
Os primeiros cem dias do terceiro mandato presidencial de Luiz In�cio Lula da Silva foram marcados por mudan�as profundas em rela��o � gest�o anterior, de Jair Bolsonaro.
O petista reestabeleceu uma rela��o mais harm�nica entre os Poderes, removeu militares de cargos civis, resgatou o multilateralismo na pol�tica externa, adotou um controle mais r�gido sobre armas e passou a valorizar a vacina��o e a prote��o ambiental, por exemplo.
Por outro lado, esse in�cio de governo tamb�m teve algumas semelhan�as com o in�cio do governo Bolsonaro, sobretudo nos desafios enfrentados.
Apesar do estilo e estrat�gias diferentes, ambos os presidentes completaram esse marco sem conseguir formar uma base de apoio no Congresso ou conquistar a aprova��o da maioria dos brasileiros. Outra semelhan�a foram as pol�micas precoces com ministros.
Entenda a seguir um pouco melhor essas diferen�as e semelhan�as.
Dos ataques ao di�logo com Congresso e STF
Ap�s uma vit�ria apertada, o governo Lula come�ou num contexto in�dito de amea�as de golpe por parte de apoiadores mais radicais do ex-presidente, que culminaram na invas�o e depreda��o do Pal�cio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro.O epis�dio in�dito gerou um forte alinhamento entre os tr�s Poderes em rep�dio aos ataques e marcou ainda mais a distin��o entre os dois presidentes, na vis�o da cientista pol�tica Lara Mesquita, pesquisadora da Escola de Economia de S�o Paulo da FGV.
"A posse de Lula traz uma mudan�a marcante na rela��o com os demais Poderes e com as institui��es democr�ticas, que foi inclusive refor�ada pelos atentados 8 de janeiro", afirma.
Na sua vis�o, os ataques violentos serviram tamb�m para deixar clara a import�ncia de retirar os militares de postos civis. Ap�s o governo adotar uma postura de concilia��o com as For�as Armadas, Lula decidiu trocar o comando do Ex�rcito, nomeando o general Tom�s Paiva com a miss�o de despolitizar os quart�is.

O estilo conflituoso e o protagonismo militar marcaram o governo Bolsonaro j� nos seus cem primeiros dias. No in�cio, por�m, a tens�o era mais presente na rela��o com o Congresso do que com o STF.
O ex-presidente, embora fosse deputado h� quase tr�s d�cadas, se colocava como contr�rio � “velha pol�tica” e fazia cr�ticas ao uso de indica��es de partidos para cargos em troca de apoio parlamentar, que chamava de “toma l� d� c�”.
Os ataques � classe pol�tica e ao Parlamento levaram a embates p�blicos com o ent�o presidente da C�mara Rodrigo Maia, que chegou a acusar Bolsonaro de brincar de presidir o pa�s quando o governo tinha menos de tr�s meses.
Cem dias sem base
Apesar de Bolsonaro e Lula terem iniciado seus governos com estilos muito diferentes, ambos chegaram aos cem dias com um problema em comum: a falta de uma base s�lida no Congresso.A postura de Bolsonaro em rela��o aos parlamentares mudaria a partir de 2020, com o aumento do risco de um processo de impeachment. No ano seguinte, nomeou Ciro Nogueira, senador e presidente do PP, para comandar a Casa Civil. E distribuiu cargos de segundo e terceiro escal�es para partidos em troca de apoio.
Al�m disso, a distribui��o de verbas federais para parlamentares aliados investirem em suas bases eleitorais, no que ficou conhecido como Or�amento Secreto, permitiu construir uma base no Congresso com ajuda do novo presidente da C�mara, Arthur Lira (PP-AL).
O petista, por sua vez, j� assumiu com o discurso de valorizar as indica��es partid�rias e o di�logo com o Congresso. Nesse sentido, preferiu apoiar a reelei��o de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Arthur Lira no comando do Senado e da C�mara, respectivamente, relevando a forte alian�a que havia entre Lira e Bolsonaro.
