
Viroses respirat�rias, em particular as que afetam crian�as, costumam ser sazonais: ocorrem com mais frequ�ncia em determinadas �pocas do ano, e os m�dicos sabem quando ficar de sobreaviso para as ondas de doen�as como influenza, VSR (v�rus sincicial respirat�rio) ou adenov�rus.
Mas o que pediatras do Brasil e do exterior t�m visto, recentemente, destoa completamente dessa previsibilidade.
E por tr�s desse quadro at�pico parecem estar os efeitos colaterais da pandemia de covid-19 — tanto o isolamento que ela imp�s nas sociedades e o "apag�o imunol�gico" que isso provocou quanto a a��o direta do Sars-CoV-2.
"Desde que a pandemia nos atingiu, em mar�o de 2020, vimos uma mudan�a dr�stica do padr�o" dos v�rus mais comuns, relata � BBC News Brasil o infectologista Francisco Oliveira J�nior, gerente m�dico do hospital infantil Sabar�, em S�o Paulo.
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A mudan�a come�ou logo nos prim�rdios da pandemia. Com o isolamento social, o uso de m�scaras e o fechamento de escolas e de espa�os comuns, crian�as e adultos pararam de ter contato com v�rios pat�genos.
"O caso da gripe foi muito marcante: ela simplesmente desapareceu em 2020. N�s pesquisadores nunca imagin�vamos que isso aconteceria", explica � reportagem Ellen Foxman, professora-assistente da Escola de Medicina de Yale, nos Estados Unidos, e pesquisadora de comportamento de v�rus.
Al�m da influenza (causador da gripe), tamb�m praticamente desapareceram ao longo de 2020, por exemplo, o VSR (que causa bronquiolite em crian�as pequenas) e o rinov�rus (causador do resfriado comum), relembra Francisco Oliveira.
Da�, em 2021, esses v�rus come�aram a reaparecer — mas fora de �poca.
"Para nossa surpresa, o VSR e a influenza apareceram no ver�o at� em adultos", diz o m�dico.
Nos meses frios atuais, quando viroses de fato se proliferam com mais velocidade, uma quantidade maior do que o comum de v�rus est� causando atendimentos e interna��es em hospitais infantis. A come�ar pelo Sars-CoV-2.
No hospital pedi�trico Pequeno Pr�ncipe, em Curitiba, de maio a junho, aumentou 30% o n�mero de interna��es por covid-19, e a maioria dos casos eram de crian�as n�o vacinadas (ou s� com a primeira dose) e abaixo de 5 anos (que ainda n�o recebem a vacina).
No dia em que conversou com a reportagem, em 17 de junho, Victor Hor�cio, infectologista pedi�trico do Pequeno Pr�ncipe, disse que uma ala de 12 leitos infantis estava totalmente ocupada por pacientes com covid-19.
Fora isso, relata Hor�cio, tem havido "muito mais casos de VSR, adenov�rus e para influenza (tamb�m causadores de doen�as respirat�rias). O quadro cl�nico pode n�o s� ser mais forte, como mais frequente".
E embora os casos mais graves de VSR sigam ocorrendo em beb�s, at� adolescentes t�m sofrido mais com a doen�a, segundo o m�dico do Hospital Pequeno Pr�ncipe.
No Sabar�, t�m crescido nas �ltimas semanas as interna��es por adenov�rus, parainfluenza e rinov�rus. "Antes, a preval�ncia desses v�rus era menor", explica Oliveira.
"� uma situa��o an�mala", diz o pediatra carioca Daniel Becker, que classifica o quadro atual como um "pandem�nio de viroses".
"Temos visto um n�mero excessivamente grande de crian�as pegando doen�as consecutivas, uma atr�s da outra. � uma observa��o pessoal, mas existe um consenso entre os m�dicos de que a ordem de grandeza das contamina��es est� bastante acima do normal", avalia.
Mas o que explicam as mudan�as de sazonalidade e de quadro cl�nico de v�rus t�o conhecidos da medicina?
'D�ficit de imunidade'

� algo que ainda est� sendo investigado, mas, segundo cinco m�dicos consultados pela reportagem, um ponto-chave � que parece haver um "d�ficit de imunidade" causado pelo per�odo de isolamento social — em todas as faixas et�rias, mas particularmente em crian�as.
