUA, que incluiu at� mesmo a constru��o de um muro em trechos da fronteira com o M�xico.
Ao Itamaraty, ent�o comandado pelo chanceler Ernesto Ara�jo, a gest�o Trump disse que o Brasil fazia parte de uma lista de pa�ses "pouco cooperativos" do Departamento de Seguran�a Interno (DHS, na sigla em ingl�s), porque n�o facilitava a deporta��o de nacionais que chegavam aos EUA.
E fez entender que isso afetaria o estreitamento de la�os que o governo Bolsonaro buscava como prioridade. A negocia��o foi fundamental para que o Brasil voltasse a autorizar os voos fretados dos EUA, que n�o aconteciam nesses termos desde 2006.
Entre 2006 e 2019 - salvo em casos negociados especificamente - repatria��es dependiam da disponibilidade de vagas em voos de carreira entre os dois pa�ses.
Como havia poucas vagas nas aeronaves de companhias a�reas comerciais, era relativamente comum que os americanos vissem estourar o prazo para que pudessem manter legalmente o migrante brasileiro detido em algum dos seus centros de deten��o.
Assim, os brasileiros acabavam liberados em territ�rio americano, com uma notifica��o para comparecer em alguma corte migrat�ria em alguma data espec�fica. Parte desses migrantes jamais voltava a se apresentar �s autoridades. Entre os agentes de migra��o dos EUA, a medida ganhou o apelido ir�nico de "notifica��o para desaparecer".
Mas os voos fretados n�o foram a �nica mudan�a feita pelo governo Bolsonaro para facilitar a deporta��o de brasileiros. Migrantes indocumentados costumam ter como estrat�gia se desfazer de seus documentos de identidade, para dificultar ou retardar o processo de devolu��o a seus pa�ses e tentar encontrar formas de n�o serem expulsos.
Sob Bolsonaro, os consulados brasileiros tamb�m passaram a expedir, a pedido de autoridades americanas e at� mesmo contra a vontade dos cidad�os brasileiros, atestados de nacionalidade, para comprovar que se tratavam de brasileiros. E a permitir a entrada de deportados ao Brasil apenas com este tipo de documento.
Parte dos deportados brasileiros tamb�m afirma n�o ter sido atendido pelos americanos ao pedir assist�ncia consular antes da deporta��o, o que � um direito dos migrantes. No ano passado, os EUA chegaram a deportar dezenas de crian�as brasileiras filhas de haitianos para o Haiti sem o conhecimento de autoridades do Brasil, conforme mostrou a BBC News Brasil na ocasi�o.
"Um brasileiro ilegalmente fora do pa�s � problema do Brasil, isso � vergonha nossa, para a gente", afirmou o deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro, em visita a Washington em mar�o de 2019, justificando as decis�es que o governo j� come�ava a tomar sobre o tema.

No mesmo per�odo, a gest�o Bolsonaro extinguiu a necessidade de vistos para a entrada de americanos no Brasil - em desacordo com o princ�pio da reciprocidade adotado at� ent�o pela diplomacia brasileira.
"Quantos americanos v�o vir morar ilegalmente no Brasil, aproveitar essa brecha para entrar aqui como turista e passar a viver ilegalmente? Agora vamos fazer a pergunta contr�ria: se os EUA permitirem que o brasileiro entre l� sem visto, quantos brasileiros v�o para os Estados Unidos se passando por turistas e v�o passar a viver ilegalmente aqui?", disse Eduardo Bolsonaro, na mesma ocasi�o.
O fim dos vistos para brasileiros � um pedido antigo do Brasil, mas n�o h� qualquer previs�o para que isso ocorra atualmente.
Bolsonaro tamb�m desmontou a pol�tica estabelecida em decreto de Lula em 2010 para os migrantes brasileiros, com base nos princ�pios de n�o discrimina��o e garantia dos direitos humanos previstos na Conven��o de Viena, da qual o Brasil � signat�rio. E desmantelou o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE), que servia como interface entre as comunidades e o governo.
