Bolsonaro foi derrotado, mas o bolsonarismo n�o. Esta � a avalia��o do psicanalista Christian Dunker, professor titular do Departamento de Psicologia Cl�nica do Instituto de Psicologia da Universidade de S�o Paulo (USP) e escritor. “A gente precisa olhar para o bolsonarismo como uma face do Brasil”, afirma. Na an�lise de Dunker, apesar da vit�ria de Lula, o bolsonarismo vai persistir.
“Inclusive, a esquerda precisa reconhecer que isso � um movimento popular. � o movimento contrarrevolucion�rio que se apropriou de ret�ricas da esquerda, que conseguiu grande capitalidade em v�rios lugares no Brasil”, diz o professor.
O discurso ao qual o professor se refere se apoia no neoliberalismo e em um fundamentalismo religioso, que explica, por exemplo, o apoio massivo dos evang�licos ao bolsonarismo. “O Brasil criou um fundamentalismo. N�o � o Iraque com o homem- bomba, mas s�o esses discursos que est�o explodindo institui��es, est�o fazendo pastores ordenarem voto para um ou para outro como se fosse uma madra�a, no pior sentido do preconceito”, afirma.
Na outra ponta dessa corda, est�o pessoas que recebem da Igreja o apoio que n�o vem do Estado. “Cerca de 60% dos evang�licos, neopentecostais da terceira gera��o s�o pobres, 61% s�o mulheres e 62% s�o negros. Mas, ent�o, � essa gente que voc� quer incriminar? N�o, pera a�. Temos que fazer um filtro e dizer: ‘olha, aqui tem um processo que est� espreitando o sofrimento. Um processo que pega o sofrimento real das pessoas, oferece algo em troca e instrumentaliza em um del�rio pol�tico’”, explica. Confira a �ntegra da entrevista com o psicanalista.

Como a psican�lise explica o comportamento dessas pessoas que ainda est�o acampadas nas portas dos quart�is, esperando interven��o militar? Isso � demonstra��o de algum tipo de ilus�o?
� sempre dif�cil analisar os comportamentos individuais, porque cada um teve essa escolha, mas a gente pode recorrer a um artif�cio que � o seguinte, existe uma s�ndrome que se chama transtorno da loucura compartilhada (Folie � deux). Onde voc� pode falar de formas de transtornos que n�o s�o individuais, s�o coletivos.
O (Sigmund) Freud em alguns momentos tamb�m eludia a essa possibilidade, ou seja, n�s n�o estamos falando daqueles todos, um a um, que est�o ali envolvidos, mas o que acontece quando a gente entra num funcionamento coletivo, de massa. Ou seja, o que acontece quando a gente se orienta para uma figura que exerce poder e autoridade sobre n�s, que cria uma identifica��o horizontal de n�s com os irm�os, que s�o como n�s, e que pede de n�s obedi�ncia em troca de seguran�a ou prote��o.
Ent�o eu acho que � mais ou menos isso que est� em jogo na forma��o desse desse efeito que pode ser descrito assim, como o que acontece quando o Del�rio � confrontado com a realidade. A gente tem um processo semelhante acontecendo com o bolsonarismo. Isso � uma forma de del�rio.
Ent�o eu acho que � mais ou menos isso que est� em jogo na forma��o desse desse efeito que pode ser descrito assim, como o que acontece quando o Del�rio � confrontado com a realidade. A gente tem um processo semelhante acontecendo com o bolsonarismo. Isso � uma forma de del�rio.
Os casos cl�ssicos de Folie � deux, de loucura compartilhada, s�o clinicamente sanados com afastamento da pessoa do n�cleo irradiante.
Eles t�m falado menos de Bolsonaro e focado mais no discurso de enfrentar o comunismo, de ter as For�as Armadas como um elemento abstrato de apoio. Como o senhor avalia isso?