Tamb�m tentou garantir a governabilidade atraindo partidos de centro-direita para a base do governo, j� que as siglas mais � esquerda n�o somam maioria de votos no Congresso. Uni�o Brasil, MDB e PSD indicaram cada um tr�s ministros.
Por enquanto, por�m, essas siglas n�o garantiram apoio integral ao Planalto. E ainda n�o houve uma vota��o relevante no Congresso para testar o tamanho da base, algo que revela a dificuldade do governo em fazer andar sua agenda.
Para o cientista pol�tico Creomar de Souza, professor da Funda��o Dom Cabral e fundador da consultoria pol�tica Dharma, isso reflete a decis�o de Lula de concentrar um n�mero grande de minist�rios importantes, como Fazenda, Casa Civil e Educa��o, nas m�os do PT, em vez de compor uma Esplanada com mais cara de frente ampla como foi sua campanha eleitoral.
"O PT tem 13% das cadeiras da C�mara, 10% do Senado, e 30% da Esplanada", ressalta.

J� Lara Mesquista, da FGV, avalia que a dificuldade de Lula em montar sua base est� mais na fragilidade dos comandos partid�rios hoje, ap�s uma s�rie de fus�es e reestrutura��es de siglas importantes, como o caso do Uni�o Brasil, que uniu DEM e PSL.
Nesse contexto, o governo deve repetir a estrat�gia da gest�o anterior e tentar garantir votos no Congresso direcionando verbas para investimentos nos redutos parlamentares.
O chamado Or�amento Secreto – em que lideran�as do Congresso definiam a destina��o de bilh�es de reais a serem liberados pelo governo sem transpar�ncia – foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal no final de 2022.
Depois disso, R$ 9,8 bilh�es que iriam para essa despesa no Or�amento de 2023 retornaram para gest�o dos minist�rios. Esse recurso deve continuar sendo liberado a partir da negocia��o com deputados e senadores, mas o governo tem prometido que isso ser� feito com transpar�ncia, tornando poss�vel saber qual parlamentar solicitou aquela despesa.
Problemas desde cedo com ministros
A nomea��o de indicados do Centr�o — grupo de partidos que costuma trocar apoio por verbas e cargos, independentemente de qual seja o governo — n�o garantiu, at� o momento, apoio pol�tico, mas rendeu desgastes para o governo Lula desde cedo.
J� na primeira semana de governo, reportagens do jornal Folha de S.Paulo apontaram que a ministra do Turismo, Daniela Carneiro (Uni�o Brasil), mantinha elos pol�ticos com milicianos, que apoiaram suas campanhas a deputada federal em 2018 e 2022.
Em respostas �s acusa��es, a ministra disse que recebeu apoio eleitoral em diversos munic�pios e que n�o compactuava com qualquer apoiador que porventura tenha cometido algum ato il�cito. Apesar do desgaste, Lula preferiu manter a ministra no cargo a fazer uma troca t�o cedo.
Outro ministro que balan�ou mas n�o caiu foi Juscelino Filho, da pasta das Comunica��es, tamb�m do Uni�o Brasil. Segundo reportagem do jornal Estado de S. Paulo, ele embolsou di�rias por viagens a trabalho mesmo nos dias em que estava cumprindo compromissos particulares, como leil�es e eventos de cavalos de ra�a.
Depois do caso ser revelado, Juscelino Filho alegou ter havido um erro e devolveu os valores recebidos indevidamente. Lula chegou a cobrar explica��es dos ministros, mas decidiu mant�-lo no cargo.
Pol�micas envolvendo ministros tamb�m marcaram o governo Bolsonaro, que, inclusive, trocou o comando de duas pastas antes dos cem dias, algo in�dito at� ent�o.
