Luis Melendez/Unsplash

Imagine-se numa situa��o de constrangimento, ao chegar a um consult�rio m�dico para avalia��o de rotina e encontrar um profissional atencioso e receptivo, mas que tem dificuldade auditiva severa. Como compreender bem o que est� sendo explicado e buscar informa��es adicionais? Logo surge a surpresa e a dificuldade de lidar com um cen�rio assim, quando o m�dico � que enfrenta o problema da surdez ou qualquer outra necessidade especial?
 
A quest�o � apresentada pelo pediatra e cirurgi�o pedi�trico Thiago Lazaroni, professor do curso de medicina da Pontif�cia Universidade Cat�lica de Minas Gerais (PUC Minas). “Imaginamos que m�dicos e os demais profissionais de sa�de n�o enfrentam barreiras f�sicas para exercer a profiss�o. Essa premissa surge do que esperamos de um m�dico, uma pessoa sem limita��es ou um 'quase-deus' no quesito de sa�de. Deparar-se com um cardiologista surdo, por exemplo, seria um choque. Como esse doutor vai ouvir meu cora��o? N�o � errado se sentir assim inicialmente, mas e se esse m�dico tiver aprendido outras formas de ouvir?”

Thiago Lazaroni afirma que, no Brasil, at� h� um sistema de sa�de que vem se tornando inclusivo ano ap�s ano “�s custas de grandes reivindica��es sociais”. E destaca que “cerca de 25% dos brasileiros t�m alguma necessidade especial, seja para se comunicar, pensar ou locomover-se”.

Nem todos sabem, mas ap�s um processo de quase tr�s anos de discuss�es e an�lises, o C�digo de �tica M�dica (CEM) de 2019 estabeleceu que o profissional m�dico com defici�ncia, ou doen�a cr�nica, pratique atividades dentro dos limites de sua capacidade e da seguran�a do paciente. O c�digo se alinha � conven��o da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Defici�ncia, de 2008, e sua incorpora��o no Brasil por meio do Estatuto da Pessoa com Defici�ncia (Lei 13.146/2015).

No recadastramento digital dos profissionais vinculados ao Conselho Federal de Medicina, no in�cio desse processo, que come�ou em 2016, dos 450 mil m�dicos em atividade no Brasil, 554 afirmaram ter algum tipo de defici�ncia. Grande parte deles atua em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Distrito Federal e Goi�s. Entre as defici�ncias registradas, a auditiva, motora e visual s�o as mais comuns. O censo tamb�m quantificou se os casos eram cong�nitos ou adquiridos.

Raquel Moret Henrique Campos, de 24 anos, cursa o 7º per�odo de medicina no c�mpus da PUC Minas, em Betim, na Grande Belo Horizonte. Ela conta que ingressou na universidade gra�as � obten��o de bolsa integral pelo Programa Universidade para Todos (ProUni). “Sou portadora de uma perda auditiva neurossensorial bilateral profunda e fa�o o uso de dois aparelhos auditivos para melhor comunica��o e compreens�o. Embora o aparelho auditivo seja um facilitador, minha principal forma de compreens�o da fala � a leitura labial”, conta Raquel.
 
Caminhar juntos 

Para que a inclus�o ocorra da melhor maneira poss�vel, a estudante costuma entrar em contato com os professores, antes do in�cio de cada semestre do curso, para falar das suas necessidades e conversar sobre como ela pode trabalhar junto deles para absorver o conte�do das disciplinas. “Deixo expl�cito ao professor que ele deve evitar ao m�ximo caminhar pela sala, bem como falar olhando para o quadro, pois, como sou dependente de leitura labial, a face dele deve estar sempre virada para a frente ou de perfil em rela��o a mim”.

'Só de saber que existem pessoas dispostas a ouvir e compreender as dificuldades e necessidades que passamos já fico com a esperança de que o futuro me reserva bons momentos' - Raquel Moret Henrique Campos, estudante do 7º período de medicina, portadora de perda auditiva

"S� de saber que existem pessoas dispostas a ouvir e compreender as dificuldades e necessidades que passamos j� fico com a esperan�a de que o futuro me reserva bons momentos" - Raquel Moret Henrique Campos, estudante do 7� per�odo de medicina, portadora de perda auditiva

Arquivo Pessoal
Raquel Moret reconhece que, mesmo com toda a colabora��o dos professores, � claro que como a carga de conhecimento ministrado � muito grande e ela precisa fazer anota��es, pode haver momentos em que ela desvia sua aten��o do professor para o caderno e, com isso, em tese perderia o ritmo de acompanhamento da li��o. “Diante disso, tenho que organizar meus hor�rios para estudar e obter o m�ximo de informa��o poss�vel. Uma das maiores dificuldades que encontrei foi obter o estetosc�pio. O modelo de que eu precisava era encontrado apenas no exterior e s� fui obt�-lo quando estava no 5º per�odo do curso.”

