
Claro, havia os que torciam contra, mas n�o � exagero dizer que a maioria imaginava que o poder de ataque da Sele��o Brasileira pudesse eliminar a Cro�cia. N�o deu. Coincid�ncia ou n�o, horas antes da derrota nos p�naltis, o ent�o presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva (PT) j� demonstrava preocupa��o com a retaguarda, mas n�o era com a zaga escolhida por Tite. Numa sinaliza��o �s for�as armadas, escalou para a Defesa Jos� M�cio Monteiro, considerado um meio-termo entre o petista e os militares.
Mas por que Lula fazia quest�o de anunciar o nome de M�cio logo entre os primeiros de sua equipe ministerial, antes mesmo das pastas da Educa��o, Cultura, ou Meio Ambiente, por exemplo? N�o custa lembrar que, no Brasil, existem os poderes Executivo, Legislativo e Judici�rio, sendo papel das For�as Armadas cumprir as determina��es do seu comandante supremo, ou seja, o presidente da Rep�blica. Por�m, a militariza��o do governo anterior for�ou o gesto do l�der petista.
O livro “Poder Camuflado: os militares e a pol�tica, do fim da ditadura � alian�a com Bolsonaro” (Companhia das Letras), escrito pelo rep�rter e editor Fabio Victor, pode ajudar a explicar o aceno de Lula, pois mostra que, mesmo ap�s a redemocratiza��o do pa�s, o ex�rcito atua, seja em banho-maria ou em fogo alto, de forma a manter sua influ�ncia e seus interesses.
Curiosamente, o mesmo Jos� M�cio foi o primeiro ministro do novo governo a ficar na corda bamba. A gest�o de crise ap�s os ataques terroristas de 8 de janeiro deste ano contra o Pal�cio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal incomodaram Lula, e aliados do presidente avaliaram que o titular da Defesa teria subestimado os riscos de uma investida contra as institui��es. Al�m disso, come�aram a pipocar den�ncias de que integrantes da seguran�a p�blica facilitaram a a��o dos golpistas. O vi�s ideol�gico contribuiu para o fen�meno.
De acordo com o livro de Fabio Victor, oficiais de variadas patentes das tr�s For�as Armadas calculam que praticamente 100% dos militares votaram em Bolsonaro no segundo turno de 2018. Em 2020, segundo ano do ex-capit�o no poder, 10 ministros eram da extra��o militar e, de acordo com o TCU, 6.157 militares exerciam fun��es civis na administra��o p�blica.
O autor, nascido no Recife, trabalhou por 20 anos na “Folha de S. Paulo” e foi finalista do pr�mio Gabo 2019. Sua longa pesquisa jornal�stica � dividida em tr�s partes que, juntas, formam “Poder Camuflado”. O livro cont�m passagens curiosas da pol�tica nacional, como em 1992, quando o deputado Jair Bolsonaro teve seu Chevette azul rebocado em frente ao port�o de entrada da Academia Militar das Agulhas Negras, ou em 2002, quando o mesmo Bolsonaro deu “nota 10” para um discurso de Lula na Comiss�o de Rela��es Exteriores. H� tamb�m o epis�dio em que o general Hamilton Mour�o cai de um cavalo durante um torneio de saltos na v�spera do segundo turno de 2018.
Outro ponto que chama a aten��o � como a caserna abra�ou um “oficial insubordinado, que entre o final dos anos 1980 e o in�cio dos 1990, era persona non grata na corpora��o”, e que devido ao ac�mulo de afrontas virou “sin�nimo de indisciplina, anarquia e desonra � farda”. Esse oficial, Jair Messias Bolsonaro, foi condenado em 1988 pelo Conselho de Justifica��o, uma esp�cie de tribunal verde-oliva de primeira inst�ncia, depois de um imbr�glio envolvendo uma reportagem que exp�s seu plano: explodir bombas-rel�gio em unidades militares caso o governo n�o concedesse reajustes salariais � altura do que esperava. Durante o processo, o r�u ainda foi acusado de amea�a de morte por uma jornalista, mas foi inocentado das acusa��es “gra�as a uma interpreta��o esdr�xula do Superior Tribunal Militar (STM)”.
