
Gomes observa, no entanto, que essa corrente extremista n�o est� presa � figura do ex-presidente Jair Bolsonaro, pois se alimenta de ideias antidemocr�ticas que s�o anteriores e transcendem o personagem. "As pessoas j� projetaram isso em Bolsonaro. � um sujeito que j� est� fora de controle. Inclusive, se ele se rebelar contra esse movimento, n�o tem nenhum problema. O movimento iria contra ele. O bolsonarismo � diferente de Bolsonaro."
Diz, ainda, que esse movimento � uma conflu�ncia de v�rias correntes, marcadas a um s� tempo pelo ultraconservadorismo e pela superficialidade das redes sociais. Gomes considera a resposta do governo insuficiente para combater esse fen�meno ideol�gico. "As m�dias digitais est�o inundadas com narrativas de campo de concentra��o, de velhinha que morreu, e n�o tem uma comunica��o governamental. � uma resposta anal�gica, para um mundo digital", critica.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Como o senhor enxergou os atos praticados em 8 de janeiro?
Foi muito grave. H� muitas leituras. A sugest�o mais evidente � pensar que houve uma esp�cie de invas�o do Capit�lio � brasileira. O 6 de janeiro dos Estados Unidos foi o nosso 8 de janeiro de 2023. Naturalmente, l� foi o dia da inf�mia. � uma coisa grav�ssima na hist�ria americana que uma popula��o de sediciosos invada o cora��o da Rep�blica. N�o se deve subestimar o efeito disso na nossa Rep�blica, embora nossa Rep�blica j� tenha passado por muita coisa. Tivemos dois golpes de Estado no s�culo passado (Get�lio Vargas e per�odo militar). � assustador. Mas isso n�o pode diminuir o impacto do 8 de janeiro. Foi uma coisa avassaladora, que n�o tem cabimento. Nossa �ltima ditadura come�ou em 1964. Temos um arco de seis d�cadas em que n�o aconteceu nada desse n�vel. Foi uma tentativa atabalhoada de golpe de Estado — o que n�o � pouco.
Qual a explica��o para isso?
Formou-se uma tempestade perfeita. Havia condi��es nesse sentido. Temos aqui um per�odo tremendo no pa�s, iniciado em 2013, que est� completamente fora da caixinha. Como dizem por a�, parece que o pa�s tomou uma cacha�a pesada e vem fazendo uma besteira atr�s da outra. Tivemos uma presidente reeleita em 2014, mas foi reeleita j� perdendo a elei��o. H� ainda um conjunto de frustra��es, em 2013 e 2014. Depois, v�-se sair do arm�rio uma extrema direita, feroz, ogro, antirrepublicana. Pouco a pouco, notou que tinha poder pol�tico. Em 2015, trabalhou duramente pelo impeachment de Dilma Rousseff — e conseguiu em 2016. A� vem o governo Temer, com epis�dios de corrup��o. O termo Lava-Jato vem comendo solto no pa�s, como uma forma de punitivismo, uma pol�tica de �dio, de raiva, de f�ria e antipol�tica. Ent�o, s�o quase 10 anos dessa avalanche crescente.
Houve o nascimento de uma gera��o radical?
Sobre a radicaliza��o, eu comparo um pouco o Brasil com o que aconteceu com os meninos de origem mu�ulmana na Europa. Eles descobriram grupos extremistas pelo YouTube e se radicalizaram. E, de repente, o pai descobre que o filho entrou no Estado Isl�mico. Aconteceu um pouco isso no nosso pa�s. Eu tinha amigos que pareciam convertidos, quase como que para uma religi�o.
O senhor citou dois golpes ocorridos no Brasil que aconteceram pela a��o de quem detinha um poder p�blico. Mas, nos atos de 8 de janeiro, n�o eram necessariamente agentes pol�ticos. O poder p�blico estava disfar�ado em meio aos golpistas?
� ineg�vel que o bolsonarismo radical, hoje, � um movimento social. � preciso dizer, contudo, que o bolsonarismo n�o � exatamente o sujeito que votou em Bolsonaro. Tem muita gente votou em Bolsonaro por raz�es pragm�ticas, at� ideol�gicas, mas n�o para aderir � identidade. As pessoas votam em Bolsonaro, mas n�o s�o Bolsonaro. O movimento bolsonarista, por sua vez, � o sujeito que se identifica com os valores, adota certas narrativas, se sente parte de alguma coisa. Isso quer dizer que o movimento foi espont�neo? N�o. Porque, na verdade, o bolsonarismo se institucionalizou como governo durante quatro anos.
O bolsonarismo surgiu antes de Bolsonaro?