O primeiro a cair foi Gustavo Bebianno, que comandava a Secretaria-Geral da Presid�ncia e era tido como homem de confian�a de Bolsonaro at� o esc�ndalo do desvio de recursos eleitorais no antigo PSL (partido de Bolsonaro na �poca) por meio de candidaturas laranjas de mulheres.
O segundo ministro a ser demitido antes dos cem dias foi Ricardo V�lez, substitu�do no comando da Educa��o por Abraham Weintraub, ap�s meses de total paralisia na pasta.
Mais gastos e impostos
Na economia, o in�cio de Lula traz grandes diferen�as em rela��o ao come�o de Bolsonaro. Sai o discurso a favor de privatiza��es e de menos impostos, e entra a defesa de mais gastos sociais e por mais tributos.
A gest�o anterior acabou abandonando em parte o discurso da austeridade fiscal, seja devido aos gastos emergenciais para enfrentar a pandemia de coronav�rus, seja para elevar benef�cios sociais no ano eleitoral.
A gest�o Lula, por sua vez, j� assumiu com o prop�sito claro de substituir o Teto de Gastos por novas regras para as despesas p�blicas, que permitam cumprir a promessa de mais recursos para servi�os p�blicos e investimentos.
Por outro lado, pressionado a tirar as contas p�blicas do vermelho, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad tamb�m prop�e taxar setores que hoje n�o pagam impostos, como sites de apostas esportivas e de compras no exterior. As propostas devem ser enviadas em breve ao Congresso.
O desafio de conciliar mais gastos e equil�brio fiscal tem gerado disputas internas dentro do pr�prio governo e do PT. Por outro lado, a administra��o Lula tem se mostrado unida no prop�sito de pressionar o Banco Central a baixar os juros. Mas o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, nomeado por Bolsonaro, tem mandato at� o final de 2024.
As fortes cr�ticas de Lula ao BC provocaram a rea��o de economistas liberais que apoiaram o petista na elei��o presidencial, como Arm�nio Fraga e Henrique Meirelles. Na vis�o deles, a press�o do governo tem o efeito inverso de piorar as expectativas de infla��o, dificultando a queda dos juros.

A complicada volta ao multilateralismo
Logo que assumiu, Bolsonaro adotou uma controversa guinada na pol�tica externa brasileira, substituindo o tradicional multilateralismo por um maior alinhamento com os Estados Unidos, ent�o governado por Donald Trump, e outros pa�ses comandados por l�deres conservadores de direita, como Hungria e Israel.
Por outro lado, ao longo do governo, entrou em embate direto com l�deres de na��es tradicionalmente amigas, como Argentina e Fran�a, al�m de se indispor com o maior parceiro comercial brasileiro, a China, insinuando sem provas que o pa�s teria criado o coronav�rus em laborat�rio.
Essa diretriz perdurou durante todo o mandato e acabou provocando um isolamento do Brasil no cen�rio externo, o que foi intensificado pela repercuss�o internacional negativa do aumento do desmatamento da Amaz�nia durante sua gest�o.
Um retrato disso foi a decis�o de Bolsonaro de faltar � �ltima reuni�o do G20, realizada em novembro, ap�s sua derrota na elei��o. Em contraste, Lula ainda antes de tomar posse, participou naquele mesmo m�s da COP 27, a confer�ncia da ONU sobre mudan�as clim�ticas, quando refor�ou compromisso com a preserva��o da Amaz�nia, tema caro a l�deres de grandes pot�ncias.
J� como presidente, em sua primeira viagem internacional, visitou dois pa�ses vizinhos governados por diferentes espectros ideol�gicos: Argentina, do presidente de esquerda Alberto Fern�ndez, e Uruguai, do presidente de direita Luis Lacalle Pou.
A previs�o era visitar tamb�m as duas maiores pot�ncias mundiais antes dos cem dias. Em fevereiro, foi aos Estados Unidos. J� a viagem � China, marcada para o final de mar�o, foi adiada para abril porque Lula teve pneumonia.

