
A depender de Santa Catarina, Luiz In�cio Lula da Silva (PT) seria eleito presidente com tranquilidade no primeiro turno.
Esta frase, que hoje parece sa�da de uma p�gina de not�cias falsas, j� foi verdadeira. Pelo menos em 2002.
Na elei��o presidencial daquele ano, Lula teve 56% dos votos v�lidos no primeiro turno entre os catarinenses — a maior vit�ria petista em todo o pa�s.
20 anos depois, Santa Catarina de 2022 pouco se parece com o Estado do in�cio do s�culo 21, pelo menos em termos de prefer�ncias eleitorais.
No primeiro turno das elei��es de 2018, o ent�o candidato Jair Bolsonaro (� �poca no PSL) conseguiu 65,82% entre os catarinenses, a sua maior vit�ria em todo o pa�s no primeiro turno. Em 2022, o presidente manteve uma vota��o expressiva: 62,21%.
Entre os motivos apontados para a afinidade entre catarinenses e bolsonarismo est�o o "tradicionalismo/conservadorismo" num Estado sem grandes metr�poles e a valoriza��o do "m�rito pessoal", que chegou com os imigrantes europeus na regi�o. (Leia mais abaixo)
Al�m dos resultados das urnas, Santa Catarina tamb�m foi palco de algumas das manifesta��es mais intensas ap�s a derrota de Bolsonaro para Lula. Foi l� onde ocorreu a maior quantidade de bloqueios em rodovias.
Em 21 de novembro, a Pol�cia Rodovi�ria Federal chegou a dizer que os m�todos de bloqueios antidemocr�ticos no Estado, com bombas e barricadas, lembravam os de "terroristas e black blocs".
Mas o que acontecia em 2002 para Lula ganhar?

Mesmo com a vit�ria expressiva de Lula em 2002, n�o � poss�vel dizer que o eleitorado de Santa Catarina era de "esquerda", explica o cientista pol�tico Jean Castro, professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
"� poss�vel que o eleitorado catarinense em 2002 j� fosse, de forma majorit�ria, culturalmente conservador e favor�vel ao discurso liberal ancorado no valor do trabalho e do m�rito pessoal", diz o pesquisador, se referindo � ideologia encampada pelo grupo de Bolsonaro.
"Mesmo assim votaram no Lula em 2002 porque queriam mudan�a, pois o segundo governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) terminou com uma situa��o econ�mica dif�cil".
De acordo com Castro, o chamado "voto econ�mico" pesou mais naquele pleito, j� que n�o havia uma polariza��o ideol�gica t�o clara entre o ent�o presidente FHC, que apoiou Jos� Serra (PSDB), e o ent�o candidato Lula.
"Naquele contexto, com baixa polariza��o, a maioria do eleitorado n�o votou motivado por coer�ncia ideol�gica, e o eleitorado catarinense deu seu voto de confian�a para Lula."
Candidato a governador pelo PT em 2002, Jos� Fritsch quase chegou ao segundo turno naquele ano: teve 27% dos votos — acabou ficando de fora na disputa entre Esperidi�o Amin (PPB, com 30%) e Luiz Henrique da Silveira (PMDB, com 39%).
Para o pol�tico, o grande n�mero de votos recebidos se deve tamb�m � chamada "Onda Lula", que, naquele ano, fez o PT ampliar a presen�a no Congresso. Em Santa Catarina, por exemplo, a petista Ideli Salvatti foi eleita a senadora mais bem votada da hist�ria.
"Havia uma organiza��o de base do PT, com a for�a dos movimentos sindicais, especialmente dos professores estaduais, o Movimento Sem Terra, dos Atingidos Por Barragem" diz Fritsch, que foi prefeito de Chapec� entre 1997 e 2002, uma das maiores cidades do interior catarinense.
"Naquela �poca, os conservadores aqui nos toleravam porque de fato n�s conseguimos resolver muitos problemas. Ent�o o PT organizado, conseguindo governar duas grandes cidades, pesou positivamente", avalia Fritsch, tamb�m citando a gest�o do petista D�cio Lima em Blumenau.
E o que mudou?
Jean Castro, da UFSC, explica que o ano 2002, com protagonismo petista, foi "at�pico", j� que desde a redemocratiza��o, a disputa pol�tica no Estado se deu entre pol�ticos ligados ao MDB e os descendentes da Arena (PFL/DEM, PDS/PP), o partido que dava sustenta��o ao regime militar.
Nas elei��es de 2006, os catarinenses j� migraram com for�a para o outro lado do campo pol�tico. Naquele ano, Geraldo Alckmin teve 57,2%, no Estado j� no primeiro turno, a maior vit�ria do tucano no Brasil.
Na an�lise de Castro, "a confian�a se quebrou a partir das den�ncias de corrup��o do mensal�o, em 2005".
"Da� em diante, o antipetismo come�ou a crescer na esteira dos esc�ndalos de corrup��o, e foi turbinado pela Lava Jato, que exp�s a corrup��o n�o apenas do PT, mas do sistema pol�tico como um todo, levando ao crescimento de um sentimento 'antissistema' e 'antipol�tica'".