No ensino remoto, Raquel Moret revela que teve um pouco mais de dificuldade. “Antecipadamente, entrei em contato com os professores e combinei em manter a webcam sempre ligada e que tanto o �udio quanto o v�deo estejam na melhor qualidade poss�vel. Eles tamb�m se disponibilizaram em me responder pelo telefone sempre que poss�vel.”

A estudante enfatiza tamb�m que o curso n�o seria t�o proveitoso n�o fosse, al�m da colabora��o e compreens�o dos professores, a ajuda dos amigos e colegas de classe. “Todos se colocam � disposi��o para me ajudar. Juntos, compartilhamos v�rias anota��es e experi�ncias. Al�m disso, os monitores t�m tido um papel muito importante na constru��o da minha forma��o como m�dica.”

A futura m�dica n�o sabe o que vir� pela frente. No entanto, a paix�o e o comprometimento contagiam e inspiram. “Ainda n�o sei qual � o destino que a medicina me reserva. A gradua��o tem sido uma experi�ncia maravilhosa e, cada dia que passa, descubro uma coisa dentro da medicina pela qual me apaixono. Por�m, s� de saber que existem pessoas dispostas a ouvir e compreender as dificuldades e necessidades que passamos j� fico com a esperan�a de que o futuro me reserva bons momentos.”

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Cirurgião pediátrico, o professor Thiago Lazaroni comprovou que é possível ao profissional com perda auditiva aprender a ouvir os sons dos órgãos humanos

Cirurgi�o pedi�trico, o professor Thiago Lazaroni comprovou que � poss�vel ao profissional com perda auditiva aprender a ouvir os sons dos �rg�os humanos

Arquivo pessoal
A sociedade convencionou que a pessoa com necessidade especial � sempre o paciente, jamais o m�dico, mas h� profissionais cadeirantes, alguns surdos, outros com sequelas neurol�gicas. E � ainda mais dif�cil pensar em ensinar como essa pessoa com necessidade especial deve repetir e praticar a medicina dentro das suas possibilidades. A constata��o � do m�dico Thiago Lazaroni, pediatra, cirurgi�o pedi�trico e professor do curso de medicina da PUC Minas. “Por que essas pessoas n�o poderiam ter acesso ao sistema superior de ensino e praticar o exerc�cio de profiss�es da sa�de?”

No in�cio do semestre, ano passado, ao ser comunicado sobre a exist�ncia de um aluno com necessidade especial, Thiago Lazaroni pensou em como poderia abord�-lo, modificar toda uma estrutura visando � acessibilidade maior dele. “N�o fiquei assustado, me motivou muito e fiquei realmente estimulado a ensinar de uma forma diferente.”
 
Ele observa que a medicina tem rotinas r�gidas e intensas de estudos. “S�o aulas te�ricas com grande carga hor�ria, al�m da carga pr�tica maior ainda. Ap�s o t�rmino de seis anos de universidade, o m�dico rec�m-formado, para se especializar, ainda enfrenta uma nova sele��o de provas (que podem ser pr�ticas) e faz, no m�nimo, mais dois anos de resid�ncia m�dica. Toda essa rotina pode ser mais dif�cil se falamos de um estudante surdo, mudo ou com dificuldades locomotoras. Imagine como o futuro m�dico vai aprender o tique-taque do cora��o e o chiar do peito? Como ele ser� capaz de ouvir uma hist�ria detalhada, cheia de casos de uma senhora no interior do estado? E como esse m�dico poder� explicar sobre o tratamento?”

No entanto, em 2019, Thiago Lazaroni se deparou, no terceiro ano do curso, com Raquel Moret Henrique Campos, de 24 anos, uma estudante com grave perda auditiva. “Minha disciplina, de semiologia m�dica, ensina os primeiros passos de como o m�dico deve ouvir, interpretar, tocar, sentir e orientar seus pacientes. Ensinamos o exame do cora��o, das juntas, da garganta e etc. Uma grande parte do exame � o ouvir dos sons que nossos �rg�os produzem naturalmente ou quando s�o afetados por alguma doen�a. Uma disciplina secular e bastante tradicional. E agora? Como vou ensinar a ela o barulho correto dos intestinos ou o crepitar de uma pneumonia?”

Ele enfatiza que os m�dicos discutem muito como incluir o paciente em todas suas formas. “Como um m�dico deve se portar e agir frente a vida real, mas nessa situa��o invertemos totalmente o jogo. Aprendemos a ensinar um som para um estudante que ouve 100% ou perto disso. Mas, se n�o reformularmos a forma de ensinar e praticar que todos podem ser bons m�dicos, como incluir aqueles surdos que saem do ensino m�dio e gostariam de se enveredar pela �rea da sa�de?”