Do epis�dio em que Fernando Collor de Mello decide pela extin��o do Servi�o Nacional de Informa��es (SNI) � aproxima��o entre Itamar Franco e militares, das tentativas de Fernando Henrique Cardoso para estabelecer um controle civil sobre as atividades castrenses ao pragmatismo de Lula em rela��o �s For�as Armadas, do governo Dilma Rousseff e trabalhos da Comiss�o Nacional da Verdade (CNV) � acusa��o do Ex�rcito de ter sofrido uma “facada” nas costas, da Lava-Jato a Temer, do anticomunismo ao antipetismo, do olavismo ao bolsonarismo. Fabio Victor refaz o caminho da nossa jovem democracia, por vezes plena, por vezes surrada, e entrega um material rico em detalhes e informa��es. A leitura indica que a radicaliza��o, como tamb�m mostra a s�rie documental “extremistas.br” (Globoplay), transformou militares em militantes e a conta a ser paga pode ser alta demais.
Vinte dias ap�s o in�cio de seu terceiro mandato como presidente do Brasil, com as For�as Armadas diariamente no notici�rio, Lula se reuniu com os comandantes do Ex�rcito, Marinha e Aeron�utica. Tamb�m estavam presentes o ministro Jos� M�cio, que resistiu � press�o e se manteve no cargo, e Josu� Gomes, presidente da Fiesp.
Oficialmente, o objetivo foi tratar de investimentos para a ind�stria da defesa. No dia seguinte, Lula demitiu o general Arruda, ent�o comandante do Forte Apache. A hist�ria pode estar longe de terminar, mas parece ser clara a mensagem das institui��es democr�ticas: “quem n�o marchar direito vai preso pro quartel”. Leia, a seguir, a entrevista de Fabio Victor ao Estado de Minas.
ENTREVISTA COM O AUTOR
1- Voc� destaca que, na Am�rica Latina, o modelo brasileiro de transi��o da ditadura para a democracia foi o que menos avan�ou quanto � responsabiliza��o criminal de agentes do Estado. De que maneira isso afeta nossa cultura, as institui��es e o modo como a popula��o enxerga as For�as Armadas? Por qu�?

2- A recente politiza��o, principalmente do Ex�rcito, levou um general a tomar vacina “escondido”, oficiais de alta patente compartilharam fake news, muitos militares colocaram em d�vida o funcionamento da urna eletr�nica. Na sua opini�o, � poss�vel reverter este cen�rio de invas�o dos coturnos na pol�tica?
S�o dois fen�menos distintos, embora complementares. O primeiro � a ocupa��o da m�quina p�blica por militares promovida por Bolsonaro, com resultados em alguns casos desastrosos, como no Minist�rio da Sa�de durante a pandemia. Desmilitarizar a Esplanada n�o ser� simples, mas � fact�vel, h� vontade pol�tica do novo governo para faz�-lo (e j� come�ou a ser feito).
O outro fen�meno, a meu ver mais grave, � o da politiza��o das For�as Armadas, a cruzada de Bolsonaro para transform�-las em bra�os pol�tico-ideol�gicos, em instrumentos de governo e n�o de Estado, que infelizmente foi parcialmente bem-sucedida. Este � de mais dif�cil revers�o, � um processo de m�dio a longo prazo e depende da consci�ncia dos atuais l�deres militares e dos que vir�o da necessidade urgente de revert�-lo.
As For�as Armadas n�o podem mais continuar se metendo em pol�tica. Vejamos se o discurso do novo comandante do Ex�rcito, general Tom�s Ribeiro Paiva, nesse sentido � pra valer na pr�tica e se ele ter� for�as para implantar esses preceitos elementares junto a tropas que est�o nitidamente politizadas.
'Desmilitarizar a Esplanada n�o ser� simples, mas � fact�vel, h� vontade pol�tica do novo governo para faz�-lo (e j� come�ou a ser feito)'
Fabio Victor
3- No livro voc� cita o fil�sofo Rodrigo Nunes e a teoria do “troll”, que “atua sempre no fio da navalha entre a zoeira e a amea�a que pode ser levada a cabo”. Como o estado brasileiro pode se proteger de um agente que “testa os limites, sem nunca deixar de ter uma rota de fuga”? Por qu�?
Talvez compreendendo melhor como opera a comunica��o contempor�nea, algoritmos, hiperconectividade, bots etc --um terreno que o bolsonarismo domina, com larga vantagem sobre o PT e o governo eleito. E com uma a��o en�rgica e efetiva da pol�cia e da Justi�a em rela��o a abusos e amea�as --mas dentro da legisla��o vigente, sem inventar a roda com regula��o draconiana de redes sociais, sob pena de censura e abuso de poder.