Al�m desse per�odo em que Bolsonaro sentou-se no trono de ferro do Brasil, houve os anos de prepara��o para isso. Havia um movimento ultraconservador contra os direitos humanos. Eu mapearia esse momento a partir de 2011, que foi formado ao redor de pastores evang�licos, de militantes contra os direitos humanos, com rea��o aos direitos dos homossexuais, que foi recrudescendo. � o que se chamava na �poca de 'cercadinho dos feios, sujos e malvados'. Muito antes dos influenciadores sofisticados, havia uma milit�ncia em ambientes digitais, orbitando ao redor de figuras importantes, divulgando teses que as pessoas n�o sustentariam em uma reuni�o de fam�lia.
A que figuras o senhor se refere?
Se Bolsonaro n�o tivesse aparecido, e Eduardo Cunha n�o tivesse cometido o suic�dio sacrificial para matar o mandato de Dilma, talvez agora n�s estar�amos com o cunhismo, e n�o o bolsonarismo. J� havia uma figura assim. J� existia uma milit�ncia em volta de Cunha. Toda essa bancada da B�blia, da bala no Congresso Nacional, por exemplo. Assim como os conservadores passaram a orbitar em volta de Marco Feliciano, quando ele assume aquela comiss�o de Direitos Humanos no Congresso. De repente, o Cunha "morre" politicamente. Mas o movimento, as inten��es, esse sentimento antipol�tica de desconforto ultraconservador, est� ali � disposi��o.
Os atos do dia 8 foram um salto no extremismo de direita no Brasil?
Em 2016, nos Estados Unidos, e em 2018, no Brasil, vemos um movimento com chances eleitorais. E � um movimento que diz o seguinte: 'N�s vamos dar um cavalo de pau, mas n�s n�o vamos dar um golpe. N�o precisa disso. Vamos fazer uma revolu��o pelos meios que a democracia liberal coloca � nossa disposi��o: apresentar uma candidatura e ganhar a elei��o'. � a institucionaliza��o da revolu��o que se pretendia com esse movimento. Em 2020, o Trump perde. Isso tem um impacto enorme. Se Trump tivesse sido reeleito, o que seria de n�s? Em 2022, no Brasil, as for�as democr�ticas reagiram e disseram: 'Olha, vamos parar de brigar entre n�s e vamos enfrentar esse homem, porque n�o vai dar para viver'.
O bolsonarismo n�o se institucionalizou, ent�o?
N�o, no sentido de que foi domesticado, de que passou a fazer parte do sistema. At� porque Bolsonaro continua se comportando como um outsider. Sem apetite para governar, mas com grande apetite para o mando. Ele n�o mostrou capacidade de ser um l�der carism�tico desse movimento forte no Brasil.
Apesar da inaptid�o como estadista, Bolsonaro quase foi reeleito.
Porque o movimento n�o � Bolsonaro. A quest�o � ter um l�der carism�tico. Tem alguma outra pessoa para substituir Bolsonaro nessa fun��o? N�o tem. Mour�o, por exemplo, n�o tem esse carisma. As pessoas j� projetaram isso em Bolsonaro. O bolsonarismo � diferente de Bolsonaro. Bolsonaro � o s�mbolo. H� muito de religioso nisso.
Qual ser� o futuro das redes sociais ap�s esses epis�dios?
N�o sei se vai mudar muita coisa. Uma coisa s�o as plataformas; outra coisa � o que as pessoas fazem nelas. Com rela��o �s plataformas e suas pol�ticas, muita coisa mudou desde 2020. H� um esfor�o de intervir em seu pr�prio neg�cio de modo que elas n�o sejam consideradas como base para uma guerra de �dio, o fim da democracia. N�o � vantagem para o seu neg�cio ter essa imagem. Ent�o, houve muito mais interven��es, como desenhar um algoritmo para emperrar determinado tipo de coisa. Nesse ponto, sim, acho que h� um esfor�o de coopera��o.
O problema est� ou n�o nas redes sociais?
Est� nas redes sociais, no segundo sentido — no uso social dessas redes. Nunca se atualiza quem � o ator principal dessas plataformas, que � povo, s�o as pessoas. A quest�o � o que todos fazem com essas plataformas. Esse � o problema. H� fake news porque as pessoas adoram fake news. Adoram passar, distribuir, consumir fake news. Esse ambiente � de muito �dio, porque as pessoas adoram �dio. �dio � um sentimento legal, que cria comunidades. � preciso considerar os cidad�os pelo uso que eles fazem das comunica��es digitais. Eu coordeno um instituto de democracia digital e digo: tudo o que h� no digital pode ser usado para produzir mais democracia, ou pode ser usado para acabar com a democracia.
Qual sua opini�o sobre a resposta institucional aos ataques?