Artigo cient�fico

Thiago Lazaroni se deparou com um momento de desafio e inclus�o. “No ensino superior, n�o h� obrigatoriedade de aulas ministradas em libras. Tivemos que nos reinventar. Falar mais devagar, sempre de frente para a aluna, explicar os sons. E n�o houve diferen�a entre o aproveitamento dela em rela��o aos demais colegas. Tivemos, inclusive, que adaptar avalia��es. � f�cil saber quando algu�m n�o entende o que � perguntado porque n�o sabe ou porque est� com alguma limita��o de entendimento/percep��o. Essa � a arte de ser professor.”

Comprometido com a forma��o da estudante, Thiago Lazaroni revela que, m�dico formado h� uma d�cada, “poucos momentos me marejaram as vistas. Um deles foi quando, l� no meio do semestre, essa aluna colocou um estetosc�pio especial que aumenta os sons. Ela chorou. Confesso, todos n�s choramos.”

Dessa viv�ncia, o pediatra e professor conta que surgiu a ideia de estudar melhor essa experi�ncia. Assim nasceu, com a participa��o de outras alunas, que s�o monitoras, e mais duas professoras, Gabriela e Erika, um estudo. “Decidimos relatar para outros professores, alunos e universidades que � poss�vel ensinar medicina a um surdo ou a qualquer outra pessoa que tenha limita��es f�sicas. A forma de ensinar medicina � que tem que se atualizar, ultrapassar limites e criar alternativas para os desafios propostos pela vida”, enfatiza Lazaroni.

O trabalho resultou em um artigo cient�fico rec�m-sa�do do forno e prestes a ser publicado. “Mas muito mais que isso, nos fez explorar potencialidades mais do que limita��es. No meu caso, ensinar um mundo cheio de sons para uma futura m�dica cheia de sonhos.”
 
Preconceito e sabotagem

Gerd Altmann/Pixabay

Na literatura sobre a medicina pedi�trica, o professor da PUC Minas Thiago Larazoni se deparou com dados absurdos sobre as dificuldades enfrentadas por m�dicos residentes portadores de necessidades especiais. “Residentes surdos s�o encorajados a desistir da especializa��o. Os hospitais se adaptam � realidade do paciente, mas n�o � de um profissional de sa�de com necessidades especiais. Alguns relatam que foram sabotados em prontos-socorros ou ambulat�rios.”

Para o pediatra, a sociedade n�o est� preparada. “Mas isso � porque muitos deficientes f�sicos desistiram de ser m�dicos. Ent�o, h� um preconceito com rela��o ao padr�o de m�dico. Somente ap�s conhecer e presenciar uma consulta com pessoas nessa condi��o especial � que v�o entender que n�o h� diferen�as. � um padr�o a ser melhorado, trabalhado.”

Para Thiago Lazaroni, o m�dico surdo pode ser sim ativo e exercer sua profiss�o com autonomia. “Ela (a sua aluna) pode atuar em todas as �reas que desejar. N�o precisa ser uma m�dica especialista em exames, por exemplo. Ela pode ser cardiologista, pneumologista ou o que quiser. Temos tecnologias que permitem ampliar os sentidos ou codific�-los para que sejam percebidos por quem tem defici�ncia total.”

De tudo que tem experimentado, percebido, aprendido e vivido dentro de sala de aula, Thiago Lazaroni confessa que tem se transformado: “Incr�vel. Eu me senti triste h� 15, 16 anos atr�s, quando me disseram que alguma limita��o minha poderia influenciar na minha carreira, ou quando eu era crian�a e acharam que por ser de fam�lia humilde o sonho estava muito distante. Acredito que podemos todos sonhar e temos que valorizar o sonho do jovem m�dico. � uma profiss�o movida a sonhos.”

Sathish kumar Periyasamy/Pixabay
Regulamenta��o

Quando se trata de defici�ncias f�sicas, n�o cabe ao Conselho Federal de Medicina (CFM) designar quem est� ou n�o apto ao exerc�cio da medicina. O �rg�o, al�m de elaborar o C�digo de �tica M�dica (CEM), apenas comprova o diploma e registra os m�dicos. Cabe �s institui��es de ensino a avalia��o caso a caso, acompanhando o desenvolvimento acad�mico e social de cada aluno. Comprovando-se que o futuro m�dico ter� plenas condi��es de transpor as dificuldades que possam surgir devido � sua limita��o f�sica ou de sa�de, o CFM tem a obriga��o de validar o diploma e registrar o m�dico.