
A Pol�cia Federal anunciou a abertura de um inqu�rito para investigar se houve crime de genoc�dio e omiss�o de socorro ao povo yanomami pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
A investiga��o vai come�ar ap�s um pedido feito por Fl�vio Dino, ministro da Justi�a e da Seguran�a P�blica, um dos integrantes da comitiva que visitou o territ�rio ind�gena no dia 21 de janeiro.
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Outras duas den�ncias est�o em avalia��o preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Pa�ses Baixos. Nelas, a Associa��o dos Povos Ind�genas do Brasil (Apib) e a Comiss�o Arns defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genoc�dio durante a pandemia de covid-19 e na forma como ele lidou com a prote��o dos ind�genas nos �ltimos quatro anos.
Procurado pela reportagem, Bolsonaro n�o comentou o tema. Antes, Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a den�ncia sobre a crise yanomami era "farsa da esquerda" e argumentou que seu governo levou aten��o especializada para territ�rios ind�genas.
Quais s�o os argumentos que fundamentam acusa��es t�o graves? E o que mais disse Bolsonaro?
Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que h� elementos suficientes para iniciar uma investiga��o, mas que � preciso encontrar evid�ncias e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro. A seguir, entenda como, segundo eles, quest�es como est�mulo ao garimpo, apura��o sobre desvio de medicamentos e alertas ignorados pelo governo podem ser levados em considera��o.
O que � genoc�dio?
O Tribunal Penal Internacional diz que o genoc�dio � caracterizado pela "inten��o espec�fica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, �tnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar les�es corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condi��es de vida calculadas para provocar a destrui��o f�sica total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir for�adamente crian�as de um grupo para outro".
A jurista Sylvia Steiner, �nica brasileira que foi ju�za da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genoc�dio n�o � qualquer matan�a".
"Tem que existir a inten��o de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da ra�a ou da religi�o dele", resume.
A especialista tamb�m aponta que h� uma diferen�a entre genoc�dio e crimes contra a humanidade.
"Crimes contra a humanidade s�o aqueles praticados por parte de uma pol�tica de um Estado ou de uma organiza��o que atacam a popula��o civil. Eles incluem assassinato, viol�ncia sexual, deporta��o for�ada, persegui��o, exterm�nio, escravid�o…", lista.
"Nesse caso, n�o existe um dolo especial, ou seja, a inten��o clara de eliminar um grupo por quest�es como nacionalidade, etnia, ra�a, religi�o", complementa.

O advogado Belis�rio dos Santos Junior, da Comiss�o Internacional de Juristas, lembra que o Brasil possui uma lei sobre o genoc�dio desde 1956.
"Ela foi aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece n�o apenas a a��o direta, mas tamb�m a incita��o ao genoc�dio", diz.
A lei brasileira, portanto, tamb�m pune aqueles que estimulam "direta e publicamente algu�m a cometer qualquer dos crimes" relacionados ao genoc�dio.
Mas o que pode pesar contra o governo Bolsonaro durante as investiga��es?
Est�mulo ao garimpo
O relat�rio Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associa��o Yanomami e pela Associa��o Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria t�cnica do Instituto Socioambiental, faz um balan�o da extra��o ilegal de ouro e outros min�rios nessa regi�o, que compreende a maior reserva ind�gena do pa�s.
"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal n�o � uma novidade na TIY [Terra Ind�gena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos �ltimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destrui��o do garimpo assumiu uma trajet�ria ascendente e, desde ent�o, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos c�lculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.
O levantamento das associa��es mostra que, em outubro de 2018, a �rea total destru�da pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. "Desde ent�o, a �rea impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publica��o.

Durante os quatro anos de presid�ncia, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a minera��o em terras ind�genas — o governo prop�s inclusive um projeto de lei que viabilizaria a pr�tica dentro da lei.
Em mar�o de 2022, por exemplo, ele afirmou que "�ndio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, n�o s� para agricultura, mas tamb�m para garimpo".
"A Amaz�nia � uma �rea riqu�ssima. Em Roraima, h� uma tabela peri�dica debaixo da terra", acrescentou.
Santos Junior, que integra a Comiss�o Arns, entende que s�o v�rios os exemplos do est�mulo de Bolsonaro ao garimpo.
"Os garimpeiros v�o se apropriando das �reas, desmatam a floresta, invadem unidades b�sicas de sa�de… Quem d� suporte a isso � justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem n�o d� as condi��es para que povos e etnias sobrevivam", defende.
Falta de rem�dios e alimentos
O Minist�rio P�blico Federal tamb�m fez opera��es para apurar desvios de medicamentos em territ�rio yanomami.
Segundo o �rg�o, s� 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022.
Os procuradores dizem que o desvio de verm�fugos (que tratam de infesta��es de vermes) impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crian�as que vivem nesta regi�o.
H� ainda den�ncias sobre a interrup��o no fornecimento de alimentos.
Alisson Marugal, procurador da Rep�blica em Roraima, afirmou que o Minist�rio da Sa�de cortou o fornecimento de alimenta��o aos ind�genas nos postos de sa�de do Estado em 2020, sem dar explica��es.
Todo o cen�rio de casos e mortes por desnutri��o e mal�ria fez com que o Minist�rio da Sa�de decretasse uma emerg�ncia sanit�ria no territ�rio yanomami em 21 de janeiro.
Entre as a��es emergenciais, o governo anunciou o envio de profissionais de sa�de e a cria��o de hospitais de campanha para atender os pacientes.
Segundo o secret�rio de Sa�de Ind�gena do minist�rio, Ricardo Weibe Tapeba, mais de mil indiv�duos j� foram resgatados em situa��o de extrema vulnerabilidade do local.