4- As den�ncias de que agentes de seguran�a teriam facilitado a a��o de terroristas em Bras�lia, no dia 8 de janeiro, podem dar in�cio a uma mudan�a de comportamento, tanto do poder p�blico quanto da caserna? Como colocar um ponto final na ideia de que o Ex�rcito � “um poder moderador”?
Autoridades dos Tr�s Poderes correm para punir os respons�veis. Embora estejam colocando um cadeado depois da tranca arrombada, � o que deve ser feito --puni��o exemplar para todo e qualquer envolvido, sejam das For�as Armadas, das pol�cias ou dos governos.
Escrevi num artigo recente para o Canal Meio e repito aqui: "As for�as de seguran�a do Distrito Federal falharam miseravelmente em proteger o cora��o da Rep�blica, mas o governador Ibaneis Rocha, seu ent�o secret�rio de seguran�a — o bolsonarista Anderson Torres — e o agora ex-comandante da PM, F�bio Augusto Vieira (afastado e preso, como Torres), n�o s�o os �nicos respons�veis pelo fiasco. Admitir que houve falhas graves tamb�m por parte das for�as federais, incluindo as For�as Armadas — e � evidente que houve —, n�o significa dizer, como fez irresponsavelmente o governador mineiro, Romeu Zema, que o governo Lula permitiu o ataque para se vitimizar. Por mais que o 8 de Janeiro tenha sido um fracasso coletivo, um dos maiores fracassos coletivos da hist�ria republicana, h� um protagonista claro, Jair Bolsonaro (e seus asseclas), e v�timas igualmente distingu�veis: os Tr�s Poderes da Rep�blica, a democracia, o Estado de Direito".
H� muitas maneiras de combater a ideia equivocada de que as For�as Armadas s�o um poder moderador: talvez a mais efetiva fosse mudar o artigo 142 da Constitui��o e retirar delas a atribui��o de garantir a lei e a ordem (isso deve caber a outros entes, pol�cias e Judici�rio), pois � em que se apoiam os bolsonaristas para distorcer o texto da lei. Enquanto isso n�o ocorre, se � que ocorrer�, campanhas de esclarecimento � popula��o seriam bem-vindas. � importante sobretudo que os militares se atenham � sua fun��o primordial, de defesa do territ�rio e da soberania nacional.
5- No seu ponto de vista, qual a principal reflex�o proposta por “Poder Camuflado”? Por conta das constantes not�cias envolvendo as For�as Armadas, o minist�rio da Defesa e a movimentada pol�tica brasileira, voc� pensa em produzir um novo livro sobre o tema?
Poder Camuflado � um livro jornal�stico, movido por interesse jornal�stico, e portanto sua principal fun��o � apresentar elementos factuais (surgidos de entrevistas in�ditas, documentos, pesquisa hist�rica e vasta bibliografia) para que entendamos o recente processo de politiza��o das For�as Armadas. Creio que � uma contribui��o valiosa para a compreens�o desse notici�rio fren�tico e intenso envolvendo os militares nos �ltimos anos, sobretudo nos �ltimos meses. Por enquanto n�o penso em fazer novo livro sobre o tema, este ainda tem um bom percurso pela frente.
TRECHO DO LIVRO
“Grosso modo, todos os governos p�s-redemocratiza��o poderiam se encaixar no que o cientista pol�tico polon�s Adam Przeworski denominou de ‘democracias tutelares’, em que as For�as Armadas, ap�s imporem e conduzirem governos autorit�rios, voltam aos quart�is, mas ‘continuam a pairar como sombras amea�adoras, prontas a cair sobre qualquer um que v� longe demais na amea�a a seus valores ou interesses’. Para o cientista pol�tico brasileiro Jorge Zaverucha, seguindo a linha de racioc�nio do colega polon�s, a inexist�ncia de golpes militares no pa�s desde 1985 n�o significa que tenha sido criado um controle civil das For�as Armadas. Quando t�m seus interesses amea�ados, aponta Zaverucha, elas costumam mostrar o tacape, e o poder civil cede”.
FICHA
. Poder Camuflado: os militares e a pol�tica, do fim da ditadura � alian�a com Bolsonaro
. Fabio Victor
. Companhia das Letras
. 446 p�ginas
. R$ 78,90 (livro) e
. R$ 44,90 (e-book)