A resposta do Judici�rio tem sido forte, coerente. Havia todo um discurso sobre os excessos, a m�o pesada do ministro Alexandre de Moraes. Isso ficou invalidado no dia 8. Se com a m�o pesada do ministro, os caras entram nos Tr�s Poderes da Rep�blica como se fosse um passeio no parque? O que � isso? Quer dizer que se juntar 2 mil pessoas, posso invadir o STF? Os bolsonaristas mostraram que isso � poss�vel, invadir os tr�s edif�cios como se n�o fossem nada. Se n�o fosse o Moraes atuando como zagueiro, como seria? � grave demais aquilo. Desculpe, mas o argumento da m�o pesada de Alexandre de Moraes s� vale at� 7 de janeiro. A partir do dia 8, acredito que faltou m�o pesada das institui��es.
E as respostas do governo federal?
O comportamento no domingo me pareceu adequado, proporcional. Tentaram articular todas as institui��es da Rep�blica, porque todas foram atacadas. Tentaram jogar dentro de um quadro constitucional. Mas era �bvio, naquela noite, que alguma coisa de muito s�ria precisava ser feita. Foi apropriado. At� hoje n�o h� quase ningu�m discutindo sobre a propriedade do que foi tomado como decis�o naquele domingo. O que a pol�cia de Bras�lia fez foi grav�ssimo. N�o aparecer ningu�m para defender o cora��o da Rep�blica � de uma gravidade absoluta.
Um esc�ndalo. Os policiais fazendo selfie... Isso foi uma trag�dia anunciada. Qualquer menino, qualquer tia do zap sabia que podia acontecer alguma coisa de muito grave. Ainda mais na �poca da civiliza��o digital. Temos rastros digitais de tudo, e ningu�m estava preparado para entender o que poderia acontecer naquele domingo? E o governo n�o sabia? E achou que mandar alguns of�cios ia resolver a coisa? Foi muita incompet�ncia na previs�o do dano. Tem mais uma coisa, se voc� olhar os perfis da Secom e do gov.br, n�o publicam um tweet desde 31 de dezembro.
Eles (os �rg�os de comunica��o oficial) n�o reativaram sequer as contas institucionais da comunica��o pol�tica. Isso � comunica��o para gest�o de crise. Hoje as m�dias digitais est�o inundadas com narrativas de campo de concentra��o, de velhinha que morreu, e n�o tem uma comunica��o governamental. � uma resposta anal�gica, para um mundo digital. N�o h� ningu�m disputando a narrativa, disputando a interpreta��o. Parece que a comunica��o digital n�o foi reinstalada! N�o � poss�vel um neg�cio desses. � um acavalamento de incompet�ncias.
Os governadores apoiaram Lula. Um dos pontos mencionados � um alerta para que esses epis�dios n�o se repitam nos estados. Essa amea�a existe?
Aqui na Bahia, n�o se cria. O bolsonarismo aqui, embora fa�a muito barulho, tem pequeno efeito sobre a massa. Se foi uma ilha 'Bolsonaro free' nos �ltimos quatro anos, n�o vai ser agora que vai ter esse tipo de coisa. Mas, em outros estados, sim. Acho que S�o Paulo se assustou, com aquela multid�o na 23 de Maio.
Mas essa preocupa��o procede para os outros estados, ou � algo mais dirigida para Bras�lia?
Bras�lia tem um valor simb�lico. � o fulcro da coisa. Mas obviamente n�o quer dizer que o movimento n�o mude. N�o � uma coisa muito racional N�o tinham um plano. A revolu��o deles parecia uma excurs�o de adolescente, fazendo selfies e lives para dizer 'Olha mam�e, estou aqui'.
Uma excurs�o extremista?
� uma revolu��o exibicionista, instagram�vel. � a revolu��o do TikTok. Isso � racional? N�o �. Foi um plano mal desenhado? Foi. Foi um golpe de estado mal desenhado. Ent�o n�o espere muita racionalidade desse pessoal.
Para onde vamos agora?
Em primeiro lugar, espero que a sociedade brasileira, o governo e as institui��es se deem conta de que n�o se deve subestimar o potencial danoso do movimento bolsonarista � democracia, � vida p�blica, ao nosso bem-estar. O movimento bolsonarista provou, definitivamente, que � incompat�vel com a democracia liberal. N�o aceita Tr�s Poderes, n�o aceita o resultado das elei��es. Eles querem simplesmente que Bolsonaro governe perpetuamente o Brasil para produzir sua revolu��o dos costumes e para impedir o comunismo de destruir tudo. Segundo, espero que o governo federal seja capaz de colocar intelig�ncia digital para ser capaz de prever, de antecipar, de evitar danos. N�o tem sentido, em uma sociedade digital, que o governo seja anal�gico. S�o minhas duas esperan�as.