
Entre maio e junho, foram confirmados 2.103 casos de var�ola dos macacos em 42 pa�ses diferentes. A doen�a, antes restrita a algumas regi�es da �frica, est� se espalhando de forma inesperada por Europa, Am�ricas, Oriente M�dio e Oceania, de acordo com as �ltimas informa��es da Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS). No Brasil, o n�mero de casos confirmados chega a 37, segundo dados do Minist�rio da Sa�de, nesta quinta-feira (30/6).
Minas Gerais confirmou seu primeiro caso - um homem com 33 anos, que esteve na Europa de 11 a 26 deste m�s. Segundo a Secretaria de Sa�de de Minas, ele � considerado um caso 'importado'.
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Al�m dos �bvios efeitos no sistema de sa�de, epidemias e pandemias tamb�m causam transforma��es sociais — e a comunica��o sobre elas pode levar a no��es distorcidas que duram d�cadas. Isso prejudica at� o controle de casos, hospitaliza��es e mortes relacionadas �quela condi��o.
O HIV e o coronav�rus s�o exemplos desse fen�meno: a defini��o gen�rica de "grupos de risco" fez com que muita gente relaxasse e n�o acreditasse na possibilidade de uma infec��o. Isso, por sua vez, criou novas cadeias de transmiss�o na comunidade e permitiu que os pat�genos se espalhassem de forma silenciosa, sem chamar aten��o.
A seguir, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil listam tr�s erros cometidos em epidemias passadas que podem ser evitados agora, no surto de var�ola dos macacos, e em outras crises futuras.
Xenofobia
Durante d�cadas, o sistema de classifica��o de novos v�rus, variantes ou at� mesmo de doen�as levava em conta a localiza��o em que eles eram detectados ou noticiados pela primeira vez.
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Zika, por exemplo, � uma floresta tropical de Uganda, onde o pat�geno de mesmo nome foi encontrado pela primeira vez em 1947.
Em 1918, a doen�a causadora de uma das pandemias mais mortais da hist�ria ficou conhecida como "gripe espanhola" — apesar de muito provavelmente o v�rus ter surgido em campos militares dos Estados Unidos (ela s� foi noticiada antes por jornais na Espanha).
"E at� hoje n�s nomeamos as novas cepas do v�rus influenza, o causador da gripe, de acordo com a cidade em que elas foram detectadas", acrescenta a infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Vamos a um exemplo pr�tico disso: as vers�es do pat�geno que mais circularam no Brasil nos �ltimos meses foram o H1N1 Victoria e o H3N2 Darwin. Victoria e Darwin s�o cidades do sul e do norte da Austr�lia, respectivamente.
Um sistema desses traz muitos problemas. O primeiro deles � que nem sempre o lugar onde um v�rus, uma variante ou uma doen�a foram descritos em primeira m�o s�o realmente o nascedouro daquele pat�geno ou daquela condi��o.
A descoberta pode significar apenas que aquela cidade (ou aquele pa�s) possuem um excelente sistema de vigil�ncia, que detectou casos importados de outra regi�o do planeta.
E, mesmo se o local tenha sido o "ber�o" do agente infeccioso ou da enfermidade, parece n�o fazer muito sentido usar o nome de um bairro, uma floresta, uma cidade ou um pa�s para descrever aquele novo quadro.
Esse costume s� cria um incentivo desnecess�rio � xenofobia — o nome adotado pode levar a interpreta��es err�neas, como se a culpa pelo problema fosse das pessoas que vivem no epicentro original do surto, da epidemia ou da pandemia.
A OMS percebeu esse risco e j� mudou as coisas desde que a covid-19 apareceu. O �ltimo coronav�rus a chamar a aten��o antes da pandemia atual foi o Mers-CoV em 2012, detectado pela primeira vez na Ar�bia Saudita. O nome Mers � uma sigla em ingl�s para S�ndrome Respirat�ria do Oriente M�dio.
Na crise sanit�ria atual, essa tend�ncia foi corrigida. O nome do v�rus causador � Sars-CoV-2 (Sars � sigla para S�ndrome Respirat�ria Aguda Severa) e a doen�a ficou conhecida como covid-19 (algo como "coronav�rus doen�a 2019" na tradu��o literal da sigla em ingl�s).