Alertas ignorados
Por fim, diversas institui��es nacionais e internacionais chamaram a aten��o para o que vinha acontecendo com os yanomami nos �ltimos meses e anos.
Em nota, a Apib disse que a invas�o do garimpo ilegal na terra ind�gena yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes � justi�a e aos �rg�os do governo durante a gest�o de Bolsonaro.
Existe tamb�m uma peti��o feita ao Supremo Tribunal Federal em maio do ano passado sobre esse assunto. Nela, a Apib e outras entidades pedem a��es do governo para conter a invas�o de garimpeiros nas terras onde vivem os yanomami e outros povos, como os munduruku.
No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decis�o cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a sa�de dos membros dos povos ind�genas yanomami, ye'kwana e munduruku".
A comiss�o que avaliou o caso disse que a situa��o dos indiv�duos dessas tr�s popula��es era de "extrema gravidade e urg�ncia".
Entre as medidas que o pa�s precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a sa�de e o acesso � alimenta��o e �gua pot�vel" desses povos.
A corte pediu ao Estado brasileiro um relat�rio com um resumo das a��es que foram tomadas para reverter a situa��o at� o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualiza��es sobre o caso deveriam ser enviadas a cada tr�s meses.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o pa�s estava cumprindo as medidas.
Por meio da assessoria de comunica��o, o �rg�o afirmou que, "at� o dia de hoje, a corte est� esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".
O que pode acontecer?
Para Santos Junior, "o ex-presidente, por causa de suas obsess�es [com o garimpo], aparenta preencher os requisitos de quem assume os riscos". "N�o � normal voc� deixar um povo sem assist�ncia m�dica, sem as condi��es m�nimas de sobreviv�ncia", diz.
"Os ind�genas foram sufocados de uma tal forma que as mortes e a redu��o do grupo se encaixam, a meu ver, na descri��o do genoc�dio pelas a��es ou ina��es do ent�o Presidente da Rep�blica", acrescenta o advogado.
A jurista Sylvia Steiner pondera que a abertura de um inqu�rito serve justamente para fazer investiga��es e reunir provas de poss�veis crimes que foram eventualmente cometidos.
"Por ora, n�o h� fatos provados. Existem alguns ind�cios em rela��o ao genoc�dio. E isso � sempre complicado, porque voc� precisa comprovar que havia uma inten��o de eliminar os yanomami da face da Terra", explica.
Na vis�o da jurista, outra possibilidade � investigar poss�veis crimes contra a humanidade — e n�o o genoc�dio.
"Pode ser observada a exist�ncia de um plano, de uma pol�tica de Estado contra os yanomami, mas em fun��o da terra que eles ocupam e do interesse em se apropriar das riquezas que existem ali. Ou seja, nesse caso n�o falamos de uma persegui��o dos yanomami por causa da etnia deles", pontua.
"Acontece que essa pol�tica de Estado leva � extermina��o do grupo. Ent�o, n�s podemos estar diante de um crime contra a humanidade de exterm�nio ou persegui��o", completa.
Steiner chama a aten��o para o fato de a legisla��o brasileira n�o prever crimes contra a humanidade. Nesse caso, a eventual investiga��o e um julgamento posterior dependem da a��o do Tribunal Penal Internacional.
A especialista aponta que esses julgamentos em Haia, de poss�veis respons�veis pelos atos criminosos, podem render penas de at� 30 anos ou pris�o perp�tua em casos extremos.

Controv�rsias e discord�ncias
Steiner aponta que o conceito de genoc�dio e crimes contra a humanidade � alvo de muitas discuss�es entre os juristas.
"Uma parcela acredita que, decorrido tanto tempo desde que o conceito foi definido nos anos 1940, � preciso ter um entendimento um pouco mais alargado do que � um genoc�dio. Eles argumentam que o mundo mudou e a interpreta��o desse crime deveria ser mais flex�vel", diz
"Eu me situo entre aqueles que seguem a letra da lei. Ent�o, para mim, tem que ficar demonstrado que realmente houve a inten��o genocida, a inten��o de destruir no todo ou em parte aquela comunidade, seja em raz�o da religi�o, da etnia, da ra�a ou na nacionalidade."
"Fora disso, pode ser que estejamos diante de um crime contra a humanidade, que � t�o grave quanto", complementa.
De acordo com a especialista, o conceito de crimes contra a humanidade � relativamente novo — foi ratificado internacionalmente a partir do Estatuto de Roma em 2002 — e, por isso, ainda gera confus�o.
"Esse conjunto de normas est� acima das regras dos pa�ses e pro�be uma s�rie de condutas que p�e em risco a paz e a humanidade de comunidades inteiras", conta Steiner.
"Quando temos esc�ndalos lament�veis e cat�strofes humanit�rias, devemos usar esse momento para progredir do ponto de vista moral e �tico. Que a atual situa��o desperte as pessoas e os pa�ses para as necessidades especiais das popula��es ind�genas. J� n�o era sem tempo", conclui.
A BBC News Brasil tentou o contato com Bolsonaro por meio de assessores, ex-ministros, pessoas pr�ximas, a comunica��o do Partido Liberal e pelas pr�prias redes sociais para que ele pudesse dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alega��es. N�o foram enviadas respostas at� a publica��o desta reportagem.
Assim que a emerg�ncia de sa�de veio � tona nos �ltimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.
Ele classificou a den�ncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 a��es de sa�de entre 2020 e 2022 que levaram aten��o especializada para dentro dos territ�rios ind�genas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.
Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil ind�genas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de prote��o individual, totalizando 1,5 milh�o de insumos enviados para essas opera��es.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64417930