Governo Bolsonaro quis abafar o caso Marielle Franco e boicotar eventos no exterior que tratassem do crime (foto: Alan Santos/PR)
O dia era 23 de julho de 2019, uma ter�a-feira. Na data, o que seria apenas mais uma fam�lia brasileira embarcando rumo �s praias de Canc�n, no caribe mexicano, se tornou um incidente diplom�tico e policial internacional que o governo de Jair Bolsonaro (PL) conseguiu manter longe dos holofotes.
Aconteceu o seguinte: em vez de permitir a entrada da fam�lia no pa�s, o sistema migrat�rio mexicano apresentou um alerta internacional a respeito de um homem que fazia parte dela. O motivo foi a acusa��o de participar no assassinato da vereadora Marielle Franco, morta em 14 de mar�o do ano anterior no Rio de Janeiro, junto ao motorista Anderson Gomes.
O alerta, na pr�tica, gerou um efeito cascata. A acusa��o de envolvimento no crime levou ao cancelamento do visto de turista do suspeito para os Estados Unidos. Com isso, as autoridades mexicanas impediram que a sua viagem no pa�s continuasse. O Itamaraty foi ent�o chamado a intervir e colocou sua estrutura para acompanhar o imbr�glio.
A Ag�ncia P�blica descobriu esse incidente atrav�s de um pedido de Acesso � Informa��o enviado ao Itamaraty agora em 2023, durante o governo Lula. Contudo, um ponto segue oculto: a identidade do homem impedido de seguir viagem em Canc�n.
“Nunca tive qualquer conhecimento sobre isso. Considero grav�ssimo e deve ser apurado pelas autoridades brasileiras”, informou � reportagem Monica Benicio, vi�va de Marielle Franco. “� muito grave s� saber deste ocorrido agora e por fontes, que n�o fazem parte da investiga��o. Respostas, resolu��es e transpar�ncia com os familiares � o que exigimos das autoridades brasileiras”, completou.
A reportagem descobriu que o sujeito viajava com a fam�lia, que p�de continuar a viagem. Tamb�m apuramos que o contato com a embaixada brasileira no M�xico foi realizado pelo advogado do sujeito.
O documento do Itamaraty, assinado pela c�nsul-geral do Brasil no M�xico, Wanja Campos da N�brega, tamb�m indica que a empresa de avia��o Copa teria se comprometido a repatriar tanto o sujeito quanto seus familiares, para retornarem ao Brasil num voo, no mesmo dia 27, pelo Panam�.
A reportagem questionou o Itamaraty sobre a identidade do sujeito detido em Cancun. A chancelaria explicou que n�o comentaria e que isso seria um assunto para as autoridades policiais. Tamb�m conversamos com altas fontes no Minist�rio da Justi�a, que desconheciam o fato. A identidade do sujeito tamb�m n�o foi informada via Lei de Acesso com a justificativa que se trata de “dados pessoais” — nem mesmo durante o governo Lula.
Contexto
Em julho de 2019, j� estavam presos tanto o policial reformado e vizinho de Jair Bolsonaro no condom�nio Vivendas da Barra, Ronnie Lessa, acusado de ser o atirador; quanto o ex-militar �lcio Vieira de Queiroz, que seria o motorista do carro que perseguiu Marielle e Anderson.
J� o cabo-bombeiro Maxwell Sim�es Correa foi preso em junho de 2020, ap�s ter sido apontado por ajudar a ocultar armas do crime. Cristiano Gir�o, ex-vereador do Rio de Janeiro, foi preso apenas em 30 de julho de 2021, ap�s ser acusado de contratar Lessa para executar o ex-policial Andr� Henrique da Silva Souza — a liga��o de Gir�o com Lessa levantou suspeitas sobre sua participa��o no assassinato de Marielle.
Opera��o abafa
Desde o primeiro momento do governo de Jair Bolsonaro, a morte de Marielle Franco passou a ser tamb�m um assunto de pol�tica externa, com uma opera��o real por parte da diplomacia de impedir que o assassinato se transformasse em press�o internacional.
Logo no seu seu primeiro dia no Pal�cio do Planalto, o ent�o presidente recebeu uma carta de relatores de direitos humanos da ONU que cobravam do Chefe de Estado uma resposta sobre o assassinato e um pedido por explica��es sobre quais medidas tomaria. A sinaliza��o era clara: a comunidade internacional n�o permitiria que o caso fosse ignorado.
A ordem interna no governo, por�m, era a de minimizar o crime. Dois meses depois da posse, a ent�o ministra de Direitos Humanos e hoje senadora Damares Alves viajou at� a ONU e evitou mencionar o caso de Marielle em seu primeiro discurso na entidade.
Questionada pela imprensa sobre o fato de n�o ter comentado o crime, ela justificou:
“N�s temos outros casos no Brasil. Por que citar t�o somente o caso de Marielle? Poder�amos fazer uma lista”, declarou. “N�o era um ambiente de presta��o de conta do caso Marielle”, disse. A reuni�o que ela havia participado era justamente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, mecanismo onde esses crimes s�o debatidos.
O padr�o da diplomacia continuou sendo o de ignorar o caso de Marielle e mesmo boicotar eventos no exterior que tratassem do crime.
Em 2020, o ent�o embaixador do Brasil na Fran�a, Luis Fernando Serra, decidiu cancelar sua participa��o em um evento em Paris com acad�micos ao descobrir que haveria uma homenagem � vereadora. A informa��o consta de telegramas internos enviados pelo diplomata ao Itamaraty, em Bras�lia. As mensagens fazem parte de 17 documentos que a chancelaria foi obrigada a fornecer, depois que a bancada do PSOL solicitou oficialmente os telegramas internos, instru��es e documentos sobre poss�veis orienta��es do Itamaraty a seus postos no exterior sobre o que deve ser dito em rela��o � morte de Marielle Franco.
A reportagem ainda apurou que havia uma instru��o informal dada pelo Itamaraty a seus embaixadores pelo mundo para que rebatessem qualquer acusa��o de falta de compromisso na investiga��o sobre a morte de Marielle na imprensa e por governos estrangeiros, que homenagens fossem evitadas e que fosse martelada a ideia de que ativistas de direitos humanos s�o protegidos no Brasil.
Edi��o: Natalia Viana
Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado gra�as ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por tr�s de sigilos, negativas e outras t�ticas de sonega��o de informa��o. A cobertura completa est� no site do projeto.