Com a onda de protestos de 2013 e o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o cientista pol�tico explica que "grupos liberais e conservadores", antes uma "massa confusa", se organizaram na oposi��o � esquerda.
Do lado do PT, Jos� Fritsch diz que, ap�s a chegada de Lula ao poder em 2002, "o PT deixou de se preocupar com organiza��o partid�ria de base", principalmente nas cidades do interior, abrindo espa�o para outras for�as pol�ticas.
'Terreno f�rtil' do Bolsonarismo

Santa Catarina � o �nico Estado brasileiro onde a maior cidade fica no interior, e n�o na capital ou regi�o metropolitana.
Com cerca de 600 mil habitantes (ou seja, do mesmo porte de Londrina (PR) ou Juiz de Fora (MG)), Joinville, no norte, tem popula��o maior que Florian�polis. E h� muitas outras cidades de relev�ncia no interior, como Blumenau, Chapec� e Crici�ma.
Castro explica que essa caracter�stica se deve uma "coloniza��o de povoamento, que resultou em uma popula��o bem distribu�da pelo Estado".
Ou seja, n�o h� uma popula��o concentrada em grandes metr�poles.
"� comum que cidades pequenas e m�dias tenham um grau maior de conservadorismo cultural do que cidades grandes ou metr�poles. Enquanto cidades grandes tendem a ter mais comportamentos sociais liberais e cosmopolitas, cidades menores tendem a ser mais tradicionalistas", diz Castro.
Na vis�o do cientista pol�tico, � medida que a pauta de costume (como direito ao aborto, direitos LGBTs e combate ao racismo) ganharam mais protagonismo na esquerda, foi surgindo uma rea��o daqueles que se sentiam "bem e felizes" com os costumes tradicionais, sobretudo quando "a cr�tica a esses costumes era feita de forma radical".
"Esses fatores ajudam a entender a for�a do conservadorismo a partir do momento em que os costumes foram politizados", diz Castro.
"Um pai de fam�lia tradicional, que muitas vezes � um simples trabalhador que tem que suar muito para sustentar fam�lia, n�o vai gostar de ser cancelado como uma pessoa 'do mal', um �cone da domina��o heteronormativa patriarcal branca".
Outro ponto que explicaria a afinidade do eleitor catarinense com o bolsonarismo seria o econ�mico.
O Estado apresenta alguns dos melhores �ndices do pa�s, como taxa de desemprego e desigualdade social.
"Esses fatores indicam que em Santa Catarina, em compara��o com outras regi�es do pa�s, h� um menor n�mero de pessoas que dependem do Estado para sobreviver, o que ajuda a manter vivo o discurso liberal do trabalho e do m�rito pessoal", diz o cientista pol�tico.
Para ele, esse � um discurso que chegou na regi�o junto com a cultura de muitos imigrantes europeus que povoaram o Estado.
"Por isso, o discurso 'conservador nos costumes e liberal na economia' encontra tanto eco no eleitorado catarinense. Que Bolsonaro tenha captado esses votos � uma conting�ncia do momento. Outro candidato que mobilizasse esses valores poderia ter o mesmo sucesso".
A volta do PT?
Apesar do cen�rio favor�vel a Bolsonaro, na disputa estadual catarinense em 2022, o petista D�cio Lima conseguiu surpreender e ir ao segundo turno, quando acabou perdendo para Jorginho Mello (PL) que ficou com 70% dos votos, deixando para o petista apenas 30% dos votos v�lidos.
Lima acabou se beneficiando no primeiro turno pela grande quantidade de candidatos que buscaram o voto bolsonarista: al�m de Mello, havia o atual governador Carlos Mois�s (Republicanos) , Gean Loureiro (Uni�o Brasil) e Esperidi�o Amin (PP).
"Foi uma vit�ria pol�tica, n�o tanto eleitoral. Mas � fruto de uma mem�ria dos bons tempos do PT no Estado e tamb�m do recha�o � gest�o dos pol�ticos locais da pandemia. � uma prova que a esquerda ainda existe em Santa Cataria", opina o petista Jos� Fritsch.
Ele avalia que mais de 30% do eleitorado catarinense n�o � t�o ideol�gico. Ou seja, pode votar em partidos de todo o espectro pol�tico, a depender da conjuntura do momento daquela elei��o.
Para o cientista pol�tico Jean Castro, da UFSC, um fortalecimento da esquerda vai depender do grau de desgaste e desengajamento do bolsonarismo p�s-elei��o e do desempenho de ula na volta � Presid�ncia.
Ele avalia que o presidente eleito pode retomar sua popularidade no Estado se a economia do Brasil for bem, se esc�ndalos de corrup��o n�o aparecerem e se a agenda de costumes for mais "diplom�tica", em vez de "identit�ria".
"Nas democracias modernas uma parcela importante do eleitorado n�o tem tanto interesse por pol�tica e n�o tem coer�ncia ideol�gica alguma. Oscilam a cada elei��o, votando de acordo com fatores circunstanciais, sejam relativos �s qualidades pessoais do candidato ou ao chamado voto econ�mico, quando eleitores tendem a votar 'pela mudan�a'".
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63867608