Termos mais neutros tamb�m foram adotados com as variantes do coronav�rus. Quando surgiram, elas eram chamadas de linhagens "do Reino Unido", "da �frica do Sul" ou "de Manaus".
Mas isso foi rapidamente corrigido e as variantes de preocupa��o foram atreladas �s letras gregas — como alfa, beta, gama, delta e �micron.
E a OMS parece mostrar a mesma preocupa��o agora com a var�ola dos macacos. A entidade se posicionou depois que mais de 30 cientistas assinaram uma carta em que destacavam "a necessidade urgente de buscar nomes que n�o sejam discriminat�rios ou estigmatizantes".
Stucchi, que tamb�m integra a Sociedade Brasileira de Infectologia, considera essa discuss�o "prudente".
"Isso � algo que deve ser muito bem pensado para a gente n�o incentivar constrangimentos ou preconceitos", avalia.
"Mas � curioso que essa preocupa��o mundial com o nome s� apare�a agora que a doen�a saiu da �frica e come�ou a atingir as Am�ricas e a Europa", observa.
Estigmatiza��o de grupos sociais
O surgimento de uma nova doen�a infecciosa sempre instiga a mesma pergunta: quem tem mais probabilidade de ser acometido?
Por um lado, definir os chamados "grupos de risco" � algo importante do ponto de vista da sa�de p�blica.
"Em nenhuma doen�a o risco de adoecer ou morrer � homog�neo na popula��o", explica o epidemiologista Alexandre Grangeiro, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP).
"Portanto, ao determinar quem tem mais probabilidade de ser afetado, voc� direciona as pol�ticas p�blicas de forma adequada e n�o aumenta as desigualdades."
"Isso n�o apenas garante o cuidado aos pacientes no momento adequado, como ajuda a interromper a cadeia de transmiss�o do v�rus", completa.
O problema � quando essa defini��o dos grupos de risco acontece de forma precipitada, atabalhoada ou leva em conta apenas os primeiros casos. E foi exatamente isso o que ocorreu (e ainda ocorre) em algumas das epidemias das �ltimas d�cadas.
Nos anos 1980, quando a aids virou um problema global, as primeiras informa��es divulgadas davam conta de que s� homens que faziam sexo com outros homens estavam sob risco — � �poca, o termo "peste gay" era usado pejorativamente para falar da infec��o pelo HIV.
Mais recentemente, na atual pandemia de COVID-19, alguns conte�dos divulgados pela imprensa e nas redes sociais diziam que apenas idosos e indiv�duos com sistema imunol�gico comprometido desenvolviam as complica��es.

Nos dois casos, essas mensagens iniciais confirmaram a no��o de que outras pessoas que n�o se encaixavam nos tais "grupos de risco" estavam livres de qualquer amea�a.
E o resultado disso a gente viu na pr�tica: os v�rus se espalharam e afetaram gravemente pessoas que, supostamente, segundo essas informa��es erradas, n�o precisariam se preocupar com aids ou covid, como mulheres heterossexuais e adultos jovens, por exemplo.
Grangeiro avalia que o problema come�a quando as defini��es de risco s�o muito gen�ricas e baseadas apenas nos primeiros casos detectados, que costumam ser mais graves e acabam encaminhados para servi�os especializados.
"A princ�pio, algumas informa��es sobre os grupos de risco n�o est�o erradas, mas elas podem levar a estrat�gias de sa�de p�blica que, na pr�tica, t�m at� impacto negativo", aponta o especialista.
"No caso da aids, por exemplo, se definiu que o risco era maior entre homens que fazem sexo com homens. Isso est� errado? N�o, o risco de fato era de 10 a 11 vezes maior nesse p�blico", calcula.
"O erro est� em levar em conta somente essa �nica observa��o nas pol�ticas de sa�de. Porque quem tinha maior risco eram os indiv�duos com redes sexuais amplas e desprotegidas, inclusive heterossexuais", diz.
Agora com a var�ola dos macacos, existe uma probabilidade desse mesmo padr�o se repetir. De acordo com um relat�rio publicado pela Ag�ncia de Seguran�a em Sa�de do Reino Unido, a vasta maioria de casos foi identificada em indiv�duos que se consideram gays, bissexuais ou homens que fazem sexo com homens.
O estudo acompanhou 152 pacientes com a infec��o confirmada. Desses, 151 diziam fazer parte de uma das tr�s caracter�sticas listadas acima.
Mas, como as experi�ncias passadas nos revelam, � um perigo fechar t�o cedo assim grupos de risco t�o gen�ricos e dizer que o restante da popula��o pode relaxar.
"Toda doen�a nova traz ansiedade, inseguran�a e medo. E esses conceitos iniciais acabam sendo muito fortes e ficam marcados", aponta Grangeiro.
"No pr�prio HIV, mesmo com d�cadas de trabalho, ainda vemos muito preconceito com a popula��o homossexual e trans."
"N�o podemos repetir esse erro mais uma vez", conclui o epidemiologista.
Amea�as � natureza
Para fechar a lista, n�o d� pra ignorar o fato de que a escolha do nome e as informa��es divulgadas sobre a doen�a trazem perigo a alguns animais.
O Brasil teve um exemplo cl�ssico disso entre 2016 e 2017, quando alguns Estados registraram um surto de febre amarela.
Nesse contexto, o grande problema era que o v�rus, transmitido por alguns mosquitos silvestres, afeta seres humanos e macacos, como os bugios.
"E n�s tivemos registros lament�veis de epis�dios de agress�o e mortes violentas de alguns primatas nesse per�odo", lembra a m�dica veterin�ria Paula Rodrigues de Almeida, professora da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul.

Isso aconteceu porque algumas pessoas interpretaram que os macacos eram os culpados ou at� transmitiam o v�rus — quando na verdade eles eram v�timas como os seres humanos.
"Eles s�o at� mais suscet�veis que a gente", corrige Almeida.
"E como esses bugios morrem mais rapidamente, eles servem como sentinela e nos alertam sobre o poss�vel aumento de casos em determinada regi�o", complementa.
No caso da var�ola dos macacos — como o pr�prio nome adianta, ali�s — se repete esse risco aos animais por causa de uma interpreta��o equivocada dos fatos.
"E, mais uma vez, os macacos s�o v�timas dessa hist�ria. Eles s�o infectados, mas os reservat�rios desses v�rus na natureza s�o alguns roedores", esclarece Almeida.
Isso d� ainda mais for�a para uma eventual mudan�a de nome do v�rus ou da doen�a. "N�o podemos refor�ar ou estimular estigmas, seja contra seres humanos ou contra os animais", conclui a especialista.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-61930716
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