Apesar da vit�ria de Lula, o bolsonarismo vai persistir. A gente precisa olhar para o bolsonarismo como uma face do Brasil. Inclusive, a esquerda precisa reconhecer que isso � um movimento popular, � o movimento contra revolucion�rio que se apropriou de ret�ricas da esquerda, mas � um movimento popular, que conseguiu grande capitalidade em v�rios lugares no Brasil.
Na aus�ncia de Bolsonaro, a gente vai por outro, daqui a pouco vem outro. E por isso a dificuldade de transforma��o n�o � assim: aceita que o Bolsonaro perdeu. � como a gente desfaz um discurso, que � um processo cultural, � um processo libidinal, � um processo hist�rico. Quanto tempo demorou para esse discurso se formar? Foram anos e anos. Ent�o � todo um processo hist�rico que a gente precisa reconstruir para desconstruir o bolsonarismo.
Na aus�ncia de Bolsonaro, a gente vai por outro, daqui a pouco vem outro. E por isso a dificuldade de transforma��o n�o � assim: aceita que o Bolsonaro perdeu. � como a gente desfaz um discurso, que � um processo cultural, � um processo libidinal, � um processo hist�rico. Quanto tempo demorou para esse discurso se formar? Foram anos e anos. Ent�o � todo um processo hist�rico que a gente precisa reconstruir para desconstruir o bolsonarismo.
Existe uma poss�vel ilus�o de alguns eleitores petistas de que Lula vai resolver as coisas de uma vez s�?
Acho que n�o vai resolver de uma vez. Essa ilus�o de que a gente vai passar um pano e come�ar de novo, n�o � bem-vinda. A gente sabe que a coisa se infiltrou capilarmente e, portanto, n�o vai se resolver. Bolsonarismo � um discurso muito forte, muito potente, que vai mobilizar a� coisas por se inventar.
Inclusive, por se reinventar uma esquerda. Acho que o Lula est� no momento de composi��o, de vamos juntar todo mundo para rever e fazer um balan�o, mas precisamos de uma nova esquerda. Eu at� brinco: Tem que ser um futuro trans porque esse cis n�o deu certo.
Inclusive, por se reinventar uma esquerda. Acho que o Lula est� no momento de composi��o, de vamos juntar todo mundo para rever e fazer um balan�o, mas precisamos de uma nova esquerda. Eu at� brinco: Tem que ser um futuro trans porque esse cis n�o deu certo.
Nesta p�s-elei��o, temos visto manifesta��es mais extremas. O senhor acha que isso de alguma forma se aproxima de algum tipo de fundamentalismo religioso?
Acho que o bolsonarismo tem muitas maneiras de a gente definir, mas como um cap�tulo do neoliberalismo, ele se apoia nos neofundamentalismo.
Fora do Brasil, a gente tem o fundamentalismo ligados aos estrangeiros. O Brasil, enquanto se discutia essa quest�o das imigra��es e tal, a gente estava aqui um pouco Haiti, um pouco Venezuela, mas � muito pouco. O que a gente inventou foi um estrangeiro dentro do nacional.
Tem brasileiros que n�o deviam estar aqui, devia estar em Cuba, na Venezuela. Esse � o discurso: tem que ir embora ou morrer. Um tipo de necropol�tica apoiada no fundamentalismo, no neofundamentalismo religioso.
� dif�cil organizar uma cr�tica sobre isso porque essas religi�es s�o de fato um suporte para as pessoas, sem apoio do Estado. Cerca de 60% dos evang�licos, neopentecostais da terceira gera��o s�o pobres, 61% s�o mulheres e 62% s�o negros. Mas ent�o � essa gente que voc� quer incriminar? N�o, pera a� . Temos que fazer um filtro dizer: olha aqui tem um processo que est� espreitando o sofrimento.