O fato de elas n�o terem pego tantas viroses nos meses da pandemia foi um al�vio em meio � trag�dia e �s disrup��es da covid-19. Mas isso deixou seus sistemas imunol�gicos destreinados para enfrentar patologias comuns e criou grupos populacionais mais vulner�veis a alguns v�rus e bact�rias, diz um estudo franc�s de coautoria do m�dico Fran�ois Angoulvant, que desde 2020 tem acompanhado a evolu��o das doen�as infecciosas em Paris.
Al�m disso, � poss�vel que o Sars-CoV esteja interferindo no desfecho de algumas infec��es. Um caso emblem�tico disso diz respeito a surtos da misteriosa hepatite infantil vistos em meses recentes.
Uma possibilidade estudada pelos m�dicos � se crian�as que foram infectadas com covid-19 e em seguida pegaram o chamado adenov�rus 41 — que causa problemas estomacais — acabaram tendo uma resposta inesperada do organismo que pode ter levado � hepatite, explica Oliveira J�nior.
Os v�rus est�o mudando?
De modo geral, outra hip�tese sendo investigada � se os v�rus comuns mudaram nos dois �ltimos anos.
Um estudo da Universidade de Sydney, na Austr�lia, publicado no peri�dico Nature Communications avalia que a pandemia "mudou enormemente a incid�ncia e a gen�tica" do VSR no pa�s, que teve um dos lockdowns mais r�gidos do planeta.
Assim como no resto do mundo, o VSR teve sua sazonalidade bagun�ada na Austr�lia: sumiu do mapa em 2020, mas foi um dos primeiros a reaparecerem — mas no ver�o, em vez de no inverno — quando o pa�s reabriu.
Os pesquisadores australianos decidiram sequenciar geneticamente os principais surtos fora de �poca do v�rus. "Uma descoberta surpreendente foi um grande 'colapso' de cepas do RSV j� conhecidas antes da covid-19 e a emerg�ncia de novas cepas, que dominaram os surtos" em grandes partes do pa�s, diz comunicado da Universidade de Sydney.
"Precisamos reavaliar nosso entendimento atual e nossas expectativas de viroses comuns, incluindo a influenza, e a nossa abordagem em gerenci�-los", disse John-Sebastian Eden, principal pesquisador do estudo. "Precisamos ficar vigilantes: alguns v�rus podem ter praticamente desaparecido, mas possivelmente voltar�o num futuro pr�ximo, em �pocas incomuns e com um impacto maior."
Ellen Foxman, de Yale, e Fran�ois Angoulvant, m�dico em Paris, no entanto, n�o acham que os v�rus em si estejam mudando — a principal mudan�a � na nossa rela��o com eles.

"N�s � que mudamos (nosso comportamento na pandemia), e n�o os v�rus", opina Angoulvant � BBC News Brasil. "Tamb�m vimos que n�o entendemos plenamente a sazonalidade dos v�rus e que n�o podemos extrapolar o comportamento de um v�rus para os demais — o hist�rico do nosso sistema imunol�gico n�o responde igual a todos os v�rus."
"A pandemia serviu para nos mostrar que as coisas que ach�vamos que eram culpa do clima (no caso das viroses de outono/inverno, por exemplo) n�o necessariamente o s�o", agrega Ellen Foxman. "Nosso comportamento tem um papel muito maior do que pens�vamos."
Al�m disso, ainda h� muito a se decifrar sobre o nosso sistema imunol�gico. Por exemplo, um grande temor durante a pandemia de covid-19 era de que uma epidemia de gripe coincidisse com a de covid-19, levando a um potencial novo colapso dos sistemas de sa�de.
Mas, apesar de ter havido casos de co-infec��o de influenza e Sars-CoV-2, a "epidemia g�mea" n�o chegou a acontecer.
O motivo disso est� sendo estudado pelo laborat�rio de Foxman em Yale.
"Pesquisamos se, quando um v�rus avan�a com muita preval�ncia (como no caso do Sars-CoV-2 com suas variantes hiper-transmiss�veis), acabe fazendo com que pessoas que tenham se infectado recentemente tenham o sistema imunol�gico em alerta m�ximo, o que pode afastar outros v�rus", diz Foxman � BBC News Brasil.
"� o que chamamos de interfer�ncia viral, mas isso n�o est� plenamente compreendido ainda."