Especialistas em rela��es internacionais t�m apontado a crescente polariza��o entre Estados Unidos e China como o grande desafio para a pol�tica externa do terceiro mandato do petista.
"A pol�tica externa do novo governo Lula deve se pautar, sobretudo, pelo equil�brio entre os poderes. N�o pode esperar substituir um pelo outro: ambos s�o indispens�veis. Os Estados Unidos s�o o maior investidor do Brasil e a China seu maior parceiro comercial", ressaltam Hussein Kalout e Feliciano Guimar�es, do Centro Brasileiro de Rela��es Internacionais, em artigo rec�m-publicado na revista Foreign Affairs.
Um ponto especialmente sens�vel nesse contexto � a guerra na Ucr�nia. Enquanto o Ocidente, liderado pelos EUA, condena a invas�o russa e adotou san��es econ�micas contra Moscou, a China tem mantido uma boa rela��o com o governo de Vladimir Putin e � o maior parceiro comercial russo.
Lula tem buscado manter o Brasil numa posi��o de neutralidade e inclusive tenta participar de uma media��o para um acordo de paz. A iniciativa, por�m, � vista com ceticismo.
"Uma coisa � ter uma posi��o sobre a guerra em n�vel multilateral e outra � tentar mediar um conflito muito intrincado, no qual o Brasil tem capacidade limitada de influenciar os acontecimentos locais", notam Kalout e Guimar�es, no mesmo artigo.
Outra guinada importante em rela��o ao governo Bolsonaro foi a retomada das rela��es diplom�ticas com a Venezuela, pa�s h� anos em crise. A inten��o do Itamaraty � manter di�logo com o governo de Nicol�s Maduro e a oposi��o, mirando a realiza��o de elei��es limpas em 2024, o que tamb�m � considerado pouco prov�vel por especialistas.
A aproxima��o, por�m, pode gerar desgaste para o governo Lula, constantemente criticado pela rela��o amig�vel que as gest�es petistas mantiveram com governos autorit�rios de esquerda.
Sociedade dividida, popularidade em baixa
Apesar das muitas diferen�as, Lula repete Bolsonaro ao completar cem dias com dificuldades para conquistar o apoio da maioria da popula��o.
Segundo pesquisa Datafolha do final de mar�o, 38% avaliam o governo como bom ou �timo. Outros 30% consideram sua administra��o regular, enquanto 29% dizem que a gest�o Lula � ruim ou p�ssima.
Trata-se do pior desempenho do petista nos primeiros meses de governo, quando comparado a sua avalia��o no in�cio dos outros dois mandatos.
J� em compara��o com Bolsonaro, os n�meros s�o um pouco melhores. O ex-presidente completou tr�s meses aprovado por apenas 32% da popula��o e rejeitado por 30%. J� os que o avaliavam como regular eram 33%.
Para a cientista pol�tica Lara Mesquita, o resultado mais fraco de Lula no seu terceiro mandato reflete a forte polariza��o na �ltima elei��o. Ou seja, h� um setor da sociedade que rejeita fortemente o petista e n�o mudar� de opini�o facilmente.
Na sua vis�o, a melhora da aprova��o do petista vai depender do desempenho da economia e de como o governo vai conduzir a delicada agenda de costumes, que mobiliza uma parte importante do eleitor conservador.
J� o cientista pol�tico Creomar de Souza acredita que � um desafio para o governo criar uma agenda nova que dialogue com essa sociedade dividida. At� o momento, ele lembra, a gest�o Lula tem sido marcada pelo relan�amento de antigos programas sociais do PT, alguns exitosos como o Bolsa Fam�lia, e outros mais question�veis como o Minha Casa Minha Vida.
"O governo talvez n�o tenha entendido que a sociedade mudou muito e que � uma sociedade onde a polariza��o se cristalizou e os elementos de consenso s�o mais dif�ceis de serem percebidos. N�o adianta apenas trabalhar com a ideia de que os programas de 20 anos atr�s v�o ser requentados ou restabelecidos", nota Souza.