� dif�cil organizar uma cr�tica sobre isso porque essas religi�es s�o de fato um suporte para as pessoas, sem apoio do Estado. Cerca de 60% dos evang�licos, neopentecostais da terceira gera��o s�o pobres, 61% s�o mulheres e 62% s�o negros. Mas ent�o � essa gente que voc� quer incriminar? N�o, pera a� . Temos que fazer um filtro dizer: olha aqui tem um processo que est� espreitando o sofrimento.
Um processo que pega o sofrimento real das pessoas, oferece algo em troca e instrumentaliza em um del�rio pol�tico. O Brasil criou um fundamentalismo. N�o � o Iraque com o homem- bomba, mas s�o esses discursos que est�o explodindo institui��es, est�o fazendo pastores ordenarem voto para um ou para outro como se fosse uma madrassa, no pior sentido do preconceito.
Esse quadro de manifesta��es e insurg�ncias, sem lideran�a clara e sem organiza��o expl�cita, era o que o senhor previa? O que significa esse sil�ncio do Bolsonaro?
O sil�ncio de Bolsonaro � muito inteligente. Ele est� esperando para ver onde que o discurso funciona mais, onde a resist�ncia se organiza melhor. Ele est� sendo revolucion�rio como em 1789, a Revolu��o Francesa. Ele est� esperando as massas, onde � que a insurg�ncia popular vai dar mais certo. Tem dois meses at� o Lula assumir.
Ele est� esperando justamente uma brecha para tentar ou retentar aquilo que ele vem anunciando e tentando fazer, que � um golpe. Um golpe realmente popular. Isso que a esquerda precisa entender: n�o � um golpe de gabinete, � um golpe que vem de baixo. Se o Alexandre Moraes n�o tivesse sido suficientemente r�pido podia ter desandado a maionese e at� 1 de janeiro, ele ter� outra chance, por isso est� em sil�ncio.
Ele est� esperando justamente uma brecha para tentar ou retentar aquilo que ele vem anunciando e tentando fazer, que � um golpe. Um golpe realmente popular. Isso que a esquerda precisa entender: n�o � um golpe de gabinete, � um golpe que vem de baixo. Se o Alexandre Moraes n�o tivesse sido suficientemente r�pido podia ter desandado a maionese e at� 1 de janeiro, ele ter� outra chance, por isso est� em sil�ncio.
O comportamento d�bio dos militares em rela��o ao relat�rio sobre as urnas enviado ao TSE e sobre as manifesta��es em frente a quart�is s�o um tipo de senha para a manuten��o dessa expectativa de apoio aos protestos?
Totalmente. Esse clima de banho-maria para ver se algu�m organiza essa insatisfa��o que est� nas ruas, as pessoas fechando estradas e etc. Ent�o, acho que n�o � uma resposta surpreendente do Ex�rcito. Porque voc� tem uma ala importante, que foi formada minimamente nos efeitos da Ditadura Militar, n�o quer repetir um erro grotesco.
E, por outro lado, voc� tem uma outra ala que tem ambi��es pol�ticas. N�o se pode olhar para os militares como uma massa uniforme, assim como a gente n�o deve olhar para os bolsonaristas como uma massa uniforme.
E, por outro lado, voc� tem uma outra ala que tem ambi��es pol�ticas. N�o se pode olhar para os militares como uma massa uniforme, assim como a gente n�o deve olhar para os bolsonaristas como uma massa uniforme.
No curto prazo, como o STF e demais institui��es devem agir para contornar essa situa��o e evitar riscos � posse de Lula e ao novo governo? Puni��o exemplar dos financiadores j� identificados das manifesta��es ou ignorar at� o enfraquecimento desses movimentos com a sa�da de Bolsonaro do poder?
N�o ignorar. Essa � uma atitude errada da esquerda antiga, que tem uma concep��o de psicopatologia equivocada. Que � assim: deixa o louco falando que ele fica sozinho no deserto e o elimina. Isso n�o funciona. O que a gente defende no laborat�rio de teoria social, filosofia e psican�lise � que � preciso escutar a loucura, tem tratamento para isso.