
V�deos e fotos publicados em tempo real pelos extremistas viraram provas contra eles mesmos, em um esfor�o coletivo virtual para nomear suspeitos e cobrar puni��es.
O apontar de dedos produziu dilemas e equ�vocos. Um funcion�rio do Banco do Brasil indicado nas redes como o homem que simulou defecar no ch�o do STF (Supremo Tribunal Federal) teve que aparecer para negar ser ele nas imagens. Pessoas querendo incriminar parentes tiveram d�vida entre falar ou se omitir.
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A necessidade de investiga��o conforme os preceitos legais e de pena para quem atentou contra a Constitui��o � predominante entre os democratas, mas vozes no debate p�blico, especialmente � direita e mesmo entre bolsonaristas que discordam da tentativa de golpe, falam em risco de denuncismo.
Num ambiente prop�cio a den�ncias irrespons�veis e at� cal�nias para atingir advers�rios ideol�gicos, haveria espa�o --segundo a �tica dos mais alarmados-- para se instalar um clima compar�vel ao de estados de exce��o, como a vigil�ncia social da Alemanha nazista ou do stalinismo na Uni�o Sovi�tica.
"Voc� esconde patriotas no por�o?" foi a pergunta, em tom sarc�stico, compartilhada ao longo da semana por influenciadores bolsonaristas sobre a not�cia de que o diret�rio estadual do PT no Paran� disponibilizou um n�mero de WhatsApp como "disk den�ncia de terroristas paranaenses".
Mais de 2.500 den�ncias foram recebidas em cerca de tr�s dias, informou a se��o local do partido, que disse ter feito uma triagem dos casos antes de enviar um dossi� aos Minist�rios P�blicos estadual e federal com 80 nomes, supostas provas e um pedido de investiga��o.
No canal do Minist�rio da Justi�a, 30 mil relatos de poss�veis participantes e financiadores chegaram por email em apenas um dia, ap�s o �rg�o frisar que "qualquer informa��o ou pista � bem-vinda".
A cobran�a p�blica se estendeu a empresas e �rg�os p�blicos com funcion�rios suspeitos de liga��o com o levante. Advogados da �rea trabalhista enxergam possibilidade de demiss�o por justa causa no setor privado. A Prefeitura de Belo Horizonte, por exemplo, soube via den�ncias de um servidor flagrado com a turba em Bras�lia e o exonerou de um cargo de confian�a.
Estudiosa da �rea de justi�a de transi��o (conjunto de medidas legais para superar regimes autorit�rios, como ditaduras), a professora da UnB Ene� de Stutz e Almeida avalia como leg�tima a press�o pela responsabiliza��o dos criminosos, desde que nos limites da lei e com direito de defesa.
O clamor j� aparecia no grito de "sem anistia", ouvido na posse do presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT) para se referir ao governo Bolsonaro e ampliado para abranger os extremistas do quebra-quebra.
Para Ene�, � preciso diferenciar a coleta de den�ncias pelos �rg�os competentes, com respeito ao sigilo e �s garantias constitucionais, e o esfor�o investigativo de pessoas comuns, com padr�es menos r�gidos.
"A execra��o p�blica � conden�vel, mas � algo da l�gica das redes sociais e potencializado neste caso pelo fato de que os pr�prios invasores se exibiram orgulhosos em seus perfis", diz a doutora em direito.
Ela considera "saud�vel e did�tica" a participa��o popular na identifica��o, como caminho para refor�ar que "a lei vale para todos e que n�o cabe concilia��o quando h� crimes". E recha�a analogias com regimes de exce��o ao lembrar que no Brasil vigora o Estado democr�tico de Direito.
Setores da esquerda creditam ao governo Bolsonaro um est�mulo recente � denuncia��o, com abertura para que iniciativas como o movimento Escola Sem Partido instalasse persegui��o a professores por suposta doutrina��o ideol�gica. Meios institucionais tamb�m foram usados nessa cruzada.
O tema foi ainda associado � pandemia de Covid-19, mas em outra chave: o esfor�o coletivo, em nome da sa�de p�blica, para informar a governos aglomera��es irregulares nas fases mais duras de isolamento.
Os riscos apontados no que se chama de cultura da desconfian�a s�o a fragmenta��o social e o potencial uso do instrumento para atacar ou constranger desafetos pessoais, inclusive com mentiras.
Quando viu not�cias sobre as milhares de den�ncias contra os golpistas de Bras�lia, o advogado Felipe Fonte fez rela��o com "A Vida dos Outros", filme alem�o de 2006 sobre um agente da Stasi (pol�cia secreta da antiga Alemanha Oriental) que come�a a vigiar um casal de artistas e se envolve com a rotina deles.
"N�o � que as pessoas n�o possam denunciar crimes eventualmente ocorridos, mas o problema da cultura do denuncismo � que ela abre portas para exageros, enganos e m�-f�", diz Fonte, que � procurador do estado e professor de direito constitucional da FGV Direito Rio.
Ele defende que os �rg�os oficiais t�m meios adequados para fazer a investiga��o, facilitada pela fartura de ind�cios deixada nas redes. "N�o � fun��o do cidad�o comum exercer esse papel de agregador de den�ncias", segue, citando o ambiente carregado politicamente e a cultura do cancelamento como agravantes do cen�rio.
Fonte, que faz ressalvas a decis�es recentes do STF e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) no campo da liberdade de express�o, diz que a tentativa de golpe � inadmiss�vel e deve ser respondida com processos judiciais c�leres e rigorosos, "para que isso jamais se repita".
A sanha da denuncia��o, a seu ver, pode ser prejudicial por acabar sobrecarregando ainda mais o Judici�rio, com a��es de repara��o movidas por pessoas acusadas erroneamente no tribunal da internet. "Quem denuncia precisa ter responsabilidade para n�o virar alvo depois", observa.
O secret�rio nacional de Justi�a, Augusto de Arruda Botelho, que � vinculado ao Minist�rio da Justi�a da gest�o Lula, diz � reportagem ser descabido falar em denuncismo. Para ele, a mobiliza��o popular � uma rea��o � altura do momento de maior risco institucional do pa�s desde a redemocratiza��o.
"N�o d� para frear o �mpeto da sociedade civil, principalmente diante do fato de grande parte dos criminosos ter exposto o rosto, de procurar as autoridades para apresentar den�ncias. Isso � um aux�lio ao pa�s. N�o vejo nada de errado, muito pelo contr�rio. Fortalece a democracia", afirma.
Segundo Botelho, o trabalho dos �rg�os envolvidos na apura��o se baseia nos direitos e garantias fundamentais de todos, inclusive golpistas. "Ningu�m est� sendo investigado por sua ideologia, mas pelos crimes que foram praticados. N�o � persegui��o pol�tica. � ca�a aos criminosos."
O secret�rio descarta ainda preju�zo � tentativa de pacifica��o da sociedade expressa por Lula. "O Brasil precisa se pacificar dentro do campo democr�tico. Divergir sobre posi��o ou programa � normal, mas tentativa de golpe, n�o. Harmonizar o tecido social n�o significa ser leniente com essas pessoas."