De qualquer modo, mesmo que a interfer�ncia viral acabe sendo comprovada, ela provavelmente n�o � algo permanente, afirma Francisco Oliveira J�nior, do Sabar�. E os v�rus, com seus ciclos de altos e baixos, v�o "disputando espa�o" na tentativa de se proliferar em nossos corpos.
"N�o sabemos que nicho o Sars-CoV-2 vai ocupar, � medida que mais gente se vacina ou tem imunidade. Ele � capaz de muitas muta��es, que podem causar infec��es, n�o necessariamente mais graves — mas � um v�rus imprevis�vel e pode surgir uma cepa de maior gravidade que pode afetar subgrupos com resposta imune pior."

Ellen Foxman suspeita que, com o tempo, a covid-19 vai acabar se tornando um v�rus sazonal de inverno (assim como outros coronav�rus costumam ser). E que, � medida que o comportamento das sociedades ficam mais parecidos aos per�odos pr�-pandemia, a sazonalidade t�pica das demais viroses tamb�m volte a seus padr�es conhecidos.
O que pais podem fazer contra as viroses infantis?
Enquanto isso n�o acontece, o pediatra Daniel Becker d� dicas sobre como lidar com os frequentes casos virais em crian�as.
"� importante evitar correr ao pronto-socorro logo no primeiro dia de febre, a n�o ser em caso de beb�s pequenos (quando qualquer febre tem que ser avaliada por um m�dico). Isso porque, por conta do contexto do pronto-socorro, muitas vezes as crian�as acabam sendo medicadas desnecessariamente, at� com antibi�ticos, e passam horas na fila de atendimento, expostas a uma co-infec��o", diz ele.
"Se a crian�a est� com um bom estado geral, ela pode ser observada com cuidado e tratada com muito l�quido, mel, lavagem nasal, banho quente e vapor. E se ela ficar abatida por causa da febre, um antit�rmico pode aliviar o inc�modo."
Se o quadro piorar ou persistir, a� sim pode ser hora de procurar atendimento m�dico.
E, para crian�as que estejam com muito catarro, mas sem febre e bem dispostas, brincar em �reas ao ar livre ajuda a melhorar a imunidade e a fortalecer o sistema cardiorrespirat�rio, agrega Becker.
Por fim, "sabemos que as crian�as est�o comendo mais alimentos ultraprocessados, e isso n�o � bom, porque piora o perfil do microbioma." Ele se refere ao conjunto de micro-organismos que vivem em partes do nosso corpo, como o sistema intestinal, e que t�m demonstrado ter um papel importante na sa�de geral, inclusive na imunidade.
Ent�o uma alimenta��o rica em frutas, vegetais, gr�os e leguminosas vai ajudar n�o s� a sa�de geral do corpo, como seu poder em combater infec��es.
No longo prazo, o que podemos aprender com isso?

Al�m disso, todos os especialistas consultados pela BBC News Brasil dizem que a bagun�a viral causada pela pandemia traz importantes li��es, tanto para indiv�duos como para as pol�ticas p�blicas.
O primeiro ensinamento tem a ver com vacinas: manter o calend�rio vacinal em dia, inclusive (mas n�o apenas) contra a covid-19, � essencial para proteger crian�as e adultos dos pat�genos para os quais existem imunizantes.
Governos e fabricantes de vacinas podem ter de se adaptar para oferecer vacinas (como a da gripe) durante mais tempo, para al�m das sazonalidades t�picas, pelo menos por enquanto. E pesquisas por vacinas novas, como uma contra o VSR, ou mais fortes, como no caso da covid-19, continuar�o sendo importantes.
Para prevenir quadros virais em crian�as, medidas de prote��o continuam sendo essenciais, entre elas usar �lcool gel, manter as m�os sempre limpas e controlar a ida a aglomera��es — inclusive adultos, que muitas vezes s�o grandes transmissores de v�rus para o p�blico infantil.
"Outra coisa que eu jamais imaginava � como as m�scaras acabaram sendo t�o eficientes", avalia Ellen Foxman.
Mesmo antes da pandemia, diz ela, "poder�amos ter prevenido o alastramento de tantas doen�as se n�o f�ssemos trabalhar doentes, ou deixando que todos ficassem sem m�scara em consult�rios pedi�tricos, passando v�rus adiante. Usar m�scara ou trabalhar de casa pode reduzir tanto o fardo dessas doen�as. Espero que a gente lembre dessas li��es quando a pandemia passar."
'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-61902861'
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