"Olha, o que eu falar aqui vai dar pol�mica, t� certo? Acho que, em qualquer pa�s, as suas leis t�m que ser respeitadas, n�? Qualquer pa�s do mundo onde pessoas est�o l� de forma clandestina, � um direito daquele chefe de Estado, usando da lei, devolver esses nacionais. Lamento que os brasileiros foram buscar novas oportunidades l� fora e voltam para c� deportados. Lamento, mas temos que respeitar a soberania dos outros pa�ses", disse o presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020, ao justificar as medidas.
Biden deportou mais brasileiros que Trump
Sob Bolsonaro, o Itamaraty tem apresentado reclama��es constantes ao governo dos EUA em rela��o ao tratamento dado aos brasileiros devolvidos - especialmente ao uso de algemas de p�s e m�os, que for�am a posi��o curvada das pessoas por horas seguidas.
Os americanos afirmam que trabalham em uma solu��o que seja customizada para o Brasil, j� que n�o quer abrir o precedente para que outros pa�ses da regi�o tamb�m possam contestar o uso de algemas em seus cidad�os.
"Ainda estamos tentando fazer um diagn�stico, mas o que percebemos � que esse governo s� olhava pro migrante quando era pra fazer com�cio. Mas n�o cuidou, e permitir que o brasileiro seja algemado e enfiado de volta no avi�o n�o s�o medidas condizentes com uma pol�tica externa minimamente razo�vel", afirmou um integrante da equipe de transi��o sob condi��o de anonimato por n�o ter autoriza��o para falar em p�blico sobre o tema. A declara��o � uma refer�ncia � motociata feita por Bolsonaro em Orlando em junho. A maioria da comunidade brasileira nos EUA votou em Bolsonaro.
Em tese, bastaria uma decis�o unilateral de Bras�lia para que os voos americanos fossem vetados de adentrar o espa�o a�reo brasileiro e para que os consulados interrompessem a emiss�o de atestados de nacionalidade.
A decis�o, no entanto, � politicamente sens�vel e divide at� mesmo os diplomatas do Brasil - que reconhecem o direito dos americanos de escolher a quem recebem em seu territ�rio.

E embora as medidas tenham sido negociadas por Bolsonaro com a gest�o Trump, quem mais se beneficiou delas foi Biden. No per�odo do republicano, segundo o estudo de Dias, apenas 985 brasileiros foram deportados, em 22 voos. J� com Biden na Casa Branca, foram 6.564 devolvidos em 58 voos.
"Uma coisa � falar sobre recha�ar essas regras em 2010, quando quase n�o entrava brasileiro nos EUA e n�o havia a press�o que tem hoje dos americanos para liberar documento e mandar de volta. Outra coisa � falar disso agora, a realidade mudou", disse � BBC News Brasil um embaixador que acompanha a quest�o consular Brasil-EUA.
Por press�o dos americanos, os mexicanos recentemente voltaram a exigir visto para a entrada de brasileiros no pa�s. � uma tentativa de coibir o fluxo de cidad�os do Brasil na fronteira com os EUA.
O time de Lula afirma que tentar� convencer os americanos de que a repress�o a quem chega na fronteira n�o � o caminho, e sim atuar nas causas que levam esses latinos a partir de seus pa�ses. Um discurso que o pr�prio Biden defendeu na campanha, mas que se mostrou pouco eficiente em seu governo, quando ele lan�ou m�o de expedientes semelhantes aos de Trump pra tentar controlar a onda migrat�ria.
Em negocia��o para que os americanos fa�am aportes de dinheiro para a preserva��o da Amaz�nia, apoiem uma candidatura do Brasil numa eventual reforma do Conselho de Seguran�a da ONU e tentando reatar uma rela��o com os EUA abalada pelas tens�es entre Biden e Bolsonaro, Lula ter� que decidir se enfrentar� os custos pol�ticos que as mudan�as para dificultar a deporta��o de brasileiros poder�o acarretar.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63684694